O lobo

 

Em pouco tempo, o desjejum fora servido. Saborearam um farto café da manhã com exceção de Eneida. Terminada a refeição, Dedé retomou o assunto sobre o estranho cansaço da patroa e sua inapetência. A despeito do físico, Eneida temia que a parte mais prejudicada fosse a cabeça. No entanto, resolveu manter a noite passada em segredo. Sabia que aquela conversa só pioraria a situação.

Eneida decidiu dar continuidade à sua pintura. Retirou-se para o ateliê e da janela observava Dominica brincar, tendo ao fundo um cenário magnífico. A vista podia alcançar uma vasta porção do cerrado. Era inspiradora a beleza rústica do lugar. Aliviava Eneida de modo a fazê-la mergulhar ainda mais em seu quadro. Era a benção de que precisava para esquecer as noites tenebrosas.

Enquanto isso, Dominica corria e pulava. Entre uma pincelada e outra, Eneida a observava sem controlar o sorriso de satisfação. Já havia se acostumado com o som das estripulias da menina, quando subitamente tudo ficou quieto. Eneida estranhou. Aproximou-se da janela. Viu a menina parada, com o olhar fixado em algo. Largou, então, imediatamente o pincel e precipitou-se à varanda. Lá estava, bem diante da menina, um lobo, de pelo avermelhado e patas negras. Encarava Dominica bem nos olhos. Eneida aproximou-se lentamente por detrás da filha, e disse em voz baixa e controlada:

– Vamos para dentro. – E tocou-lhe no ombro. A menina não respondeu. Era como se estivesse numa espécie de transe. – Venha, filha, é perigoso ficar aqui fora. Temos que entrar agora. – Dominica permaneceu estática.

O animal permanecia estático, atento, como que numa relação hipnótica com a garota. De repente, entre ele e Dominica surgiu um forte redemoinho de vento e folhas. Isso afugentou o animal que correu mata adentro. O turbilhão soprou com violência. Dominica foi em direção a ele. Eneida tentou detê-la, mas um galho espinhento bateu-lhe na mão com extrema violência, provocando-lhe muita dor. A menina continuou a andar em direção ao redemoinho e uma voz sussurrada vinda do nada disse:

– Venha, criança, venha. Eu tomo conta de você.

Dedé assistia a tudo paralisada. Foi então que, sem conseguir mais se conter, gritou:

– Dominica, não vá em direção ao vento! Não faça isso! – Mas a menina, num único movimento, saltou em direção a ele. Nem bem tocara os pés no chão, a ventania cessou. Dominica desmaiou. Dedé e Eneida correram em seu socorro.

– O que foi aquilo? – Perguntou Eneida. – De onde veio aquela ventania?

– Não foi um vento comum, senhora. Aquela era uma das formas que o espírito da mata assume para nos enganar. – Explicou Dedé desesperada com a menina nos braços. – Ele a quer. Temos que tirá-la daqui agora ou ele voltará para busca-la.

– Nunca!

– Venha, dona Eneida, temos que sair daqui.

Dedé ligou para a enfermaria da construtora e em menos de dez minutos seu João chegou com o médico:

– Doutor, por favor, veja o que aconteceu. – Disse Eneida bastante aflita.

– Ela caiu?

– Estava brincando tão alegrinha, aí um vento súbito…

– A pressão e os batimentos cardíacos estão normais. Respira bem. Ela teve dores de cabeça? Alimentou-se bem hoje?

– Dores de cabeça? Não. Alimentou-se bem sim.

– Acredito que tenha sido um mal súbito, talvez por causa do calor. Ficará boa logo.

– Graças a Deus! Muito obrigado por ter vindo.

– Não há de quê. Caso seja necessário, sinta-se à vontade em chamar.

– Muito obrigado mais uma vez, doutor.

Enquanto o médico colocava suas coisas de volta na mala, seu João cochichava bem baixinho com Eneida:

– … essas coisas não é médico quem resolve não.

Dedé se esquivou na tentativa de não ser forçada a comentar nada.

– Bem, vou preparar um lanchinho para Dominica. – Disse ela com um rápido olhar de esguelha.

Logo após todos terem partido, receosa, Dedé aproximou-se de Eneida, e quis desabafar:

– Dona Eneida, sei que a senhora tenta evitar a todo custo essa conversa. Todavia, não consigo me conter. A senhora pode ficar brava comigo, mas acho que as coisas estão ficando sérias demais para serem simplesmente ignoradas.

– Olhe, se é para você vir com aquela conversa novamente, eu digo que estou começando a questionar também a sua sanidade. Prefiro que…

– Então, como a senhora explica tudo isso?

– Simples: Estamos isoladas, eu sou uma dependente de remédios, você uma mística esquizofrênica e minha filha está carente do pai. Sequer temos um shopping para nos distrair a cabeça. Estamos longe da civilização, no meio do mato. Agora, tudo o que acontece de diferente é por causa de espírito. De repente, aparece uma velha do nada que me fala um monte de absurdos sem sentido. Ora, faça-me o favor.

– Como a senhora explica as visões?

– Já lhe disse: Acho que não estou bem da cabeça. São só visões. Nada mais. Aconteceu mais alguma coisa? Não.

– Dona Eneida, preste atenção: A natureza tenta nos avisar de alguma coisa.

– Ué! Então mande uma carta, um bilhete ou quem sabe um e-mail, sinal de fumaça, sei lá. Qualquer coisa que eu possa entender. Não é preciso criar alucinação na cabeça de ninguém para comunicar algo, principalmente na cabeça de uma criança inocente.

– Entendo seu sofrimento, mas a lógica da cidade não se aplica aqui.

– Dedé, você é uma mulher bastante inteligente e competente, mas veja bem, a mente é como uma armadilha. Sempre acabamos por fazer verdade as nossas mentiras.

– Neste caso é diferente. A natureza quer falar. Às vezes ela interfere na vida, modificando nossas sensações, nossa percepção do tempo. Deixe-a falar com senhora.

– A minha natureza agora está concentrada em esquecer tudo isso. Só quero cuidar da minha filha e protegê-la. Aliás, o que já é muito difícil de se fazer sozinha. Preciso saber, com certeza, quando Maximiliano chegará. Não gostaria de assumir toda responsabilidade.

– Está bem. A senhora precisa de mais alguma coisa?

– Não. Eu mesma levarei esse lanche para o quarto de Dominica. Preciso animá-la um pouco.

Eneida, no fundo, não estava convicta de suas palavras. Receava que algo estranho, além da explicação comum, estivesse realmente acontecendo. Aquela conversa permaneceu em sua cabeça.

Horas se passaram e o final da tarde já se aproximava. Dominica havia se recuperado bem e até brincava. Contudo, a relação entre patroa e governanta ficara, de certa forma, estremecida com aquela discussão. Eneida não resistiu, e se aproximou de Dedé enquanto arrumava os detalhes para o jantar:

– Olha, sei que fui grossa com você. Queria me desculpar.

– Desculpar-se do quê, dona Eneida?

– Eu lhe chamei de mística esquizofrênica.

– Ah, sim, tinha até me esquecido. Preocupo-me demais com a senhora e a menina. Mas como a senhora mesmo disse, não devemos mais tocar no assunto.

Neste exato momento, João retornou e desta vez para trazer notícias sobre a chegada de Maximiliano.

– Boa tarde, gente!

– Olá, seu João. Seja bem-vindo. – Retribuiu Eneida.

– Trouxe notícias do patrão.

– Pois, então, diga logo.

– Ele chega amanhã de manhã, lá “pras” dez e vinte e cinco.

– Que bom! Isso me deixa mais aliviada.

– É. Ah! daqui um pouco tenho de voltar aqui pra trazer uma carga que ele despachou.

– Que carga? – Perguntou Dedé.

– Mais duas caixas daquelas. Caso veja a gente andando por aí, não estranha não. Vamos levar direto para o porão por aquela porta de fora. Não vai perturbar ninguém aqui.

– Tudo bem, seu João. Fique à vontade. – Antecipou-se Eneida.

– É.… é bom que ele chegue rápido mesmo. O patrão vai ter que resolver muita coisa lá na construção. Tá tudo muito atrasado. Os engenheiros tão de cabelo em pé. Bom, agora me vou. Até. Ah! O gerador tá funcionando bem?

– Foi bom ter lembrado. Ele apresentou uma falha durante a noite.

– Então vou mandar alguém pra dar uma olhada. Até.

– Até mais, seu João.

– Agora eu mesmo quase me esqueci. Estava curioso pra saber; e a menina? Como está?

– Brinca como se nada tivesse acontecido.

– Viu só? Criança é assim: se recupera logo. Agora eu vou mais aliviado. – Seu João subiu na caminhonete acenou com a cabeça e partiu.

Eneida acendeu o semblante e quis dar a notícia à filha. Apressou-se para subir ao quarto com a bandeja nas mãos, mas desistiu ao vê-la brincando do lado de fora da casa. Então, foi até a varanda e disse em voz alta:

– Dominica, filha, tenho uma surpresa para você. Papai chegará amanhã pela manhã! – Ela, que brincava sorridente, estacou. Seu sorriso se desfez. Correu para o banco de madeira, cruzou os braços e calou-se. Ao ver sua reação, Eneida deixou a bandeja com Dedé e aproximou-se da menina com cautela.

– O que houve? Não ficou contente com a notícia?

– É. Fiquei.

– Não parece. Está pálida. Quer conversar sobre isso?

– Não. Só quero ficar sozinha.

– Tudo bem. Se quiser falar comigo mais tarde…

A menina apenas balançou a cabeça com olhar perdido no horizonte. Aquele comportamento preocupou Eneida. Então, voltou para casa para comentar com Dedé. A governanta estava na cozinha a adiantar o jantar. Eneida relatou o ocorrido e antes que pudesse concluir algo, Dedé a interrompeu:

– A senhora não acha que o próprio pai tenha feito alguma coisa para ela, acha?

– Não. Absolutamente. Só penso que ele é ríspido com ela. Por isso fica chateada.

– É, pode ser.

– Claro que só pode ser isso, Dedé. O que mais poderia ser? Esse seu tom…. Ora, ele é o pai dela e estamos aqui, falando dele como se fosse um estranho.

– Não é isso. É que às vezes…

– Mais tarde conversarei com ela. Quem sabe se sinta melhor para tocar no assunto. – Eneida deu as costas saindo em direção ao ateliê.

Já anoitecia quando seu João retornou com a carga que Maximiliano havia despachado. Do ateliê, Eneida pôde ver a caminhonete estacionando com mais duas caixas na caçamba, semelhantes às primeiras. Dois rapazes acompanhavam para auxiliar na descarga. Rapidamente empilharam ambas no carrinho de transporte e as levaram para a entrada externa do porão. Mantiveram-se calados, os dois. Deixaram o material e voltaram para a caminhonete. Seu João deu a partida. Arrancou tão rápido que deixou um denso rastro de poeira.

Aquelas caixas aguçaram ainda mais a curiosidade de Eneida. “O que há dentro delas?” – Era o pensamento que começava a lhe obsedar. Procurou distrair-se com a ideia da vinda de Maximiliano:

“Que bom, ele chegará amanhã! Deveria contar-lhe o que aconteceu? Não, é melhor não. Ele pensará que estou louca. É certo que muita coisa aconteceu, mas ele terá tantos problemas da empresa para resolver. Não darei trabalho. Por que será que ele nem me ligou? É certo que nunca foi de dar satisfação. Isso é verdade, mas numa situação dessa… Recordo o dia em que nos conhecemos: Eu tinha vinte anos. Estávamos viajando, meus pais e eu. Fomos para o Canadá. Pretendíamos ir aos Estados Unidos já que estávamos bem próximos da fronteira. Contornamos o extremo sul canadense, e assim que cruzamos a fronteira, nos deparamos com uma cidade encantadora: Utica. Um lugar bastante agradável, hospitaleiro. Ao chegarmos, recebemos um aviso de que uma tempestade de neve se aproximava. Decidimos, então, passar a noite em um hotel. Acabávamos de chegar e ao darmos entrada, a nevasca começou. O vento congelante varria as ruas. Não era possível ir a lugar algum. Quem ousasse desafiar o clima, retornaria com o nariz e as bochechas queimadas pelo frio de quase quinze graus negativos. No dia seguinte, ao acordar, vi meu pai contemplando o cenário de total brancura pela janela do quarto. A tempestade já havia passado. Abracei-o e sem dizer uma única palavra, permanecemos juntos a ver a neve cair delicadamente. Foi, então, que a monotonia alva foi quebrada com a chegada de um carro preto. Imaginei quem seria o louco de se arriscar num tempo daquele. O motorista desceu cautelosamente do carro para não escorregar, caminhou até a porta do passageiro e abriu-a. De lá saiu um homem forte, alto e compenetrado. Estava só. Percebi que trazia pouca bagagem consigo. Papai não deu importância e desviou o olhar para a paisagem. Fui à recepção. Não sei por que fiz aquilo, mas tive a curiosidade de saber quem era. E lá estava ele, a preencher o registro de entrada. Cruzamos os olhares, sorrimos mutuamente e depois de confirmar o check-in, ele dirigiu-se ao elevador. Permaneci na recepção por algum tempo. Depois fui para a sala de estar e sentei-me próxima à lareira. Peguei uma revista e comecei a folhá-la. Pouco tempo depois, senti alguém ao meu lado. Discretamente olhei: era ele. Apresentou-se, dizendo o nome: Maximiliano de Lafaiete. Estendeu a mão e retribui o gesto. Ele segurou a minha com delicadeza, inclinou-se e me beijou o rosto. Depois se afastou devagar a fitar-me nos olhos profundamente. Aquela ousadia me cativou. Trouxe-me uma xícara de chá e ali ficamos, conversando por muito tempo. Meus pais me procuraram, devia ser a hora do almoço. Ao me chamarem, Maximiliano, impetuoso como ele só, me acompanhou e sentou-se à mesa conosco. Papai não gostou.

Maximiliano era do tipo sedutor. Apesar de sério, era receptivo, feição de um homem forte, decidido, olhar inteligente. Falava pouco de si, mas perguntava muito. Mostrava interesse exagerado na atividade profissional de meu pai e no que estávamos fazendo lá, numa região tão fora do roteiro turístico convencional.

Ao terminarmos, fomos para outra sala onde seria servido o chá. Meus pais resolveram dispensar essa parte e voltaram para o quarto. Maximiliano e eu permanecemos. Foi aí que meu interesse por ele cresceu. Gosto de pessoas interessantes e misteriosas. Aceitei seu convite para sairmos. Confesso que me entreguei muito rápido. Senti que aquele seria o homem da minha vida.

Lembro-me de crivá-lo de perguntas. Queria saber tudo, cada detalhe de sua vida. Contou sobre o pai, sobre seu ramo de atividade, falou até do que gostava e do que detestava. Enfim, um homem bastante detalhista. Minucioso até demais. Sua preocupação com minúcias, como por exemplo, tirar um fio de cabelo solto sobre meu ombro, era um pouco exagerado. Atinha-se a todos os detalhes da minha roupa. Reparava e comentava pequeninas imperfeições em tudo e em todos. Nunca falava de planos futuros. Só falava do presente. Até hoje é assim; um presente perpétuo.

Vivia como vivem os homens solteiros de bom gosto. Pensando bem, sempre houve uma sombra em seu olhar. Jamais permitiu a qualquer um conhecer seu íntimo. Sempre tive medo de descobrir algo que me decepcionasse. Quem diria! Casei com aquele homem e temos uma filha. É, isso me incomoda; a relação entre eles. Nunca foi carinhoso com Dominica. Bem, só sei que o tempo passa e o nosso relacionamento esfria. Olha como são as coisas: Também me lembro do dia em que engravidei. Fiquei feliz. Eu não sabia como dar a notícia. Passei boa parte do tempo ensaiando, pois, sempre que conversamos sobre termos um filho, ele era evasivo. E esta gravidez foi inesperada. Realmente nem sei como aconteceu. À noite, quando Maximiliano chegou, esperei até terminarmos o jantar. Então, contei. Nunca o vi reagir de forma tão fria. Não abriu a boca. A partir daí, passou a me ignorar. Nove meses de desprezo. Quando Dominica nasceu, ele estava em viagem de negócios. Ao retornar – depois de duas semanas – sequer dignou-se a tecer qualquer comentário carinhoso. Olhou para a filha como uma coisa. Confesso que fiquei chocada. O tempo passou e pensei que o sentimento de rejeição passaria. Isso não aconteceu. Desde então, a indiferença faz parte da relação entre eles. Já tentei de tudo para aproximá-los – Deus sabe disso –, mas não adiantou. Sei que a menina sofre muito com isso. Penso que, talvez, ele devesse estimá-la ao menos pela obrigação natural de pai. Olha que nem me refiro a amá-la. Acho que isso seria demais para ele.”

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