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Requiescat in Pace

FEVEREIRO, 1889

— I —

A maria-fumaça vinha ao longe rasgando o silêncio daquela madrugada fria, quando o coração do maquinista já se agitava em agonia. O arrepio lhe percorreu a espinha e o nó em sua garganta pareceu lhe sufocar.

— Homem. Estás bem? — O amigo de turno ao lado, pareceu preocupado.

Não houve respostas, apenas o silêncio.

— Túlio… Os presságios atormentam sua cabeça outra vez? — o amigo perguntou assustado.

— Deve orar, Manuel. Deve orar — respondeu o maquinista, olhando para o relógio com uma profunda morbidez na alma. — Acaba de dar 00 h!

As mãos trêmulas do homem de meia idade vacilavam quando este traçou sobre si, o santo sinal da cruz, rogando a Deus proteção. No vagão de trás, o choro estridente das crianças ao redor trazia desconforto aos imigrantes no trem. Um choro perturbador, embargado de tristeza como um cortejo fúnebre. Apenas uma criança permanecia serena e quieta em meio às outras. Um garotinho de cabelos negros, de sorriso malicioso.

۞

Na última estação Fepaza, os imigrantes foram deixados no último turno e, em seguida, a maria-fumaça seguiu sua viagem noite adentro pelos trilhos prateados. A vasta neblina serpenteava pela velha estação ferroviária quando a maria-fumaça partiu. O mal já estava entre eles, e não costumava tirar cochilos. Perambulava à espreita, buscando uma brecha, uma oportunidade.

Miranda, a imigrante recém-chegada, sabia disso. Estava bela em suas roupas finas, ainda em luto. O véu negro sobre o rosto ocultava o ódio que ainda sentia. Sabia que era apenas uma bruxa órfã, mas ainda era uma escrava. Preferia estar morta, ao invés de encarar os olhos do garotinho ao lado.

Não, aquele não era mais um humano, e sim apenas mais um corpo vazio, uma casca. O corpo morto do menino era apenas a lembrança de um pacto, um acordo. A traição fora árdua e vil.

Lembrou-se de Marjorie, sua mãe, há muito tempo falecida. A Órfã da família Bechersville perdera recentemente o único familiar vivo, o irmão, que logo morrera vítima de tuberculose. Aceitara então a oferta: o poder, os dons da necromancia. A mãe e o pequeno irmão de volta, trazidos do selo, o poder para dominar a vida e a morte; uma barganha com as trevas, um pacto sem volta.

 Mas logo os planos mudaram. O corpo do irmão morto agora pertencia a um novo dono: Amunáh, o demônio-deus mais poderoso de todo círculo pagão. O maldito demônio ao qual confiara cegamente. Este não lhe trouxera de volta seus entes queridos do mundo dos mortos, como prometido. Tampouco cumprira suas promessas, mas apoderara-se do corpo cadavérico do irmão.

Astuto, tinha planos para a jovem. Sabia que a mesma herdara os dons mais poderosos em toda sua linhagem, a única capaz de completar o Sabbath Negro, o ritual que o traria de volta em um corpo físico definitivo, para que pudesse caminhar lado a lado com os homens e reinar sobre eles.

“Conclua o rito, minha criança…” as palavras persuasivas do demônio ainda ecoavam em sua mente, “… assim terá seus laços reatados”. Ela nunca se esquecera. Ele não cumprira. Tornou-se sua escrava desde então, incumbida de espalhar as trevas e ceifar vidas, para completar o rito final. Sua vida dependia disso. Vivia porque Amunáh queria.

Seis países diferentes, a cada um deles doze sacrifícios com garotos virgens massacrados. No fim, a missa negra, o rito final, totalizando o número da profecia: 72; a soma do número bestial 66+6. Já haviam passado por as fronteiras da Itália, Estados Unidos da América, Rússia, Finlândia, Alemanha e, por fim, agora estavam em seu destino final: Brasil. Estavam em casa.

Pela manhã, a notícia fatídica. O trem desgovernado descarrilara em desgraça, matando seus últimos passageiros ao sair dos trilhos, todos condenados pelas mãos generosas do demônio.

۞

As semanas passaram depressa, os panfletos fixados no mural da santa catedral da cidade evidenciavam o desespero das famílias. Os jovens foram desaparecendo sem deixar rastros, de forma inexplicável. Os prostíbulos eram o último paradeiro, onde eram vistos por conhecidos antes de serem engolidos pelas trevas.

A velha fazenda Rezende, agora abandonada e em ruínas, tornou-se o santuário do demônio-deus e de sua bruxa escrava. As sombras varreram a cidade fértil campineira nos meses seguintes. Todo lucro da cidade ruiu, os grandes barões donos das fazendas mais ricas de café faliram e uma peste devastadora se alastrou. Tudo em Campinas tornou-se sequidão e, a cidade de campos verdejantes, tornou-se um cemitério de pessoas vivas.

Os poderosos fugiram para São Paulo, abandonando os menos favorecidos, crianças, jovens e idosos, a mercê da desgraça. O surto de vômitos negros em poucos dias se espalhou por toda cidade, que já estava prestes a ser extinta do mapa brasileiro. A febre efervescente, a pele amarelada mórbida das pessoas abatidas, o beijo da morte.

Miranda varreu a metrópole com sua praga de nuvens negras de mosquitos, espalhando a peste letal de febre amarela, a temida maldição do vômito negro. Sua magia negra exterminou todo tipo de vida que cruzou seus caminhos, ganhando tempo na busca pelos últimos garotos destinados ao ritual final. Ardilosa, ganhara finalmente a confiança do demônio-deus.

Recompensada por seu mestre com o domínio da necromancia e de legiões menores, agora estes se curvariam perante ela. A recompensa final seria maior: o domínio sobre a raça humana, ao seu lado, e sua liberdade.

— II —

O julgamento dos inocentes se ergueu no esplendor das sombras. A estrela alva rasgou o céu, alinhando-se ao sol, reivindicando seu império. A luz verteu-se em trevas tornando o dia em noite. A grande noite de Sabbath. A podridão dos corpos abatidos espalhava o aroma da morte por toda cidade campineira. A velha fazenda, local da cerimônia negra, já estava preparada. No altar, jaziam os últimos seis virgens ainda vivos e despidos, em sua majestosa beleza humana. O holocausto tão esperado. Amunáh caminhou pelo círculo de pedras, deleitando-se da beleza de seus cordeiros. O odor do medo, o prazer de vê-los apavorados, atados pelos pulsos e tornozelos e com olhos vendados. Seus dedos percorreram minuciosamente os corpos, tão jovens e mortais. Sua bruxa já iniciara o mantra, em transição de seu poder, proferindo as palavras em latim sob o vento impetuoso, seguido de relâmpagos pelo céu negro. O incenso negro preparava o altar.

Com imponência, aproximou-se do primeiro virgem quebrando sua mandíbula com uma força sobrenatural, arrancando-lhe a língua, alimentando-se dela, enquanto o garoto agonizava de dor. Ávido, o sabor da carne macia e fresca o excitava. Dirigiu-se ao próximo, cravando seus dedos de unhas pontiagudas sobre as órbitas, arrancando os globos oculares e devorando-os com apetite. Em passos firmes, aproximou-se do mais velho, com suas garras brilhando, e, como se fossem lâminas, decepou com crueldade a genitália do garoto, que urrou como um animal. O doce cheiro da virgindade. O brilho diabólico flamejou em seu olhar quando chegou ao próximo menino, arrancando-lhe o coração do peito, ainda pulsando, e ofereceu-lhe no culto, no centro do círculo de evocação. O menor, de cabelos ruivos, se debatia quando fora silenciado. Com um brusco movimento, seu pescoço foi quebrado e um osso vertebral foi removido com ira, consagrando-o como um talismã. “Deus também precisou de uma costela de adão”, disse o demônio, blasfemando.

As velas acenderam-se com um sopro, o círculo ao redor flamejou em chamas negras enquanto a bruxa proferia a língua morta. Faltava agora o ato final. Impiedoso, rasgou com força a jugular do último cordeiro, banhando-se do sangue quente que ali fluía como uma cascata preciosa de rubis, completando o ritual.

O corpo do demônio tremeu, ao passo que a visão perdeu o foco. As forças se esvaíram e ele era pura vulnerabilidade.  O relógio de areia esvaziou-se. O tempo se consumou.

Então era essa a sensação de ser um deus-híbrido? Foi então que percebeu a traição. A maldita bruxa havia lhe preparado uma cilada. Lançara-lhe uma maldição irreversível, roubando e drenando seus poderes, o prendendo eternamente em um corpo humano, que já entrara em decomposição.

— Espero que passe seus últimos dias neste inferno cruel que ainda não conhece, chamado Terra.

Com um vento negro, desapareceu diante do demônio amaldiçoado. O pestilento agora havia se tornado o portador da peste do vômito negro, obrigando a isolar-se de todos, confinado a viver seus últimos dias rastejando sob os túneis subterrâneos da cidade grande. Miranda tornou-se a rainha dos demônios, temida entre todos, reinando sob as legiões e potestades, controlando a arte da necromancia e mudança de forma.

Havia se tornado aquilo que sempre odiara. Sua mãe não se orgulharia daquilo. As pessoas mudam. Sobre seus entes queridos, concluiu que era melhor o descanso eterno.

Requiescat in pace, meus amados…

Cumprira sua vingança.

۞

A madrugada estava silenciosa na Estação Fepasa quando a maria-fumaça finalmente chegou, apitando ao longe. Nos anos seguintes, a cidade voltou a florescer, e a peste do vômito negro havia sido erradicada. Havia boatos, porém, de que algumas cidades sofriam ainda com surtos e contaminações.

Thomás havia descido às pressas do trem, na troca de turno, como de costume. Os minutos passaram depressa, deixando Bento à espera, furioso. Odiava atrasos. Estava prestes a ir procurá-lo quando o amigo retornou, afobado, com um brilho radiante no olhar.

— Por Deus, homem, que demora pra mijar!  O que fazia tanto no banheiro?  Tu pareces até uma mulher! — reclamou, bronqueado.

O amigo sorriu, fitando a medalhinha de São Miguel Arcanjo no bolso do amigo.

— Se acalme! Já podemos ir. Além do mais, já terminei oque precisava fazer.

O velho amigo balançou a cabeça, aborrecido, e apertou a buzina da maria-fumaça, partindo pela madrugada.

— Melhor nos apressarmos, Thomás, a viagem será longa — disse ao amigo — Tens ideia de que horas são?

Miranda, ao seu lado, travestida na fisionomia do amigo, sorriu triunfante e respondeu a pergunta, sem olhar ao relógio.

— 00 hora, velho amigo. A hora do diabo. 

FIM

Não derrubo quem não merece, nem elevo quem não fizer por merecer.
Não traio ninguém, mas não deixo de castigar um traidor.
Não castigo um inocente, mas não perdôo um culpado.
Não dou a um devedor, mas não tiro de um credor.
Não salvo a quem quer perder-se, mas não ponho a perder quem quer salvar-se.
Não ajudo a morrer quem quer viver, mas não deixo vivo quem quer matar-se.
Não tomo de quem achar, mas não devolvo a quem perder.
Não pego o poder do Senhor da Luz, mas não recuso o poder do Senhor das Trevas.
Não induzo ninguém a abandonar o caminho da Lei, mas não culpo quem dele se afastar.
Não ajudo quem não quer ser ajudado, mas não nego ajuda a quem merecer.
Sirvo à Luz. Mas também sirvo às Trevas.
No meu reino eu mando e sei me comportar.
Não peço o impossível, mas dou o possível.
Nem tudo que me pedem eu dou, mas nem tudo que dou é porque me pediram.
Só respeito a Lei do Grande da Luz e das Trevas e nada mais.”

Guardião da meia- noite 

 

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