“O fogo ardeu por 24 horas exatas consumindo
a antiga casa dos Vassiliescu até às fundações.
Até que à meia noite se extinguiu
como se jamais tivesse iniciado…
E um retrato, intacto, foi tudo que restou…”
Gazeta de Itapiranga
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– Eu avisei a eles que não deveriam vir morar aqui, mas os jovens nunca nos ouvem, não é mesmo? – disse o velho delegado Vianna sacudindo a cabeça com pesar. – Que tragédia…
– Não sabemos ainda se havia alguém na casa. – replicou Müller, o capitão dos bombeiros da cidade. – Ainda estamos procurando corpos ou vestígios que…
– Encaremos a realidade, rapaz. – disse o veterano, cortando-o com um gesto de mão, olhando em volta. – Acredita mesmo que se estivessem vivos já não teriam aparecido? Há mais de 24 horas que ninguém os vê…É questão de tempo até encontrarem os corpos. Isso se o fogo tiver deixado algo para ser encontrado…
– Senhor delegado, capitão Müller, venham aqui! Rápido!! – chamou um dos bombeiros, que revirava os escombros do que já havia sido a ampla sala da mansão.
Ambos correram até o local, parando, perplexos, com o que lhes era mostrado.
– Impossível!!
– C-como pode? Ela…Ela está…Eles…
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Era pleno verão e fazia um esplêndido dia de sol…Menos na propriedade dos Vassiliescu. Já os haviam avisado…Aquele lugar era eternamente sombrio e gelado. Aconchegando-se no casaco, Helena olhava para a mansão enquanto Cristea, seu marido, tirava as malas do carro. Em seu apogeu devia ter sido um prédio magnífico, mas agora era pouco mais do que uma sombra de seu faustoso passado. Seguia o estilo das construções do sul da Romênia do século XIX, com seus dois andares, uma entrada em forma de arco, 3 janelas no andar superior. Uma delas, a do meio, jazia aberta. Nada se via de fora, mas Helena tinha a inquietante sensação de que se olhasse de perto, iria ver alguém lá, espreitando das sombras…
Como que hipnotizada, ela se aproximou olhando para cima, apertando os olhos, procurando enxergar na escuridão. Quase podia vê-lo…
Com a respiração acelerada, ela fez menção de entrar e subir as escadas até o aposento em questão, mas quase deu um salto quando sentiu uma mão em seu ombro.
– Sou eu, Helena! – Ele riu da cara assustada da esposa. – O que foi? O fantasma da mansão já veio lhe dar as boas-vindas?
– Fantasma? – ela estremeceu, lembrando-se da estranha sensação que tivera, do “vulto” que julgara ver…
– Sim, senhora. – sussurrou Hans, o caseiro, um velho de olhos azuis já meio nublados, filho dos primeiros imigrantes alemães que colonizaram aquela região do extremo-oeste de Santa Catarina. – Todo mundo da região conhece a história do “Príncipe Louco”.
– Pare, Hans! Vai assustar minha esposa. Venha, querida, vamos entrar. Mandei fazer uma reforma no interior, mas procurando conservar ao máximo o estilo da mobília. Sei que adora essas coisas antigas. Logo começaremos as obras da fachada.
De fato, os olhos amendoados de Helena brilharam de entusiasmo, esquecendo momentaneamente o estranho episódio.
Eles haviam se conhecido na USP, quando ela fazia História da Arte e ele Medicina, já terminando residência em ginecologia e obstetrícia. Dividiram uma mesa do refeitório há três anos e nunca mais se separaram.Seis meses depois estavam casados, logo após a formatura de ambos. Eram um casal perfeito. Helena Akishino, dona de casa e professora de artes, uma bela sansei, frágil e delicada, e o renomado doutor Cristea Vassiliescu, médico dedicado e promissor.
Chegando ao pórtico, Cristea, num gesto galante, pegou Helena no colo pra entrar com ela como se fossem recém-casados. Ela riu, envergonhada pela presença do caseiro, logo atrás deles.
O rapaz, rindo do constrangimento de Helena, foi entrando no amplo hall de entrada, deixando-a descer. Ajeitando os cabelos castanhos revoltos, Cristea fez um gesto com a mão mostrando o ambiente à volta deles.
– Gosta? Sei que ainda parece um pouco lugúbre, mas estou certo de que logo transformaremos esse mausoléu num verdadeiro lar. Aos poucos deixaremos tudo do nosso jeito, meu amor.
A jovem foi entrando e olhando tudo, admirada. No entanto, a inquietante sensação de estar sendo observada ainda persistia, chegando ao auge quando chegou ao salão principal e se deparou com o imenso retrato de um jovem de beleza incomum.
– Cristea…Quem é ele? – Ela perguntou, sentindo um estranho nó na garganta e sem conseguir desviar o olhar dos olhos cinzentos e estranhamente vivos da pintura impressionantemente realista.
O olhar alegre de Cristea subitamente tornou-se sombrio, sua expressão fechando-se numa carranca aborrecida.
– Hans, o que significa isso? – o rapaz falou, entredentes. – Achei que havia mandado retirar essa coisa daqui.
– Sinto muito, senhor…Providenciarei para que seja retirado agora mesmo. – O velho baixou a cabeça, humilde. Sabia que isso já havia sido feito várias e várias vezes, sem sucesso, mas duvidava que acreditassem nele.
– Espere! – protestou Helena, intrigada. – É um retrato belíssimo! Por que tirar? É algum antepassado seu, querido?
– Este, minha flor de cerejeira, é Stefan Vassiliescu…
– É o Príncipe Louco, senhora. É chamado assim porque num acesso de loucura matou toda a família: seus pais, esposa e dois filhos. Depois também acabou tirando a própria vida com a espada ainda tinta do sangue dos seus.
– Somente meu bisavô escapou porque estava fora na época, estudando num internato na Suiça… – murmurou, Cristea, ainda sombrio, encarando o retrato com hostilidade. – Se queremos dar um ar mais leve a essa casa melhor tirar essa lembrança macabra daí.
Estranhamente pesarosa, Helena concordou e ficou olhando o velho caseiro retirar ele mesmo a pintura de cima da lareira.
Quando Hans saiu da sala levando o quadro embora, o jovem médico soltou o ar, suspirando aliviado e, sorrindo, estendeu a mão à sua esposa.
– Venha, vou lhe mostrar o resto da casa.
**************
Novamente estava lá. Helena não entendia. Vira o retrato ser retirado! Quem o havia trazido de volta? O velho Hans? Mas por que?
Ileana…Ileana…
Helena acordara ao som daquele nome…Parecia uma versão estrangeira do seu…Quem a chamava?
Olhou para o marido que dormia a seu lado na cama. Teve vontade de acordá-lo, porém desistiu. Ele chegara tão cansado da cidade aquela noite! Segundo ele, atendera a um parto muito difícil…Achou melhor deixá-lo repousar.
Ileana…Venha a mim, inima mea1…
Quando deu conta de si estava descendo as escadas em direção ao salão, só parando diante do retrato de Stefan Vassiliescu.
O que estou fazendo aqui? Eu devo ter sonhado…Vou voltar já para a cama e…
Mas não conseguia se mover…Não podia tirar os olhos da pintura…
Tratava-se da imagem em tamanho natural de um belo homem ainda jovem, com longos cabelos platinados, quase brancos. Fora pintado da cintura pra cima contra um fundo escuro, impenetrável, a longa capa negra que usava se destacando num surpreendente jogo de luz e sombra. De perfil, o rosto perfeito se encontrava iluminado, como se emergisse da superfície sombria. O efeito geral era o de um homem em carne e osso, quase em 3D. Os olhos cinzentos era tão vívidos e intensos que a hipnotizavam e os lábios pareciam se distender levemente num sorriso malévolo, como se ele fosse falar e se mover a qualquer instante…
As badaladas do relógio do corredor ecoaram no silêncio noturno anunciando a meia-noite . Helena estremeceu, assustada. Sentindo uma ligeira tontura, fechou os olhos. Quando os abriu a seguir não estava mais sozinha…
– Voltaste…Finalmente… Ileana…Dragostea mea2…
O homem do retrato estava ali na frente dela, estendendo-lhe a mão. Helena gritou.
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– Querida, o que foi?! – perguntou Cristea, alarmado com a palidez da esposa. – Acalme-se…você teve um pesadelo…Está tudo bem… – abraçou-a, tentando acalmá-la.
Helena acordara gritando, sentando na cama. Olhou em volta, ofegante, enquanto Cristea a abraçava, estranhando não estar na sala.
– Sonhei com ele…O homem do retrato…Stefan… – balbuciou, tremendo feito varas verdes.
– O que? – estranhou Cristea. – Não pensei que tivesse ficado tão impressionada com ele…Mas não se preocupe, agora que o retrato foi retirado, você logo o esquecerá. Agora durma, meu anjo…Eu estou aqui pra te proteger… – Ele a ajudou a deitar, embalando-a até que ela adormecesse em seus braços.
Assim que ela caiu em sono profundo, Cristea, inquieto, desceu até o salão e qual não foi sua surpresa ao ver que realmente a famigerada pintura lá estava.
Aquele velho idiota me paga…Porque diabos ele trouxe essa coisa amaldiçoada de volta? – pensou Cristea, irritado.
Subindo numa cadeira, ele retirou o quadro e o levou para o sótão, largando-o lá de qualquer jeito.
– Pronto! Chega dessa besteira de fantasmas! Esta é minha casa agora! – falou, trancando a porta.
Enquanto ele se afastava de volta ao quarto, uma risada sinistra soou em sua esteira.
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Helena acreditava que estava ficando louca…Dias se passaram e rara era a noite em que não sonhava com Stefan Vassiliescu. Primeiro no sótão…Ela vasculhara a casa inteira atrás do retrato e, então, começaram os sonhos diários…Ela subia até o sótão e ele estava lá, implorando que o tirasse daquele lugar, seduzindo-a, cortejando-a…Acreditando que se livraria daquilo se devolvesse o retrato ao seu devido lugar, Helena implorou ao marido que tirasse a pintura do sótão. Obviamente, Cristea achou aquilo um disparate sem tamanho. Aborrecido ao extremo e quase cego de ciúmes mas se esforçando para não demonstrar, a questionou o porque de tanto interesse por aquela obra macabra. Ela não sabia explicar, apenas queria acabar com os pesadelos e acreditava que isso aconteceria se o retrato voltasse ao seu lugar de honra acima da lareira no salão principal.
Como não sabia negar nada à sua amada esposa, aceitou muito à contragosto, porém os aborrecimentos com aquele assunto estavam bem longe de terminar…Muito ao contrário.
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– Você disse que iria nos deixar em paz…Que deixaria esta casa para sempre se eu o libertasse… – Helena sussurrava enquanto Stefan, ou seu espectro, acercando-se dela por trás a envolvia num abraço e roçava o nariz e os lábios frios ao longo do alvo pescoço da jovem. Os cabelos dele lhe fazendo cócegas.
– Fata mea1…É verdade que somente tu tens este poder porém libertaste apenas meu retrato, não a meu espírito. – sussurrou, segurando uma mecha de cabelo entre as mãos translúcidas e levando aos lábios.
– Então mentiu pra mim! – ela gritou, afastando-se dele.
– Jamais…Mas nem tudo me é dado falar e há coisas que vocês, os vivos, entendem como querem… – Stefan pareceu magoado, apesar da fisionomia imutável. – Matei por amor a ti, minha bela, somente teu amor pode me libertar. Essa é a minha maldição.
Helena abriu a boca, mas não pôde emitir nenhum som. Baixou a cabeça, sem poder olhar pra ele.
– E-Eu…Eu sinto muito…N-Não posso… Você está morto… E eu…Eu amo… Cristea….
E saiu correndo dali, deixando-o só.
Stefan podia tê-la segurado ali, mas preferiu deixá-la ir… Por enquanto…
Então ela me preteriu em favor daquele verme…Veremos…Ninguém diz não à Stefan Vassiliescu…
Um trovão soou forte, chamando sua atenção. Aproximando-se da janela da frente viu que uma forte chuva caía, fazendo eco com os pensamentos tempestuosos que lhe enchiam a alma de caos e ódio. Viu, então, o carro de seu rival parar de qualquer jeito na frente da casa. Cristea saiu cambaleando, o velho caseiro se apressando a ajudá-lo a entrar.
Grande imbecil…Podia ter me poupado o trabalho e ter se arrebentado de encontro a alguma árvore…Mas, espere…O que temos aqui? – Curioso, sondou os pensamentos de Cristea e o que descobriu o fez dar uma gargalhada satisfeita.
Pensando melhor…Fico feliz que sejas um parvo sortudo e tenhas chegado são e salvo…Serás muito mais útil para mim assim…
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Helena sentia-se cada vez mais pesada conforme a gravidez se aproximava do fim…Porém estava feliz. Os pesadelos com Stefan haviam cessado, bem como os ruídos perturbadores, as vozes chamando-a no meio da noite, a angustiante sensação de estar sendo observada o tempo todo…Havia somente o retrato ainda perturbadoramente presente… Mas Helena procurava evitá-lo na maior parte do tempo.
Cristea se desvelava em mimá-la, parecendo estourar de orgulho pelos filhos gêmeos que estavam pra chegar. Enfim, como ele havia dito logo que chegaram, aquele, aos poucos, parecia estar se transformando no lar que almejavam.
No devido tempo, a hora do parto chegara. Cristea, em virtude das condições precárias das estradas de terra e a iminência da chegada das crianças resolveu fazer o parto em casa, ainda que, em razão da má-fama da propriedade, não tivesse conseguido enfermeiras ou babás para auxiliá-lo.
Tranquilo, preparou o necessário e, graças à sua habilidade, tudo correu sem maiores problemas.
– Deixe-me vê-los… – Helena disse, cansada, esticando os braços.
Após limpá-los e vesti-los, o jovem médico olhou por um longo momento para as crianças, dois meninos, com um brilho diferente no olhar, ao qual quem quer que visse de fora, interpretaria como emoção…
– Claro, minha querida… Já vou levá-los…
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Com as mãos tintas de sangue, Cristea irrompeu sala a dentro, fora de si.
– Maldito!! Onde está? Apareça!!
Silêncio. A sala permanecia escura e vazia.
– Stefan!!
Os gritos ecoavam sem resposta. Dominando o ambiente como sempre, o enorme retrato de Stefan Vasiliescu o observava, impassível.
– Desgraçado!! Veja!! – Ele estendeu as mãos para a tela, exibindo-as. – Eu os matei!! Sua vadia e seus filhos!! Dois bastardos de cabelos brancos como os seus!!
Calou-se à espera, olhando nos frios olhos cinzentos da tela surpreendentemente realista. A única coisa agora audível era o tique-taque do relógio de carrilhão. Meia-noite.
As 12 badaladas do relógio não se fizeram esperar. Lentas, pungentes, acusadoras. Ao soar a última, uma risada irônica e arrepiante se fez ouvir.
– Meus filhos? – Ele riu ainda mais alto. – Cristea, meu caro, eles eram seus! Não pertenço mais a este mundo há séculos. Não sou matéria, não tenho um corpo além deste retrato. Como poderia engravidá-la?
Ainda com o bisturi nas mãos, Cristea retrocedeu, sacudindo a cabeça, em descrença.
– Só podem ser seus!! – o jovem médico gritava, alucinado. – Ninguém se aproxima desse lugar esquecido por Deus! Nenhum vizinho em quilômetros!E eu não tenho cabelos brancos! Não sou um Vassiliescu! Sou um maldito bastardo adotado! Sempre soube disso!!
– Tens certeza? – a voz vibrava, reverberando por todo o ambiente. – Sim, és um bastardo e és adotado, porém de fato tens o sangue da minha família em tuas veias. O patriarca gostava de se divertir com as empregadas e, por um capricho, ou por ter perdido todos os filhos, quem sabe, resolveu perfilhá-lo.
– Impossível…
Quando Cristea ergueu o olhar se deparou com a figura espectral de Stefan na sua frente encarando-o, entre acusador e irônico.
– Herdaste a loucura dos Vassiliescu, meu caro. – e olhou para as mãos sujas de sangue. – Queres prova maior que essa? Ileana e as crianças não foram tuas únicas vítimas … Eu sei de tudo…Posso ler em tua alma como em um livro escancarado. Foram muitas… Dezenas de vítimas! Por isso se mudavam tanto de cidade… Para que ninguém desconfiasse do “amável Doutor Cristea”, ginecologista e pediatra acima de qualquer suspeita…
– Cale-se!!
Cristea investiu com o bisturi no rosto de Stefan, atingindo somente o vazio.
– Pelo menos, Ileana não sabia de nada. Foi poupada de tua podridão. Pobre criatura ingênua e tola… – Stefan ia rodeando o rival, indolentemente, irritando-o ainda mais. – Ela o amava, sabia? Não foi fácil seduzi-la…
– Então você confessa!!
O espectro sacudiu a cabeça, olhando-o com desprezo.
– Tu realmente não a merecias…Não ouviste o que eu disse, biltre? Muito bem… Ela era minha! – Ele parecia furioso agora. – Sempre foi! Mas tu sempre te intrometeste, não é? Meu pai a entregou a ti porque ele já tinha planos para seu herdeiro… – vendo a confusão nos olhos do rapaz, Stefan continuou, a voz incisiva e dura, se aproximando até encurralá-lo contra a grande lareira que servia de base ao retrato. – Eu cumpri meu dever como um bom filho que era…dei herdeiros ao meu clã, mas Ileana não saía da minha cabeça. Me deixava louco vê-los juntos, ver o olhar dela me buscando, acusador e aflito…Ela me amava!Íamos fugir juntos depois que me livrei de ti, mas meu pai a matou…E eu matei todos eles…Minha adorável e distinta família…
Os objetos na sala começaram a voar, chocando-se com os os móveis e espatifando-se, movidos pela fúria crescente de Stefan. Algumas velas caíram sobre as cortinas…
– Quando os vi aqui tanto tempo depois…Achei que finalmente ela seria minha, mas parece que conseguiste conquistá-la…Ela me recusou! Afinal, sou apenas um fantasma, uma sombra errante presa a este maldito retrato… Mas não sou de desistir e tu me deste a oportunidade!
Apavorado, Cristea se viu imprensado contra a lareira, sua garganta sendo esmagada num aperto de aço pela mão de Stefan. O bisturi ensanguentado largado no chão a seu lado.
– C-como?…
– Dizem os antigos que os fantasmas podem se tornar carne uma única vez…Mas não usei essa oportunidade rara para fornicar com tua esposa, como pode ver, meu caro…Não foi necessário…Como disse, me forneceste o canal…Lembra-te daquela noite de tempestade quando chegaste tão bêbado que o caseiro precisou carregá-lo até o quarto?
Cristea, até então vermelho pelo esforço de respirar, empalideceu visivelmente.
Stefan riu.
– Ah! Vejo que te lembras pelo menos até aí! Creio que o resto podes adivinhar…Essa amnésia conveniente não foi somente pela bebida…Aliás, pude ver em tua mente o que querias esquecer…Parece que a Besta dentro de ti clamou por sangue mais uma vez…Quem foi agora? Uma de tuas clientes da cidade? Uma vadia? Não importa… – Stefan o jogou ao chão, enojado. – Graças a teu corpo pude desfrutá-la e tenho certeza que foi a melhor noite da vida dela… apesar dos parcos recursos à disposição…
– Maldito!!
Privado do bisturi, Cristea agarrou o atiçador da lareira e se atirou sobre o espectro de novo. Stefan manteve-se imóvel dessa vez.
– Tolo! Eu não posso morrer de novo! Quanto a você…
Sangue. O bisturi de Cristea jazia enterrado fundo no coração de seu dono. Ele morreu sem um grito, mas o olhar cheio de ódio e assombro dispensava palavras. Stefan o olhava, impassível.
– Adeus, Cristea… Agora posso descansar em paz, ainda que no inferno…
Olhando em volta, viu fogo por todos os lados, tomando conta da sala e outras dependências. Não demorou a atingir o retrato e o corpo do médico a seus pés.
Viu, então, uma mão diáfana estendida em sua direção. Aquilo perturbou-o, sobremaneira, quando ergueu o olhar e viu de quem se tratava. Não esperava por aquilo. Hesitante, segurou aquela mão e sorriu, como só se lembrava de sorrir quando era muito jovem e cheio de sonhos.
Enquanto as vorazes chamas a tudo consumiam, Stefan Vassiliescu desaparecia. Para sempre.
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O mistério do retrato salvo do incêndio da propriedade ancestral dos Vassiliescu entrou definitivamente para o hall das lendas de Santa Catarina, como o Leprosário assombrado de São Francisco do Sul, a casa de Monte Verde ou a Pedra da Noiva. Teorias as mais diversas e improváveis foram criadas e descartadas, mas o que teria acontecido de verdade no local, como aquele retrato teria resistido ao sinistro que não deixou vestígio sequer dos corpos de seus moradores ou – o mais surpreendente – a própria existência do retrato em si, jamais foi descoberto.
Uma espécie de altar budista, repleto de amuletos para exorcizar maus espíritos, foi montado pela família de Helena, numa espécie de memorial montado onde o retrato ficou exposto. Não que alguém fosse até lá com frequência, na verdade… Apesar dos cuidados, relatos aterrorizados dos poucos visitantes curiosos contam do fantasma, não do Príncipe Louco, mas do doutor Cristea que vagaria pelo lugar, especialmente nas proximidades de uma frondosa cerejeira de flores vermelho-sangue, aos pés da qual ele teria enterrado sua esposa e filhos recém-nascidos.
Mas o que havia de tão impressionante e assustador no famigerado retrato, afinal? Era a pintura representando o temido Stefan Vassiliescu? Não, não era, embora ele também lá estivesse retratado. Era uma bela foto de família… Mas, oh, não! Não mostrava a família que ele havia matado dois séculos atrás, mas uma outra completamente inusitada e improvável: Em pé, à esquerda de uma luxuosa poltrona de espaldar alto, estava Stefan, imponente e orgulhoso; sentada na poltrona, estava Helena, bela como uma rainha, etérea como uma fada. Nos braços de cada um deles, dois meninos de cabelos brancos e olhos amendoados, sérios e compenetrados…
FIM
1 Inima mea: meu coração, em romeno (N.A)
2 Dragostea mea: Meu amor, em romeno (N.A)
3 Fata mea: Cara minha, em romeno (N.A)
Parabéns Dea, amei. E o instrumental que vc escolheu deu mais um toque sentimental a história!!
Que bom! Objetivo alcançado com sucesso! A ideia era essa mesma!
Parabéns Dea, amei. E o instrumental que vc escolheu deu mais um toque sentimental a história!!
Que bom! Objetivo alcançado com sucesso! A ideia era essa mesma!
Ótimo Conto Andreia! Adorei! ❤💕
Ótimo Conto Andreia! Adorei! ❤💕