obra escrita por
YAGO TADEU
A
NEGOCIANDO COM ESPÍRITOS
Entre braçadas sofro doloridos cortes
A desculpa do morto é a vida
A desculpa do vivo é a morte.
A
Priscila, é a culpada pela morte de Mateus? Como? Porque? Dérick se perguntava enquanto o peito ofegante sufocava o acelerado coração. Mãe? Minha mãe é a culpada? Porque ela disse isso? Ítalo também se questionava. Meu Deus, ele não pode saber. Priscila fechou os olhos e as pálpebras se abriram quando a mão da patroa ajeitava seus cabelos carinhosamente.
— Mas é claro que Priscila jamais confessará isso.- Lisbela disse em seu ouvido – Portanto nós vamos jantar e degustar esse momento.- a patroa puxou a cadeira e sentou – Sirvam-se.- Priscila ouviu isso e permaneceu sem ação, Dérick apenas fitou a patroa – Sirvam-se! ela quase gritou e Dérick pegou o talher de cabo moldurado – Vocês querem macarrão com ou sem molho?- o silêncio foi a única resposta- Por favor deixem qualquer vergonha de lado e respondam-me, senão serei obrigada a dar algo que talvez não gostem, então respondam-me!- sua voz engrossou. Uma agonia insuportável – Querem macarrão com ou sem molho?
— Com molho. – Ítalo tomou á frente e surpreendeu os pais novamente.
— Ah… O menino homem. – Lisbela pegou o molho na panela separada e o jogou sobre o macarrão dando o prato ao garoto – É tão arrogante quanto o pai.- o garoto garfou o macarrão e Dérick olhou para a marca da aliança no próprio dedo sem qualquer resposta. Lisbela aproveitou e colocou para Priscila e Dérick do mesmo modo.
— Eu propus um jantar sincero entre nós, mas percebi que vocês são completamente desprovidos de sinceridade e franqueza.- Lisbela garfou o macarrão e o mastigou lentamente deixando o silêncio invadir a mesa por alguns segundos. Dérick o garfou e Priscila o acompanhou sem saída. O marido lançou um olhar de desconfiança para a esposa que atordoada preferiu não olhar em seus olhos.
A porta da casa se abriu. Eles invadiram. As risadas maliciosas chegaram num instante até a cozinha. Amontoavam-se na entrada. Seus risos assombrosos cercavam os vivos que diminuíam-se entre eles.
— Não vai dar um deles a nós Lisbela?- Sidney Jornaleiro deu seu velho sorriso cínico.
— Não seja egoísta senhora Lisbela, a sua mãe não era assim.- Velho Stephen provocou.
— Esqueçam minha bondosa mãe.- Lisbela se irritou empurrando o prato – Eu os trouxe até aqui e eu decido quais serão os seus destinos.
— Lisbela.- Senhorita Emily disse – Eu quero ele.- ela apontou para Dérick que engoliu seco. Maysa sorria e sua gorda face estava feliz.
— Vocês não querem nada! Eu negociei e fiz um contrato com eles, eu os trouxe para cá.- Lisbela levantou e abriu a gaveta do grande armário. Tirou o contrato e mostrou aos moradores o exibindo como um troféu.
— Eu quero só o garoto e nada mais.- Maysa chamou Ítalo com as mãos e deu um estranho sorriso ao lado dos sorridentes Gean e Sizu.
— Se levarem meu filho vão ter que me levar.- um vivo se pronunciou pela primeira vez. Dérick ousou.
Sidney deu uma risada de escada e Lisbela interveio. As lágrimas de Priscila pingavam na calça jeans e ela se recusava a olhar para o marido e para o filho. Eles discutiam entre eles, vários na entrada da cozinha e suas pálpebras tremiam em descontrole. Porque eu fiz isso com minha vida? Porque minto tanto e porque minha vida é uma grande mentira? Porque sou fraca e ainda cometo tantos erros? Porque eu sou um erro eternamente tentando voltar atrás? Desde que cheguei sentia que viveria algo irreal, pensava estar próxima de um sonho, mas naufraguei em um pesadelo de ilusões, algo que plantei por muito tempo e tenho que pagar, agora percebo e não há como recuar, estou cada vez mais longe de ter a minha vida de volta, cada vez mais perto da morte. Eu estou negociando, estou negociando com a morte, estou negociando com espíritos.
— Vocês não querem nada! – ela bateu a mão e a mesa tremeu – Vocês não querem nada.- Ítalo rapidamente segurou a mão do pai que estava mais próximo dele. Priscila ergueu a cabeça — Fora! Voltem pras suas moradias medíocres. Funestos!
— Você ainda vai pagar por tudo que fez.- senhorita Emily a ameaçou e se encaminhou para porta. Os moradores a acompanharam insatisfeitos e atravessaram as paredes. Atravessaram as inúteis barreiras de concreto.
— Agora podemos decidir do jeito que deve ser.- Lisbela sentou novamente á mesa – Urubus funestos de SweetVillage. E é por isso que minha mãe os odiavam.
— Deixe Ítalo e Dérick em paz.- Priscila pediu olhando pra patroa – Eu fico com você pra sempre mas deixe-os ir. Fico com você pra sempre.- repetiu.
— Mãe… Não!- Ítalo não se imaginava sem sua mãe – Não faça isso.
— Deixe Ítalo, ela deve ficar e nós devemos ir. – Dérick disse isso e Priscila aguardou sem coragem para encará-lo.
— Pra mim só você importa. – Lisbela tocou em sua mão e em seguida levantou – Não importo com os outros.
Ela guardou o contrato na gaveta e trouxe outro da mesma gaveta.
— Assine. – a patroa lhe deu uma caneta de bronze.
Priscila pegou os papéis e leu tudo o que a negociação estabelecia até a última cláusula, do último parágrafo: Irrevogávelmente, a empregada torna-se fixa para sempre. Priscila pensou em Ítalo e no próprio Dérick, tudo que mentiu todo o mal que causou. Ela assinou com os dedos tremendo: Priscila Telles Gilbert. Estava feito.
— Á partir de agora você é minha. – Lisbela segurou seu queixo – E vocês não devem voltar nunca mais em SweetVillage. – olhou para os dois.
— Vão, vão!- Priscila mandou irem embora já que haviam esperança á eles.
Dérick se levantou e Ítalo também. Sem medo o garoto correu até a mãe e lhe deu um último abraço, não perderia essa última oportunidade.
— Desculpe-me. Perdoe-me por eu nunca ter sido uma grande mãe para você. – Priscila estava profundamente arrependida mas já era muito tarde.
— Você não tem que pedir perdão, você acaba de se sacrificar por mim e isso já é tudo.- Priscila olhou a tristeza pulsando em seus olhos e sentiu orgulho de seu filho. Lisbela empurrou a cadeira desocupada. Rodeou inquieta.
— Vão, vão!- Priscila mandou e Ítalo foi até o pai. Dérick lançou um último olhar para ela que não foi correspondido. Ele saiu rápido carregando o filho.
Priscila foi até a janela da cozinha e as lágrimas vieram até os lábios, mais uma vez chorou abalada. Mais uma vez estava sem saída.
— Não se preocupe, não farão mal algum a eles.- Lisbela assistia ao seu lado a partida dos dois pela janela. Via o próprio reflexo na janela. Via suas lágrimas caindo e o vazio da vida surgindo dentro de uma situação sem escapatória.- Priscila, volte á jantar você não pode ficar sem comer. Eu vou ao seu quarto mas volto em um segundo.- Lisbela sorriu. Os olhos de Priscila estavam frios, mortos e desacreditados. Ela sentou na mesa enxugando as lágrimas na blusa creme de lã.
Lisbela voltou á cozinha trazendo consigo o vestido de casamento que dera á Priscila e os brincos dourados de andorinhas. Priscila largou o garfo e Lisbela colocou o vestido e os brincos sobre a mesa.
— Assim que comer vista.- Lisbela mandou virando as costas. Priscila olhou para os vestidos e os brincos. Começaria ali a aceitar esse verdadeiro inferno? Teve que obedecer. Colocou o vestido e os brincos no banheiro.
— Ah… – Lisbela a viu sair do banheiro – Linda. Linda.- repetiu ela maravilhada.
Priscila foi levada até o espelho e Lisbela a colocou diante dela mesma.
— Olha como você é linda.- Lisbela a elogiou.
Priscila sentiu-se ainda pior ao se ver dentro daquele antigo vestido.
— Eu adoro esses brincos em você. – a patroa tocou nas andorinhas douradas.
— Obrigado. – Priscila agradeceu sem conseguir sorrir. Minha vida acabou. Seus olhos brilharam diante do espelho. Ela preparava-se para se render á qualquer hora que a morte chegasse – Lisbela, posso deitar um pouco? Eu estou exausta.
— É cedo ainda mas já anoiteceu, pode ir deitar mocinha.- Lisbela olhou bem em seus olhos. Seu olhar desconfiado não foi notado – Boa noite.
— Boa noite. – Priscila foi até o quarto e a patroa a observou lentamente fechar porta.
Não haviam alternativas. Não haviam opções. Priscila ignorou o conselho de Florinda e decidiu tentar fugir daquele lugar. Como fugir de um espírito? Como fugir de uma entidade? Ela abriu a janela e a rotineira ventania das noites soprava também naquela. Priscila saltou a janela, erguendo sem muitas dificuldades a calda do justo vestido de noiva. Correu dando a volta na casa e saiu em disparada pela trilha virando de segundo em segundo para ver se a patroa não notara sua saída. Uma chuva se iniciou repentinamente e transformou-se em poucos segundos em quase uma tempestade.
Ela entrou na mata ainda depressa, mas foi diminuindo os passos aos poucos, acreditando que se fosse pega morreria. Priscila encostou numa árvore seca onde o tronco fácilmente se despedaçava. Ouviu uma voz, quando a barra de seu vestido já começava a molhar. Priscila olhou para os galhos e ouviu uma voz entre as árvores. Parecia um diálogo, mas só escutava uma voz. Ela andou entre as árvores ignorando as grossas gotas de chuva que umideciam seus cabelos. Viu Senhor Edgar pela janela de uma cabana, uma pequena cabana montada com galhos, folhas e redes. Uma árvore estava infiltrada no teto e atravessava a cabana. Priscila encostou na janela e observou a conversa. Suas sobrancelhas contraíram.
— Tijuana, porque não gostou desse poema?- Senhor Edgar questionava á árvore. Ele fez uma expressão de insatisfação lançando um olhar de desagrado para a estranha árvore – Eu vou lê-lo novamente: Perdi a voz, perdi os sentidos, suas unhas me marcavam, anestesiado e tão perdido seus feitiços me sedavam... – ele lia quando foi interrompido pelo ranger da janela de tábuas – Priscila?
Ela fez uma expressão de susto e o homem pálido se levantou do banco de madeira.
— Entre Priscila.- ele foi até a porta e a abriu. Senhor Edgar tirou o colar do bolso e entregou á ela – Você o deixou cair na igreja.- Priscila pegou o colar espantada por não perceber que havia o perdido.
Priscila não tinha o que fazer, então decidiu entrar, mesmo pensando que poderia estar correndo grande perigo. Ela entrou na cabana dando um fraco sorriso para ele que a levou até o banco no cômodo pequeno e único da cabana. Priscila notou as garrafas de vidro fechadas com rolhas e presas á cordinhas na rede de pesca que simulava um forro no teto.
— Todas essas garrafas guardam textos e relatos meus.- os dois admiraram juntos a grande quantidade de garrafas no teto – São noventa e nove poemas.- Senhor Edgar sorriu com os lábios pequenos e esbranquiçados – Falta um para o centésimo. Ah… Você quer que eu escreva um poema sobre você?- ele perguntou contente com a idéia que teve.
— Um poema sobre mim?- indagou Priscila se intrigando.
— Sim, amanha faço um poema sobre você.- Senhor Edgar prometeu tirando um cigarro de cravo do bolso e um isqueiro enferrujado vermelho. Ele tragou o cigarro e Priscila se concentrou na terrível impressão que a estranha árvore proporcionava a ela.
— Como sou distraído Priscila. – ele soltou a fumaça do cigarro – Essa é a Tijuana. – ele apontou para a árvore – É minha amiga de todas as horas. Tijuana é conhecida como a árvore que assombrava os vivos no passado e era muito temida, mas para os mortos sua aparência feia não significa nada, ela é como um animal de estimação.- Priscila balançou a cabeça concordando. Suas mãos contorciam-se inquietas – Porque está usando esse vestido de noiva? Lisbela a obrigou?
— Sim, ela me obrigou. – Priscila começava a sentir vontade de sair.
— Lisbela Reis, um tormento aos vivos e aos mortos. – ele reclamou olhando para a árvore.
— Eu não sei como fugir. – Priscila disse sem refletir antes.
— Não há como fugir de Lisbela Reis. – ele jogou o cigarro no chão e pisou com vontade – Ela matou seis empregadas e matará mais. – Priscila estava cada vez mais sem esperanças.
— Eu vou embora. – Priscila se levantou do banco. Senhor Edgar a olhou descontente.
— Você não vai embora. – ele afirmou e ela ameaçou correr até a porta. Senhor Edgar puxou seu braço e ela foi arremessada aos carpetes do chão.
— Fique quieta Priscila!- Senhor Edgar segurou seus dois braços apoiado sobre ela que estava estirada nos carpetes. Olhou bem em seus olhos e ela os fechou aguardando seu fim. Os olhos amarelos de Senhor Edgar pareciam furiosos e ele a encarou segurando seus braços e notando o medo pulsando em seu rosto. Ele poderia torná-la uma moradora eterna de SweetVillage. Ele poderia torná-la uma assombração para sempre. Ele poderia matá-la. O barqueiro fechou os olhos e a beijou. Logo o mundo parava, logo seu corpo sentia algo mais estranho que assombrar, logo seu terror sentia algo mais sufocante que o medo. Priscila se levantou tentando se firmar após o que havia acontecido. Um rápido e intenso toque de lábios. Porque ele não me matou? Porque havia feito justamente o que menos esperava? Ela passou a manga do vestido na boca sentindo naquele momento uma sensação de nojo e estranheza superior ao medo.
— Eu tenho que ir embora.- ela se encaminhou para a porta.
— Encontre-me na igreja.- Senhor Edgar disse alto enquanto ela já corria – Lá eles não podem entrar.- O barqueiro tocou em seus lábios sentindo um leve sabor de vida. Olhou para Tijuana e sentiu que a árvore opinou.
Ela decidiu voltar á casa. Aquele beijo havia a desestabilizado. Ela temia que seu psicológico fosse abalado, não poderia ser refém de seu medo e muito menos de sua própria mente. A chuva começava a diminuir, a barra do vestido encharcada e o resto do vestido estava úmido. As gotas molharam o chão do quarto quando ela depressa entrou e cobriu o corpo inteiro com o cobertor. Seus cabelos molhados encostaram sobre o travesseiro pouco macio. Sobre o céu quase roxo adentrando na noite, ela encolheu-se no cobertor quando ouviu passos suaves cada vez mais próximos. A maçaneta girou e a patroa abriu a porta sorrindo para a empregada.
— Ainda são nove e meia, já esperava que você não estivesse mesmo conseguido dormir.- ela deu mais dois passos e Priscila temeu que notasse o chão molhado – Leva um tempo pra se acostumar, mas nós duas aprenderemos a conviver juntas.- Lisbela tirou a bela aliança de vidro do dedo e se aproximou da janela – Agora não preciso mais disso, já que tenho você. – ela a atirou pela janela. Sorria como uma criança.
— É. – a empregada tentou cobrir o queixo e a boca – Eu não estou com muito sono, mas vou tentar dormir.
— Desculpe-me pedir algo no seu horário de descanso, mas já que está sem sono você poderia comprar um quilo de farinha de trigo na mercearia? Fecha ás onze.- Lisbela abriu a mão e lá havia uma cédula azul – Cinco Reis.
— Claro. – Priscila aceitou no mesmo momento – Pode deixar o dinheiro em cima da cama.
— Eu agradeço sua disposição, os pães tem de ficar prontos. É por um bom motivo. – Lisbela colocou a cédula em cima do cobertor – As crianças já estão na cama e eu vou tomar um banho.
— Claro Lisbela.- Priscila tentou passar tranquilidade.
A patroa bateu a porta. Priscila aguardou até que ela entrasse no banheiro mesmo que isso não fizesse diferença. Saiu do quarto com a cédula e passou pela sala. Abriu a porta da casa. Seria agora o melhor momento pra tentar fugir? Priscila decidiu ir até a vila. Apressava-se arrastando a barra do vestido na trilha de terra e imaginava como passaria entre os moradores nas residências da vila. Passou pelo parque, pelo celeiro e seguiu correndo sentindo o cheiro da relva molhada. Quando chegou á vila notou alguns moradores de costas. Rápido correu até á igreja e entrou agradecendo aos céus por não ter sido vista. Assustada deu passos de costas no tapete carmesin e virou-se para o altar da igreja. O barqueiro deu um leve sorriso tragando o cigarro de cravo. Era belo e assustador.
— Eu vou te ajudar a fugir Priscila. – Senhor Edgar se aproximava dela caminhando pelo mofado tapete vermelho.
— Eu precisava falar com Florinda, ela pode me ajudar a fugir – Priscila tentou trazer dois deles para o seu lado.
— Florinda Contini? A sexta empregada morta. É uma boa mulher, teve um cruel destino. Mas… Eu também ajudarei você, não sou um espírito atormentado como eles que morreram queimados aqui na igreja, e não acho justo que sua vida termine assim.
Priscila sentou no banco da igreja quando Senhor Edgar tomou sua mão.
— Quando meus lábios tocaram os seus, eu mesmo que não acreditava que era capaz de amar depois da vida…- estava bem próximo novamente – … Me dei conta naquele exato instante que estava totalmente errado, chegou uma hora que não queria se aproximar de você…- Seus braços já estavam sendo tocados por ele.
— Então não se aproxime. Não se aproxime!- Priscila relutou sem perceber que seus olhos amarelos já a conduziam a deitar no banco da igreja. Os olhos dele, eram amarelos como girassóis vibrantes, agora percebera melhor que sua estranha e pálida pele tornavam seus olhos ainda mais bonitos – Por favor eu só quero embora.
— Não estou te forçando, você deitou por conta própria no banco, seus lábios estão tremendo por conta própria, seus olhos estão fixos nos meus porque você quer, você veio até aqui, então o que você deseja?- Senhor Edgar fitou sua expressão desorientada, seus olhos eram negros, mas nem tanto. Seus cabelos louros agora mal-cuidados espalhavam-se no banco. Priscila o puxou pelo cachecol acinzentado e mergulhou novamente. Sentiu aqueles lábios congelados derreterem lentamente nos seus e aos poucos reacendia um sentimento estranho, mas um sentimento tão vivo que há muito tempo não o sentia ao lado de Dérick.
O sino badalou. Eram dez da noite. Priscila se assustou ao ouvi-lo e se levantou do banco. Virou-se para trás e avistou um garoto na janela da igreja. Não! Andy. Andy deu um sorriso irônico a espionando pela janela da igreja.
— Eu preciso ir, eu preciso sair. Andy nos viu…- Priscila correu pelo tapete vermelho – Adeus!- ela gritou.
— Priscila!- ele queria ajudá-la mas ela não colaborava. O barqueiro a observou sair da igreja e mais uma vez tocou nos próprios lábios prometendo guardar aquele abrasador beijo em uma das garrafas.
Priscila não viu mais o garoto. Temia profundamente, mas se quisesse sobreviver teria que enfrentar e suportar a fúria de Lisbela. Ela correu ofegante pela trilha com a mão esquerda na boca sentindo ainda o gélido beijo que recebera. Ela já se aproximava da maior casa de SweetVillage. Andy acenou para ela na janela e em seguida sumiu.
Priscila segurou na maçaneta e apreensiva a girou abrindo a porta. Ninguém a esperava na sala. Ela deu o primeiro passo tocando o piso quando sentiu uma respiração. Seus braços se arrepiaram e seu medo voltou a surgir. As mãos a empurraram com um grito de horror. Priscila foi lançada ao tapete e caiu virando-se rápido para a porta. Sua respiração acelerou e seus batimentos cardíacos dispararam.
— Não preocupe-se com o trigo, ele foi apenas um bom motivo para descobrir o grande motivo de você ter fugido do quarto.- Lisbela andou até a empregada que arrastava-se no tapete em busca de fugir – Sua traíra…
— Onde estão as fotos de Mateus?! – Priscila indagou berrando – Onde estão as fotos do meu filho? – exigiu saber.
— Eu guardei meus quadros e joguei aquelas porcarias no lixo. – a expressão de Lisbela estava terrível – Você não brinca comigo mais. – Priscila sentiu a ira tomar conta do seu corpo.
— Porcarias são aqueles merdas dos seus filhos.- Priscila esbravejou com os cabelos caídos sobre o rosto. Sua ousadia teve consequência.
Lisbela a puxou arrancando seu colar e a jogando com uma força tremenda sobre a estante. Priscila bateu as costas na estante e caiu no chão com a pancada. Lisbela jogou o colar no chão e pisou com ódio estraçalhando o colar abre e fecha.
— Seu filho não ouve nenhuma de suas orações, nenhuma! Viva maldita!- Lisbela sorriu a provocando e a ira vibrava em seu rosto.
— Mentira! Mentira!- ela gritou com força enquanto as lágrimas não cessavam.
Priscila ameaçou se levantar e a patroa a puxou pelo braço arremessando-a até a parede da entrada da cozinha. Priscila sentiu a pancada na parede da sala e Lisbela terminou de puxá-la para a cozinha. A água da pia transbordava quando a torneira pareceu fechar automáticamente. Priscila gritava sendo puxada por uma força anormal até ela. Lisbela segurou sua cabeça e mergulhou a cabeça da empregada na pia. Priscila se debateu e suas mãos tremendo batiam na parte aluminada da pia. A água sufocava-lhe a garganta. Uma. Duas. Três batidas com as mãos e os dedos tremelicando quando Lisbela tirou sua cabeça da água. Com a face inteira pálida, ela vomitava a água e alimentos que havia ingerido no último dia.
— Está mais calma mocinha?- Lisbela segurou seu queixo e sua cabeça pendia para cair – Agora está mais calma mocinha? – A patroa indagou e a empregada balançou a cabeça com muita fraqueza. Lisbela a soltou e Priscila desabou no piso vomitando ainda no chão e cobrindo o piso de vômito verde.
Ela abriu a segunda gaveta do armário e tirou o uniforme quadriculado.
— Você não merece usar esse vestido. – Lisbela jogou o velho uniforme em cima dela – Vista-o! Agora.
Priscila tentou se erguer. Tirou o vestido aos poucos enquanto suas mãos tremiam e ela soluçava. Colocou o uniforme quadriculado e Lisbela foi até ela. Priscila estava detonada.
— Você vai trabalhar… São dez e meia, mas a noite é uma criança pra você Priscila. – a empregada a olhava desorientada. Lisbela sorriu ajeitando seus cabelos encharcados colados no rosto para trás. Tocou nos brincos de andorinhas. Priscila não olhava em seus olhos e a patroa segurou seu braço.
— Vamos pra fora. – Lisbela a levou caminhando depressa para fora da casa – Vamos pra fora. Venha comigo. – Ela vai me matar, ela vai me matar. Priscila foi levada até ao lado esquerdo da casa. Não havia a relva alta e as flores antes presentes ali. Havia apenas uma pá e a terra.
— Segure a pá. – Priscila segurou a pá e olhou para a terra — Você vai começar esse serviço agora e não ouse parar até eu voltar e mandar você parar.- entoou a voz firmando a ordem.
— O que você quer que eu faça?- Priscila indagou.
— Eu quero que você cave um grande buraco, grande o bastante pra caber uma pessoa. – Lisbela mostrou o tamanho com os braços abertos – Você vai cavar a sua própria cova. – os olhos da empregada brilharam.
A patroa saiu após a ordem ser dada. Priscila cavou. Não havia outra alternativa. Tentar fugir naquele momento significava suícidio. Já eram quase onze. Lisbela permitiu que descansasse um pouco fora da casa. Continuou á cavar ás cinco da madrugada. Os calos ardiam em suas falanges e a palma da mão suava como sua testa e seu pescoço. O uniforme já bem sujo de terra e as dores nas costas a incomodavam de tanto se inclinar. Cavar a própria cova era mais que cruel, era devastador naquele momento de confusão mental. Tocou os próprios cabelos e pareciam esfarelar, pareciam enfarinhados. Olhou para as falanges e viu estranhas manchas negras, não, não eram calos. O que é isso? Grandes mechas caíram fazendo de seu cabelo repicado e mais curto. Meu deus! A cova já estava pela metade quando escutou o som de um veículo. Priscila fincou a pá na terra. O veículo pareceu estacionar, e então alguém desceu dele. Quem chegava á residência de Lisbela Reis?
Ela ouviu os passos suaves vindo por trás. Passos sutis. Álguem estava próximo.
— Priscila?- a voz firme e feminina disse. Priscila se virou reconhecendo a voz. Voltou-se para ela, completamente perdida.
— Maristela? – Priscila temeu logo que reconheceu a sogra. Bem vestida com um blazer marrom claro, calça jeans e uma blusa preta por baixo do blazer. Elegante chefe de cozinha. Cabelos até os ombros e castanhos. Bem lisos e pomposos. Priscila não acreditava que Maristela estava ali, não sabia como reagir e imaginava que a sogra colocaria tudo á perder.
— Trabalhando a essa hora da manhã? – Maristela deu um razoável sorriso e a abraçou seca, como quase sempre – Eu vim do sul, passei em Zellwéger e não havia ninguém na casa de vocês, Dionísio me avisou que estavam… Neste lugar. – Priscila continuava paralisada e sua tensão aumentava cada vez mais – Tedysson e Érika estão vindo também.
— O quê? Eles estão vindo?- Priscila mostrou-se cada vez mais tensa. Suas mãos estavam agitadas.
— Tedysson e Érika virão, algum problema?- Maristela perguntou notando sua aparência – Se for sua separação com o Dérick, não estamos mais preocupados com isso. – Priscila seguia sem respostas – Onde está Dérick e Ítalo? Priscila, estou falando com você. – a nora colocou a mão sobre a cabeça e sua tensão parecia chegar ao limite – Você está molhada? Seu cabelo está estranho… Cavando um buraco no quintal dessa casa? O que há de errado Priscila? O que há de errado aqui?
Priscila parecia sem saída quando alguém surgiu por trás. Olhou para a sombra negra, e virou-se para o o que havia de pior em seus pesadelos.
— É verdade… – a camponesa disse tomando o olhar de Maristela – O que há de errado aqui Priscila?
Maristela fitou a patroa da cabeça aos pés desfazendo de seus trajes no olhar. Priscila olhou pra Lisbela sem escapatória e voltou a encarar Maristela sem encontrar palavras quando seu olhar se envidraçou.