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O Circo de Pennywise – Capítulo 5 – As entranhas do Circo

O Circo de Pennywise

Capítulo 5

As entranhas do Circo

 

Um dia depois da tempestade em Le Dio, Heitor acordou cedo e fez o seu famoso café de coador. De vez em quando olhava pela janela, para a neve de caíra durante toda a madrugada. Assim como Rafa, aquela pulguinha atrás da orelha insistia em provocá-lo. Pensara no Circo durante muito tempo; e nas mortes estranhas que acontecera na cidade. Nunca fora supersticioso, mas nunca vira neve no verão. Por não acreditar no oculto, deu um beijo em Maria Tereza (que dormia enrolada nos cobertores) e puxou a porta do quarto do sobrinho. Não queria despertá-los tão cedo. Se desconfiassem do que pretendia fazer, não o deixariam ir.

Antes de sair pela porta da cozinha, deixou um bilhete grudado na porta da geladeira (no estilo americano) e buscou por seu Land Rover na garagem. A neve cobria um pouco da saída, mas nada que o impedisse de chegar até a rua.

Tudo em Le Dio parecia calmo. Ninguém se atentou para a morte estranha de Mr. Richard. Esse torpor coletivo o intrigava. O homem que fora triturado por seu veículo de trabalho morava em Le Dio havia 30 anos e ninguém prestou solidariedade à família. Heitor odiava o jeito dos americanos em lidar com as perdas. Pareciam feitos de gelo.

O caminho até o descampado estava coberto por uma fina camada de neve. Heitor deu à volta (entrando no mato baixo dos arredores) e estacionou do outro lado da rodovia, para que ninguém pudesse ver seu Land Rover na estrada. Ele percebeu que não havia neve em volta do circo, sequer afundando a lona. O lugar estava seco e limpo. Indiferente ao que acontecera em Le Dio, aquele circo continuava ileso as consequências do clima. Apenas uma bruma o rodeava, como se estivesse flutuando nela. Heitor agachou para sentir o cheiro daquilo. Não havia nenhum odor característico, apenas uma sensação de pisar em algodão doce.  Talvez fosse um truque do circo para atrair as crianças. Se visto pelos olhos de um marqueteiro era até interessante, se não fosse, sinistro.

Heitor tocou a lona com um certo receio. Mesmo sendo cético em relação ao sobrenatural, admitia para seus botões que aquele lugar lhe dava arrepios. Não havia entrada, nem mesmo um corte discreto na lona. A textura congelava as pontas dos dedos, como se uma gosma o protegesse. Ele caminhou em volta de sua estrutura e notou que não havia vigas de sustentação para as torres; que o circo se mantinha sem uma corda para prendê-lo com alicerces. Não havia nada que os grudasse no chão. O circo simplesmente flutuava na bruma de algodão doce. Heitor se afastou com cuidado. Um barulho no mato chamou sua atenção. Alguém corria com passos pequenos e ritmados.

_ Hei! _ Gritou vendo uma sombra no descampado. _ Tem alguém no circo? Estou procurando pelo gerente.

Ele nem percebeu que falava em português.

_ Hey! Anybody in the circus? I’m looking for the manager.

Ouviu-se um riso do outro lado da estrada. A lona se mexeu num muxoxo preguiçoso. Um rasgo pequeno apareceu no topo da torre, descendo até o chão. A lona se abriu deixando transparecer a escuridão do lado de dentro.

_ Meu Deus! O que é isso?

Heitor pensou em buscar uma lanterna no carro, mas desistiu da ideia quando viu a abertura. Talvez quando voltasse não estivesse mais lá. Ele escutou outros risos e o farfalhar de pés no lado de dentro. Ele olhou para os lados, com medo que alguma fera o abocanhasse.

“Deixe de bobagens, Heitor. É só um circo cheio de truques para atrair os visitantes. Não existe monstros ou coisa parecida. Rafa é apenas uma criança. O que ele pensa do mundo são as expressões do seu videogame”

Heitor entrou pelo rasgo. A lona se fechou em seguida, trancando-o lá dentro. Os dois anões se aproximaram como uma aranha, caminhando sobre as patas e esguichando um som estridente de suas bocarras sanguinárias. Como um inseto, subiram nas torres de olho na estrada. O Land Rover havia sumido, assim como a neve em Le Dio. Apenas o frio persistia, para que a respiração densa das criaturas mantivesse a estrutura da nave flutuando.

 

***

Heitor tateava no escuro em busca de uma saída. Conseguia sentir a textura da lona, mas não o rasgo por onde entrou. O chão que pisava era liso, como de uma mesa de bilhar. A lona se afastara de repente, deixando-o perdido no meio do nada. Ele caminhou socando o ar, procurando por uma diminuta entrada de sol. Sem querer soltou um riso nervoso, quase de desespero. Sua respiração ficou profunda, como num filme de terror.

_ Hey? _ Sua voz trêmula ecoou pelo Circo. _ I need to talk to the manager.

A resposta veio com um riso estridente

Heitor caminhou para o que acreditava ser o picadeiro. As luzes do teto se acenderam, cegando-o momentaneamente. Seus olhos aos poucos deixaram transparecer a luz. A lona que cobria o circo era tão negra quanto o céu de um nevoeiro. Apenas as luzes que surgiram, sabe-se lá de onde, iluminavam o ambiente. Eram fortes e jamais vistas por ele em outra construção. O lado de dentro era bem maior do que se aparentava ser do lado de fora. Não via picadeiro, mas, sim, barracas que pareciam saídas de um parque de diversão. Havia a conhecida barraca do beijo, a do cachorro-quente, o Freak Show e a Sala dos Espelhos; e muitas outras espalhadas pelo seu interior. No centro de tudo uma plataforma feita de madeiras antiga, entalhada a mão. Era o picadeiro do palhaço que sorria com sua boca escancarada e língua esticada como se fosse um tapete vermelho. A pintura do rosto lembrava dos palhaços antigos, do começo do século XX – com seus olhos esbugalhados que pareciam saltar das órbitas. Os dentes de vampiro prendiam a estrutura no chão. Aquilo era assustador. Um cheiro de pipoca vinha das fundações, assim como de algodão doce e amêndoas torradas. Aquilo fora feito para agradar as crianças; deixá-las confusas, e ao mesmo tempo, assustadas. Heitor deu dois passos para trás. Não gostaria de encontrar com aquele palhaço.

_ Heitor _ uma voz vinha lá de dentro. _ É você, meu filho?

_ Mãe?

Sua mãe havia morrido há 10 anos. Todos disseram que morrera do câncer que tivera nos seios.

_ Sou eu, sua mãe.

_ Como …

_ Não tenha medo, sou eu querido.

_ A Senhora morreu _ Heitor parecia confuso. Os risos dos anões no fundo das barracas. _ Como me achou?

_ Você me encontrou, Heitor. Não gostaria de ver novamente sua mãe?

Outras luzes foram acesas no circo. Uma música de picadeiro tocava do lado de fora.

_ Isso não é possível. A senhora morreu, eu sei que morreu.

_ Você me matou, Heitor. Me deixou definhando no Brasil para seguir com aquela mulher bem mais velha que você. Sem remédio, dinheiro ou hospital decente. Me destes as costas, filho ingrato!

_ Isso não é verdade. Eu tentei trazê-la para os Estado Unido.

_ Mentira! _ Era o grito da sua mãe. _ Mentiroso! Hipócrita!

Os risos estridentes não o deixavam em paz. Ele tampou os ouvidos, mas a voz da mãe continuava ressoando na sua mente confusa.

_ Não pode ser, não pode ser _ dizia para si mesmo. _ Você morreu, eu sei que morreu.

_ Então olhe para mim, Heitor. Eu estou aqui.

Sua mãe apareceu dentro da boca do palhaço com uma luz mortiça iluminando seu rosto. Estava vestida com sua surrada calça jeans, o rabo de galo característico e a boca fina rebocada com batom de cacau.

_ Desculpa, mãe. Me desculpa.

O choro de Heitor se misturava com os risos dos anões.

A mulher de cabelos longos caminhou para dentro  do palhaço.

_ Não, mãe, espera.

Heitor tentou tocá-la. A mulher sumiu e as luzes se apagaram. Novamente o tatear das mãos de Heitor no escuro. Ele não encontrava a saída, o caminho por onde entrou.

_ Mãe! Mãe!

O frio veio com lufadas de vento. As risadas ficaram próximas demais. Algo puxou-o pelos pés, arrastando-o para dentro da bocarra do palhaço.

_ Mãeeeeeee!

Seu grito foi abafado pela música que vinha lá de dentro. Um tilintar de passos rápidos e a batida de dentes. Os olhos vermelhos da besta encaravam sua presa com os lábios de um predador. Os caninos pontiagudos do palhaço se projetavam para fora como num vampiro. Heitor levantou as mãos tentando afastá-lo de sua garganta. As garras de dedos longos seguraram seu pescoço, impedindo-o de se levantar. O sangue regurgitou da boca aberta da vítima fazendo a fera salivar.

_ Ahhhhhhhhhh!

O homem que padecia aos pés do demônio tentou se arrastar para uma das barracas. O palhaço o puxou pelas pernas para dentro de sua alcova. Os anões se transmutaram nas aranhas descendo pelas frestas que se abriam na lona. Eram muitos. Seguiam o chamado do seu mestre. As luzes se apagaram e o silêncio abraçou o descampado.

Ouvia-se apenas  o mastigar da besta.

***

Em Le Dio, Rafa desperta assustado. Acordara depois de um pesadelo sinistro. O vento soprava lá fora, sinal que uma nova tempestade se aproximava. Ele deixou sua cama enrolado no edredom e foi para a cozinha beber um copo de água. Da janela viu que as gotas de chuva tinham uma cor vermelha, parecida com sangue. Ele voltou a subir as escadas correndo.

_ Tia, tia _ tocou-a no braço.

_ O que foi, Rafa? _ Ela estava sonolenta pelo barulho da chuva.

_ Eu posso dormir com a senhora?

_ O quê? _ Ela franziu a testa para o sobrinho.

_ Deixa, vai?

Ela olhou para o lado da cama que era de Heitor. Como ele não estava, deixou que o sobrinho se deitasse ao seu lado.

_ Eu nunca pensei que tivesse medo de chuva _ disse arrumando o travesseiro do sobrinho.

-E não tenho _ sussurrou o menino.

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