O Circo de Pennywise
Capítulo 8
Corre, Rafa, corre!!
A penumbra descia do teto como fios de seda. O tilintar do Circo (por vezes distante) despertava as criaturas que habitavam à nave (que apressadas, rastejavam rumo à parede). Aranhas enormes se alimentavam dos casulos, sugando o sangue que jorrava nas teias. Heitor encontrava-se dentro de um deles. Sentia dor no ombro, lugar que recebera a mordida da besta. Lembrava-se apenas de ser arrastado para dentro de um pesadelo com insetos canibais. Despertado pelo barulho dos aracnídeos, tentava alcançar um dos bolsos da sua calça. Se não se enganara, tinha colocado um canivete no bolso esquerdo para cortar um pedaço do estofado do Land Rover. Não fizera por falta de tempo, mas por receio de estragar o banco do passageiro. O barulho ensurdecedor das aranhas transformava os corredores numa horda de sombras e grunhidos. Heitor precisava se apressar antes que percebessem suas intenções. Se o vissem tentando escapar, a fúria de suas bocarras engoliria suas entranhas.
Heitor estendeu seu dedo indicador rumo ao bolso. De olho nos monstros na parede, conseguiu retirar pedaços do casulo que estavam perto de seu joelho esquerdo. Tomando cuidado para não deixá-los cair, enfiou a mão no bolso e puxou o canivete. As aranhas mexeram nas teias, grunhindo para suas vitimas.
Com cuidado para não tirá-las do transe, Heitor fez um corte no fundo do casulo que o prendia ao teto. Ele se estatelou no chão, machucando a perna. O grito de dor foi abafado junto com a palavra merda. As aranhas atentaram para o movimento, mas deram de ombros. A comida consumia toda a atenção e energia da trupe de aracnídeos. Heitor precisava se afastar das bestas-feras que se alimentavam da população de Le Dio.
No chão de gosma, tentou enxergar um feixe de luz ou algo que pudesse lhe orientar. Sem conseguir ver o horizonte com clareza, continuou se arrastando na sujeira dos casulos. Quanto mais se arrastava, mais longe ficava do barulho. Por um momento, Heitor acreditou que não conseguiria se afastar das aranhas e das teias. Foi pensando em Maria Tereza que procurou chegar num lugar seguro. Preocupava saber que estava sozinha e a mercê dos monstros daquele Circo. Precisava protegê-la, assim como o garoto.
Enquanto se arrastava, seu ombro dilacerava a cada arrancada de seu quadril. Sua condição física não importava. Ele tinha que sair dali, encontrar um buraco que pudesse se esconder para esperar o momento certo para fugir. Tivera sorte quando enfrentou o Palhaço, que por algum motivo, o deixou vivo. Tanto faz. Daria o seu jeito. Em algum lugar haveria uma saída. Ele só precisava ter paciência.
***
Isa procurava por Beto entre as barracas. Rafa tentava alcançá-la, com medo de perdê-la de vista.
_ Espera, Isa. Vamos procurá-lo no estacionamento. Talvez esteja comendo alguma coisa do lado de fora.
A garota deu de ombros para o que achava o menino. Seu irmão não tinha dinheiro para comprar coisas no circo; e muito menos para tomar um lanche do lado de fora. Ele não faria isso sem ela. Sempre dividiram tudo, desde o alimento aos fardos da vida. Eram mais que irmãos, e sim, companheiros.
_ Espera, Isa!
A menina parou para esperá-lo. Sem conseguir esconder sua angústia, passou as mãos pelo cabelo.
_ Não estou gostando, não estou gostando.
Rafa compartilhava de sua preocupação. Aquele circo sombrio tinha garras poderosas.
_ Vamos procurá-lo dentro das barracas. Talvez tenha entrado só por curiosidade.
_ Beto não me deixaria para trás. Alguma coisa aconteceu com ele _a menina mordia os lábios. _ Precisamos encontrar um daqueles anões. Talvez saibam onde ele está.
_ Aquelas criaturas são estranhas, Isa. Eu não gosto delas.
_ Nem eu. Mas é o que temos no momento.
Um som de uma trombeta veio do picadeiro. Uma fumaça escura se esparramou pelas arquibancadas através da boca do palhaço. Rafa esperou que o dono da festa aparecesse no meio daquela coisa com suas brincadeirinhas sem graça. A despeito disso, o barulho ficou mais forte, quase insuportável. O que se viu foram insetos enormes sendo cuspidos das entranhas da besta.
_ O que é aquilo?
_ Corre, Isa! Corre!
***
As arquibancadas não aguentaram o peso da plateia ensandecida. As imensas moscas atacavam as crianças desavisadas. Elas grudavam nas vítima para enchê-las de ovos e larvas. Isa derrubou Rafa no chão quando uma se aproximou dele.
_ Precisamos sair daqui _ Isa colocou as mãos na cabeça para tentar evitar as moscas. _ Vamos avisar a polícia.
Pessoas tentavam rasgar a lona com os pedaços da arquibancada.
_ Estamos presos, Isa. Ninguém vai conseguir sair desse lugar.
_ Precisamos tentar, mas não vou sem o Beto.
Rafa olhou para o picadeiro. A bruma era mais densa dentro do Palhaço.
_ Se não podemos sair, vamos entrar _ ele apontou para a bocarra.
Isa assentiu com a cabeça.
_ Como vamos chegar até lá? _ Perguntou, pegando sua mochila.
_ Eu não sei – havia moscas sobrevoando a cabeça dos dois. _ Esses bichos não saem da bruma. Precisamos ficar abaixo dela, como agora.
_ Você é esperto, garoto, muito esperto.
Os dois se arrastaram para perto do picadeiro. Vez ou outro esbarravam em insetos mortos. As pessoas tentavam se defender com os pedaços da arquibancada, acertando-as e derrubando-as no chão. Elas não respiravam fora da bruma, faziam parte do circo.
_ Deitem no chão _ gritou Beto. _ Elas não conseguem sobreviver fora da bruma.
Outro som de trombeta fez com que tapassem os ouvidos. Os que tentavam arrebentar a lona foram atacados por uma espécie diferente de insetos. Suas penas compridas lembravam pernilongos. Beto engoliu sua saliva densa quando viu que se alimentavam de sangue.
_ Não olhe, Isa. Não olhe.
Mas ela olhou. Seus lábios tremeram ao ver que mais pernilongos saiam de dentro da bocarra escancarada da besta.
_ Vamos! _ Gritou para Rafa. _ Vamos dar o fora daqui!
Os que sobraram se jogaram no chão em silêncio. Isa pegou uma lanterna na mochila. Quando a acendeu, viu as moscas agrupadas perto do picadeiro, esperando que algum desavisado colocasse a cabeça na Bruma. Um tremer na lona balançou o circo. Isa iluminou o teto.
_ Meu Deus!
Imensas aranhas desciam sem se preocupar com a bruma.
_ Corre, Rafa, Corre!
Os dois se arrastaram para perto do picadeiro. As aranhas começaram a lançar suas teias nas pessoas que se espremiam perto das barracas. Uma delas acertou o pé de Rafa,.
_ Ahhhhhh!!!
Isa segurou sua mão esquerda, colocando os pés num dos dentes do palhaço.
_ Não me solta, Isa. Não me solta.
_ Eu não vou soltar.
Quanto mais Rafa se mexia, mais a teia apertava o seu pé.
_ Eu não vou conseguir te segurar por muito tempo, não vou _ Isa tentou puxá-lo com mais força. _ Ahhhhh!
Quando as mão se soltaram, a aranha levou apenas uma das galochas de Rafa. O menino abraçou a adolescente. Ele olhou para ela com os olhos cheios de lágrimas.
_ Obrigado.
A bruma cuspia seus insetos sobre à plateia – para que se alimentassem de seus corpos e vísceras. Tanto a menina, quanto o menino, tremiam com as mãos nos ouvidos e os olhos fechados. Eles deram de ombros para o medo e entram na boca do palhaço. Ela se fechou quando sentiu o cheiro das crianças.
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