Você está lendo:

A Casa Que Sobra

Minha mente ainda está girando, mas nada pode me fazer desistir de dar este relato. Eu preciso ter algum alívio em minha alma e exorcizar o que aconteceu me parece a única forma de conseguir isso.

Eu nasci no interior do Pará, numa cidade supersticiosa próxima à Paragominas, mas ainda longe o suficiente para não ser lembrada. Minha família, uma mistura de muitas culturas do Brasil, não era tão o modelo perfeito da tradicional família brasileira, porém sempre fizemos dar certo, pelos motivos certos.

É estranho crescer em uma casa que sobra, não por crescer nela em si, mas sim por como as pessoas te veem por morar numa dessas. Os colegas de escola não querem te visitar (e mesmo que quisessem os pais não permitiriam), os transeuntes atravessam a rua para não pisar na calçada e os carteiros jogam as encomendas da calçada, para não ter que pisar na grama.

Mesmo hoje não sei como a lenda começou, só sei quando foi.

Cinquenta anos atrás houve uma tempestade torrencial. Tão forte que os ventos levaram as casas de madeiras, tão forte que as pessoas acharam que o mundo estava acabando, tão forte que fez com que o nível do rio que abastecia a área subisse e colocasse todas as três cidades próximas embaixo d’água. As pessoas fugiram e, depois do desastre ambiental reparado, voltaram para ver se algo tinha sobrado.

Sendo minha cidade ribeirinha, a realidade foi inevitável e tudo estava devastado, com exceção de três lugares: as casas que sobram. Numa os proprietários morreram dentro, pais e cinco filhos; a segunda já era abandonada desde antes, tão antiga quanto a própria cidade; a terceira foi a da minha família, onde todos se salvaram. Por assombro, inveja ou puro humor maldoso, essas três casas ganharam fama de amaldiçoadas e minha família, por ter sobrevivido, de fazer bruxaria.

Mesmo que mendigos e drogados dissessem ver coisas estranhas de madrugada e as pessoas se benzessem ao passar em frente, o tempo é algo que nunca para e cinquenta anos passaram, as superstições suavizaram sem eu nunca ver uma prova.

Toda minha linhagem viveu naquele casarão de três andares. Geração após geração. Nascer, crescer e morrer. Era o ciclo de toda vida. Em 1995, quando fiz treze anos, o da minha avó se encerrava, com apenas o padre, o coveiro e a família presentes no cemitério. Às cinco de uma manhã nublada.

Acredito que alguns dos boatos só permaneciam dado aos hábitos estranhos de vovó, que agia estranho o tempo todo. Nunca em paz, nunca parada e ela quase nunca dormia. Ela não saia de casa desde antes de eu nascer, vivia olhando para os lados e, de madrugada, eu a escutava gritar toda a noite.

Voltamos para casa em silêncio, e logo todos foram requisitados na grande sala de estar. Haviam sofás e poltronas para todos, um tapete felpudo grande e macio e não faltavam livros e discos nas estantes, pois fomos acostumados desde cedo a amar a leitura e a música.

Todos se sentaram e, minha mãe, filha mais velha, foi para o lugar que pertencera a minha avó. Não sentou, seu semblante vazio e olhar perdido refletidos pelo vestido preto, lhe davam um aspecto cadavérico, por isso me escondi atrás do meu pai.

— Sabemos que a mamãe de-decidiu encurtar sua vida, mesmo tendo vivido bem mais do que qualquer outro membro da família que viveu na mesma… condição. Começamos do zero agora e, quando o mais novo dos que estão aqui nessa casa presentes morrer, dos que conheceram a mamãe, daremos fim a isso. — Ela pigarreou, olhou pra mim de relance e recebeu um envelope de seu irmão. — Vou ler as últimas palavras dela, escutem com atenção, pois vamos queimar tudo depois.

Talvez por essa última sentença, nunca consegui esquecer das palavras ditas naquela carta, pela voz profunda e rouca de minha mãe:

Me perdoem, meus amores, pois não aguentei. Viver quase trinta anos sendo perseguida foi demais para mim. De toda forma, escrevo para dar as regras que vocês não deveriam ter de seguir, mas vão, se quiserem viver bem.

1º – Queimem todas as coisas que me pertencem e todas as fotos em que apareço;

2º – Troquem todas as portas e espelhos da casa, portas abertas são como um convite;

3º – Evitem falar no meu nome e se esforcem para esquecer de mim.

4º – Não se mudem até que isso acabe.

5º – Não saiam dos quartos após à meia noite, não importa o que aconteça, até que o sol esteja no céu, nenhum de vocês deve andar pela casa. Não usem cadeados, pois é uma questão de escolha.

Prendemos nessa casa para que não estivesse em todas as outras, fizemos um sacrifício para aliviar a dor daqueles que perderam tudo, quando algo além da água subiu naquele dia do rio. Espero que sejam mais espertos que eu.

Com amor, Inocência Assunção

Pela primeira vez tive medo da nossa casa, mijei nas calças e, ao terminar, minha mãe pediu que todos começassem os preparativos e que ela já voltava, só ia me ajudar. Assim fizeram. Um grupo foi para o quarto de vovó, outro recolhia tudo que era espelhado na casa e o terceiro foi para a garagem de ferramentas. Mamãe subiu comigo, me deu um banho e escolheu a roupa.

— Filho, — falou, penteando meu cabelo, — me prometa que nunca, jamais, vai sair do seu quarto depois da meia-noite. Nem se alguém te chamar, se baterem na porta ou se sentir sede. Durma cedo, tudo bem?

— Sim, mãe, prometo. — Chorei e a abracei, meu coração batia descontrolado, tremia todo e sentia o estômago queimar.

Depois ela desceu e assisti tudo da minha janela, fizeram um buraco enorme no quintal e queimaram tudo, até a cama e as portas. Foi fácil substituir tudo, era o trabalho da família, marcenaria.

Ninguém almoçou naquele dia e, mesmo com o estômago roncando e queimando, não saí do quarto. Só fomos comer perto das nove da noite e depois as dezessete pessoas que moravam naquela casa se recolheram.

Tremi e tive pesadelos a noite toda, chorei e gritei, mas ninguém veio e eu não saí. As primeiras semanas foram as piores e com o passar do tempo notei que nada acontecia, fui me acalmando.

Aos quinze anos já dormia bem. Aos dezessete não acreditava em nada, comecei a pensar que aquela coisa toda eram medos insanos de uma velha maluca que conseguiu assustar a família inteira. Com vinte já gritava pela casa minhas dúvidas em forma de indireta. Vinte três me fez ter vontade de desobedecer às regras da vovó para provar como todos estavam errados. E fiz isso, aos vinte e cinco, depois de uma briga bem feia onde tentaram me convencer de que existia um monstro pela casa e apanhei por expressar em bom tom que vovó era maluca.

Por mais que não acreditasse em nada, foi difícil abrir a porta, eu tremia e suava, minha respiração parecia presa na garganta. Coloquei a mão na maçaneta de metal, gelada em comparação a minha mão quente e suada. Medos antigos são difíceis de superar, estão enraizados de forma tão profunda quanto o conhecimento de quem somos. Num momento rápido, abri a porta com violência, já passava muito da meia noite.

Não sei o que esperava, mas tive alívio e decepção ao encarar apenas a parede do corredor escuro. A respiração saiu leve e tremida e meu estômago ainda se retorcia, se acostumando com a ideia de que tudo estava bem. Sai do quarto e acendi a luz. Não havia nada. Desci as escadas, fui até a cozinha e bebi um copo d’água. Pensei ter visto algo em cima do armário. Nada. Ri sozinho, estavam todos errados; o povo da cidade, minha família e minha avó.

Lavei o copo e voltei para cima, deixei a porta do quarto aberta por despeito, queria que toda a família visse, quando acordassem pela manhã, que nada havia me acontecido. Ao deitar na cama, me senti estranho, inquieto. Olhei para o corredor vazio e escuro, que parecia me encarar, observei todo o quarto algumas vezes e, bem no canto, de forma quase imperceptível, uma silhueta só um pouco mais clara que a escuridão parecia me encarar.

Senti cada músculo do corpo tencionar, liguei o abajur ao lado da cama, mas não havia nada. Meu coração batia acelerado e tentei me convencer de que estava vendo coisas pelo cansaço e por ter passado tantos anos escutando as histórias da família. Cobri todo o corpo com o lençol e tentei dormir, mas tive pesadelos a noite inteira.

Pela manhã, todos sabiam o que tinha acontecido, a porta aberta (por despeito) havia cumprido seu propósito e todos me olhavam com decepção, tristeza ou raiva. Minha mãe chorou o dia todo e não conseguia olhar para mim. A verdade é que estava vivo e bem, apesar de tudo.

Na noite seguinte, os pesadelos se repetiram, me impedindo de dormir e, ao acordar no meio da madrugada, pude escutar, por alguns segundos, um arranhar constante. Decidi ficar acordado, no mais completo silêncio, e observar. Escutei passos leves pelo quarto a noite toda, uma respiração quase imperceptível e o barulho dos meus brinquedos de criança sendo movidos, porém, sempre que olhava, nada havia.

As coisas pioraram com o passar dos meses, já não conseguia mais dormir à noite, meu inferno começava à meia-noite. Além dos pesadelos, eu sabia que estava sendo observado a cada instante, sentia que até meus pensamentos podiam ser lidos. Nunca via nada, mas sabia que estava ali. A certeza veio quando encontrei, por acidente, as marcas de arranhão embaixo da minha cama, finas e fundas.

Tentei trocar de quarto, porém, descobri pela família, que nada daquilo iria adiantar, seria seguido aonde quer que fosse, vovó havia tentado tudo. Pesquisei em todos os lugares disponíveis, me confessei ao padre, que tentou nos ajudar. E, ano a ano, perdia as esperanças de que algo fosse me acudir.

Comecei a sentir sua presença perto de mim, rodeando a cama, mas era uma sombra que se escondia ao olhar, sempre muito perto da vista e nunca em foco, me observando com seus grandes olhos pretos e sem íris, que refletem a luz. Todas as noites a mesma coisa acontece e, com o tempo, vamos absorvendo os detalhes, além dos olhos, ele não tem boca, apenas uma fina linha de pele, sua estatura é de uma criança de quatro anos.

Aos trinta anos não conseguia mais sair de casa, pois ele estava em todos os lugares, perto de mim, sempre no canto da visão periférica, até de manhã. Não consegui namorar, não seria justo trazer alguém para uma vida amaldiçoada. Passei a beber o dia todo, na esperança de que conseguisse dormir de noite. Não deu certo e piorou tudo.

Um computador chegou em casa e comecei a passar às noites em claro procurando respostas, até que achei fóruns e pessoas que vivam como eu, relatos vindos de vários lugares do mundo. Nada que explicasse o que acontece aqui.

Passei uma noite em cada uma das outras casas que sobram, era como passar uma noite no meu quarto, só que muito pior, fosse vendo as marcas de unhas e manchas de sangue no berço da família que tentou se salvar, ou por ir no grande casarão abandonado, onde cada corredor parecia conter coisas ainda piores do que aquela que assombrava minha vida.

Não sei o que aconteceu nessa casa, ninguém fala nada, não sei se começou de fato no desastre ou se já aconteciam antes mesmo dele; não sei de onde isso veio ou quando vai parar. Por isso estou contando minha vida nessa carta, preciso me certificar de que as pessoas saibam da verdade antes que eu vá, pois não suporto mais viver com isso.

Então, caso se levante à noite e saia do quarto, se tiver a impressão de que viu alguém no escuro, pode ser que não tenha sido apenas impressão, sinto muito, sigam as instruções e sobrevivam.

Fim

 

A Widcyber está devidamente autorizada pelo autor(a) para publicar este conteúdo. Não copie ou distribua conteúdos originais sem obter os direitos, plágio é crime.

  • Adorei esse Episódio 7, A Casa que Sobra…leveza e rapidez para narrar uma história que nos pega de surpresa e nos arrasta para o suspense e o medo… Parabéns, Lia!!! ??

  • Adorei esse Episódio 7, A Casa que Sobra…leveza e rapidez para narrar uma história que nos pega de surpresa e nos arrasta para o suspense e o medo… Parabéns, Lia!!! ??

  • Pesquisa de satisfação: Nos ajude a entender como estamos nos saindo por aqui.

    Leia mais Histórias

    >
    Rolar para o topo