obra escrita por
YAGO TADEU

A

FÚRIA DE LISBELA

Pouco a pouco transborda-me a certeza que não é real
Estou com alguém que não existe
Alguém acima do bem e do mal
Que ultrapassa meus limites.

A

Dionísio percebia que Priscila não voltaria naquela noite. Já era tarde e todos dormiam. Sentiu no início da madrugada uma coceira na garganta, era sua voz começando a retornar. Agradeceu á todos os santos por isso.

As crianças já dormiram, você não dormiu ainda?- Maysa chegou ao quarto maior. Dionísio parecia incomodado com sua presença. Ela vestia uma camisola de bolinhas pretas que a deixava ainda mais gorda.

Na- não!- Dionísio balbuciou ao falar e Maysa fez sinal de silêncio.

Não, não diga nada.- ela sorriu pretensiosa – Você é perfeito pra mim.- Maysa disse o deixando inquieto. Ela parecia muito empolgada com a presença dele. Maysa empunhou sua mão e deu um beijo nela – Não vou pressioná-lo.- ela deu um sorriso iludido. Dionísio continuou sem reação. Essa mulher é louca? Dionísio pensou e Maysa se despediu dizendo que o deixaria descansar em paz.

Uma hora da manhã, Dionísio conferiu isso tirando o celular do bolso. Ele aproveitou a chance e tentou se erguer segurando na cabeceira de madeira da grande cama. Passou pela pequena sala andando mais firme, mas caminhando devagar pelas dores que sentia nas costas e no tornozelo. Algo está errado neste lugar. Porque seu amigo Dérick estava morto e Priscila estava tranquila? Onde estava Ítalo? Dionísio decidiu ir embora daquele lugar. Girou a chave minuciosamente para abrir a porta e sair daquela casa.

Ela deslizou por baixo da cama e levantou esbarrando no guarda-roupa. Os dedos da patroa quase rasgaram o lençol e ouviu-se algo semelhante a um rosnar. A mesma mão tentou agarrá-la, mas ela escapou. Correu pelo corredor quase ensurdecida pelo ruído alto do rádio. Puxou a porta pela maçaneta a porta entreaberta e saiu quase escorregando na descida para a terra. Priscila viu uma sombra na entrada da trilha e automáticamente deu passos pra trás. A fábrica! Talvez houvesse uma saída mais rápida atrás da fábrica. Priscila correu dando a volta na casa. Abriu as correntes grossas as jogando rapidamente no chão. Ouviu o vidro da janela do quarto estilhaçar e entrou nos portões dando de cara com o paredão branco. Rapidamente deu a volta no muro e seu nervosismo era tanto que não conseguia desconfiar do que viria.

Deus!- Priscila pôs as duas mãos na boca e seus olhos tornaram-se atônitos – Não é possível!- ela correu entre as sepulturas entre o negrume fúnebre quando escutou o portão ranger. Abaixou-se encostando numa lápide. E agora? O que vou fazer? Como vou escapar? O que vou fazer? Priscila fechou os olhos e católica apelou á todos os santos para sobreviver.

Priscila, Priscila. – ouviu a suave voz feminina entoando seu nome como uma cantiga – Não foi nada bonito o que você fez mocinha.- a voz disse como uma mãe.

Priscila se encolheu quando uma luz a iluminou e ela se deparou com o nome escrito na lápide que se apoiava: Lisbela Reis 1898-1942. Ela se levantou bruscamente e virou-se para a luz. O lampião iluminou o caminho até quem o segurava. A patroa piscou para a empregada.

Pensei que estivesse falando sozinha.- Lisbela sorriu de modo contente – Sabia que não iria me deixar.- Lisbela se aproximou lentamente.

Os dedos tremendo. Os olhos piscando descontrolados. Priscila caiu ajoelhada e as lágrimas pingavam na terra.

Por favor, deixe-me viva. – implorou com as lamúrias presas na garganta – Por favor, deixe-me ir embora.

Não seja tola mocinha.- Lisbela estava a dois passos dela – Nós seremos muito felizes juntas.- Priscila olhou sem entender. Olhou como quem implora pela vida – Vamos, segure no meu braço.- Lisbela deu seu braço para a empregada – Vamos… Fique tranquila.- Lisbela sorriu.

Priscila ficou de pé novamente e sem outra alternativa entrelaçou seu braço com o braço da patroa. As duas caminharam pela escuridão alastrando a luz do lampião que carregavam. Ela sentiu o braço eriçado encostar no da patroa.

Sabe que um dia eu li um conto de terror…- Lisbela caminhava para fora do cemitério agarrada á Priscila – … Acho que se chamava Os vampiros querem amar, escrito por dois autores razoáveis, até porque desde o princípio percebi quem era o vampiro.- Priscila escutava aquilo amedrontada – Porém aprendi com ele que ter muito medo de algo pode atrair esse algo para nós, e que se não vencermos esse medo difícilmente sobreviveremos.

Passaram pelo portão e rapidamente deram a volta na casa até a entrada. Meu deus, o que vou fazer? Sua mente se perguntava o como escapar daquela situção. O que ela vai fazer comigo? Lisbela abriu a porta da casa e mandou Priscila entrar.

O que você vai fazer comigo?- Priscila indagou com o medo explícito em seu rosto.

O que nós vamos fazer juntas você quer dizer.- Lisbela limpou as lágrimas do rosto da empregada com suas mãos – Nós vamos aprender a conviver como boas amigas… É isso.

Eu não vou morar com você.- Priscila se afastou desesperada – Eu vou embora!- Priscila gritou dando as costas para a patroa e correndo para o corredor. Bateu os pés desesperada quase escorregando, mas arriscou fugir. Trancou-se no banheiro e tentou fechar a janela quebrada puxando-a com força para baixo. Agachou-se no canto do banheiro se encolhendo. Não vou abrir essa porta, não vou abrir essa porta. Ela não pode me pegar, ela não pode me pegar, ela não pode me pegar, ela não pode me pegar. Proteja-me Deus… Se benzeu. Ela não pode me pegar.

Priscila se assustou chacoalhando-se quando o chuveiro e a torneira ligaram. Ela encolheu-se ainda mais encostando as costas na parede do banheiro agachada enquanto a água tocava as sandálias. Chorou de terror ao ver o sangue negro descer pela ducha e inundar o banheiro. Viu as pontas dos dedos e o anel passando lentamente através da porta. Ela tremia no canto tendo a sola das sandálias molhadas pela água. A porta começou a chacoalhar e a maçaneta vibrava descontrolada. Notou o braço e o tecido rendado do casaco ultrapassando a porta. Enxergou o rosto de Lisbela e gemeu. O corpo inteiro atravessou a porta, Lisbela abaixou a cabeça e descontraiu os ombros. Ela estava no banheiro, ela estava no escuro banheiro com ela. O chuveiro e a torneira desligaram. Os olhos de Priscila ameaçavam se fechar e apenas aguardava ela chegar.

Chega de brincadeiras Priscila. – Lisbela passou as duas mãos ajeitando os cabelos ondulados. Ela tirou a chave da porta e abriu a empurrando – Promete que vai ficar comigo.- ela pediu se aproximando da empregada encolhida no canto do banheiro – Promete que vai ficar comigo pra sempre.

Priscila levantou indagando á sua própria mente se aquilo era um pesadelo. Olhou firme para os olhos de quem a aterrorizava. Talvez se a enfrentasse, o pesadelo iria se diluir e ela poderia despertar.

Eu não vou ficar com você. – falou afirmando com todas as letras – Deixe-me em paz! Você já está morta, não está? Porque não vai pro inferno?!- imediatamente a mão esquerda de Lisbela a pegou no mesmo momento pelo pescoço, a ergueu tirando seus pés do chão e a sufocando.

Se eu for pro inferno você vai comigo, Priscila.- a voz de Lisbela se distorceu – Porque agora somos uma !- Lisbela berrou engrossando a voz. Priscila foi arremessada contra a porta, bateu de costas e abateu a porta á baixo. A pancada nas costas foi forte e as dores não foram sentidas no momento, pois o medo naquele segundo dominara todo o seu corpo e não conseguiria dizer uma palavra a mais para enfrentá-la.

Porcos malditos!- a voz distorcida gritou tremendo a estrutura da casa – Sociedade hipócrita e preconceituosa.- a patroa lançou a televisão contra o chão e espatifou o vidro da tela. Priscila abaixou-se aterrorizada sem ter o que fazer.

Machistas desgraçados!- socou e afundou a pia da cozinha – Homem devia ser tratado como cavalo, devia andar de quatro, usar ferraduras e pra ser escolhido tinha que mostrar os dentes.- copos arremessados voavam espatifando-se um a um na parede da cozinha. Como se descontasse toda a raiva e rancor respirou fundo liberando seu ódio.

Não, não deixe-me morrer, não ainda. Lisbela caminhou até o sofá e sentou tirando o pó das próprias roupas enquanto sua ira diminuía. Parecia mais calma agora. Priscila tremia encostada na parede abaixo dos quadros. A loira a olhou agora de forma doce, e abaixou-se tocando o chão.

Nossa vida começa agora.- Lisbela engatinhou suavemente até estar face a face com a empregada. A vida e a morte tinham seus rostos colados.

Por favor, não.- Priscila pediu quando ela passou a mão em seu rosto – Por favor, eu te imploro Lisbela.

Não me chame de Lisbela, me chame de mulher… me chame de amor …

Lisbela jogou para trás os curtos cabelos loiros da empregada que estavam escorridos sobre o rosto. Lisbela a puxou para si e os dois lábios se tocaram. O beijo uniu além dos lábios, as mãos e os sentimentos distintos de duas distintas mulheres. Priscila fechou os olhos franzindo as sobrancelhas, podia sentir a morte cada vez mais forte, podia sentir o calor de um terrível desespero tomando conta de seu corpo como uma febre. Lisbela devorava seu medo como prato principal e o coração da patroa apaixonava-se descontroladamente. Não foi apenas um beijo homossexual, foi um beijo entre a vida e a morte, duas mulheres incompreensíveis.

Nós vamos nos casar em breve.- Lisbela sorriu a prendendo em seu olhar – Muito em breve.

Priscila estava anestesiada, mais que isso, sem reação, ela estava petrificada como se todo o medo que sentira a tivesse sedado. O toque de lábios aniquilou qualquer reação imediata. Era seu fim?

Dionísio caminhava pela mata já fora da vila. Um grande urubu surgiu na escuridão e ele se abaixou evitando de colidir com o maior urubu que já havia visto na vida. Caminhou devagar e avistou uma loja entre as árvores da mata. Tem alguém naquele lugar. Dionísio percebeu as luzes acesas. Passou pelas árvores de grandes troncos e chegou até a loja. Ítalo reconheceu o amigo de seu pai ao longe.

Dionísio?- Ítalo estava ao lado do caçador Hoffman.— Ítalo, o que faz aqui sozinho?- Dionísio deu uma sacada no caçador diante de mais uma surpresa.

Nós deixamos meu pai no hospital, viemos pegar as roupas mas logo voltaremos hospital.- a tristeza e o medo estampados em seu olhar.

Seu pai?- Dionísio agora estava atônito – Dérick não está… Morto?

Não, meu pai está vivo.- Ítalo afirmou e Dionísio se arrepiou fechando as mãos com força.

O que está acontecendo nesse lugar?- Dionísio exigia a verdade – Me conte tudo… – olhou ao redor como se temesse algo.

Dérick foi enterrado vivo. – o caçador foi direto. Dizer isso o assombrava.

O quê?- Dionísio custava á acreditar que o amigo estivesse vivo.

O caçador ligou o carro de Dérick e eles se encaminharam para o hospital mais próximo em Montenegro. Hoffman e Ítalo o explicaram tudo desde o início, mas jamais alguém cético como Dionísio iria crer fácilmente em algo tão fantasioso.

Eu preciso ver Dérick, eu preciso falar com Dérick, preciso ver que ele está mesmo vivo.- a dúvida e o anseio pela verdade o deixava mais tenso.

Você verá.- Hoffman dirigia o veículo enquanto Dionísio ao seu lado questionava á tudo sem acreditar nas respostas assombrosas que ouvia.

Ítalo foi o primeiro a abrir a porta e descer do carro. Hoffman o deixou no estacionamento do hospital. Subiram e desceram escadas até chegar ao corredor que procuravam. Um hospital de boa estrutura para uma cidade mediana.

Posso levá-los agora para ver Dérick?- Hoffman questionou á enfermeira japonesa que foi gentil e enfim liberou. Dionísio entrou na sala e Ítalo pôde ver seu espanto vivo no rosto. Dérick reviu o amigo. Sentiu uma nova sensação.

Meu Deus, Dérick você está vivo!- Dionísio parecia além de impressionado, emocionado.

Dérick tomava soro e tinha a boca coberta pelo aparelho de inalação. Seus olhos umideceram os cílios quando reveu o amigo.

Conte pra ele pai, conte quem eles são. – Ítalo dizia baixo, quase sempre falava baixo. A sala era clara e cheirosa.

Eles? Os moradores? Eles fizeram isso com você?- Dionísio se alterou em busca da verdade – O que há de errado com eles? Quem são eles?

Dérick tirou o aparelho de inalação e molhou os lábios ressecados buscando a mão de Dionísio. Dionísio estendeu sua mão, e ele a segurou. Foi quando notou algo que nunca vira em seus olhos. Todos esses anos de amizade não foram capazes de fazê-lo ver tamanho medo nos olhos do amigo.

São todos mortos.- Dérick contou de uma vez impactando Dionísio – O jornaleiro, o dono do bar, a maldita patroa, o barqueiro, todos Dionísio.- Dérick quase chorava ao falar – São todos mortos.

Dionísio apertou sua mão. Totalmente incrédulo, o rosto de Dionísio se envidraçou.

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