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A Reunião

2004
O ensino-médio.

Para alguns uma das épocas mais maravilhosas da vida. Para outros, a pior de todas.

Julia havia estudado naquele colégio desde a sua infância. Sempre fora tida como a garota estranha. Os longos cabelos pretos ressaltavam mais sua pele muito clara, especialmente por sempre andar de preto. Gostava de camisetas de bandas de Heavy Metal, e de usar colares de prata com símbolos pagãos, que a maioria das pessoas só sabia falar que eram coisa do diabo.

Nunca teve muitos amigos. Os poucos amigos que fizera, eram alunos tão deixados de lado quanto ela: Rodrigo, Nádia e Emanuel, que haviam sido rotulados como ‘os nerds’ e por isso, taxados de esquisitões, por preferirem conversar sobre quadrinhos e filmes, a se preocupar em seguir à risca a moda ditada pelos populares.

Mas os anos e mais anos de bullying, estavam para terminar.

Ela não queria ir para a festa de formatura. A colação de grau já parecia mais do que suficiente. Queria deixar tudo aquilo para trás, e não ver todos aqueles rostos que tanto lhe fizeram mal durante todos aqueles anos nunca mais, mas seus três únicos amigos a convenceram.

Na frente do espelho, ajeitava com as mãos com o vestido longo, preto com algumas pedrarias bordadas. Com o rosto bem próximo do espelho, terminava a maquiagem. Não era porque tinha concordado em ir para aquela comemoração que ela se encaixaria nos padrões que os outros queriam. Tateou a bancada abaixo do espelho, pegando um cordão no porta-joias improvisado: uma saboneteira no formato de concha, com um pedaço de veludo vermelho, onde ela guardava seus cordões favoritos, com anks e pentagramas. O escolhido da noite era um de seus pentagramas favoritos. Tinha limpado a prata cuidadosamente mais cedo, com a ajuda de uma escova de dentes antiga e pasta com bicarbonato de sódio, uma dica que tinha encontrado na internet e calhou muito bem. O pentagrama parecia novo quando ela colocou no pescoço. Sentiu-se estranhamente protegida.

Verificou se a maquiagem estava ok uma última vez antes de devolver todos os produtos da marca que sua mãe revendia à sua necessaire, quando ouviu um som. Um de seus livros havia caído de sua cama, a imagem de um pentagrama invertido, com um ser de terno com chifres se abriu na frente dela. Pegou o objeto do chão e o fechou, passando a mão pelo símbolo prata na capa preta, e o escondendo na sua prateleira entre os de história. Era difícil ler sobre ocultismo quando sua mãe, Evangélica, chorava pela filha não acreditar em Deus. O último que sua mãe havia encontrado, ela havia tacado fogo.

Despediu-se de sua mãe. O “volte antes da meia-noite”, que ela sempre dizia por pura preocupação martelava sua mente. Enquanto estava no taxi para o salão de festas, não esperava que não faria o caminho de volta.

A casa de festas no Alto da Boa Vista já tocava o som bem alto, enquanto os alunos das duas turmas de formandos aproveitavam a festa.

Quando ela entrou atraiu os olhares dos alunos. “Você está linda” eles diziam. Os elogios dos amigos a deixaram sem graça, não estava acostumada a isso. Sempre fora invisível, menos para os populares que tanto a fizeram sofrer.

E era claro que o grupinho estava exalando a falsidade no ar. Entre “Nossa como vou sentir sua falta”, que mais queriam significar um “Graças a Deus nunca mais vou precisar olhar pra essa ralé”. Julia só queria ficar o mais longe possível do grupo.

Clarissa era a líder. Com seu vestido lilás e os cachos dos cabelos castanhos claros presos em um penteado elaborado. Julia não sabia se era a iluminação do lugar ou se a garota estava de fato com o rosto maquiado mais claro do que a pele dela, mas não duvidaria. A garota adorava se apoiar em seu sobrenome alemão para se achar melhor do que os outros, e ai de quem a chamasse de qualquer palavra que a lembrasse de que era negra, preferia ser vista apenas com o pai, loiro de olhos claros, e uma vez que fora vista com a mãe, chegou a dizer que estava fazendo compras com sua empregada. Era de longe a pessoa mais preconceituosa que a gótica conhecera.

Jorge era o esportista da turma. Os cabelos loiros escuros casavam bem com a pele sempre queimada de sol. Ele poderia até ser bonito por fora, mas era completamente podre por dentro. Na quarta série, havia passado mais de dez minutos de frente para a lixeira, apontando um lápis, até deixar a ponta o mais afiada que havia conseguido. No caminho para sua mesa, enquanto a professora estava de costas escrevendo no quadro, ele havia deliberadamente enfiado a ponta no braço de Julia, por motivo nenhum. Na diretoria, a garota precisou ouvir que ela deveria ter provocado aquela reação dele. Ele não se lembrava mais do ocorrido, mas a garota ainda possuía uma cicatriz no braço branco.

E por último, Vanessa. A puxa-saco que fazia tudo para continuar no grupinho dos populares, mas era a mais irrelevante. Não era bonita, nem talentosa. O tom de palha do cabelo ressaltava as manchas causadas por sol que tinha pelo rosto e que tentava esconder com maquiagem o máximo possível. Era a responsável por estar sempre perseguindo e descobrindo coisas para que os outros dois pudessem usar contra suas vítimas. Nos últimos anos havia entrado em toda e qualquer atividade que Julia fazia fora da escola também.

Eram a tríade do terror daquele colégio, tinham o poder de destruir a imagem de qualquer um que não fosse digno da amizade deles. Não que eles fossem querer conhecer melhor qualquer uma das pessoas com quem faziam bullying.

Era como se fossem a realeza daquela festa.

A trilha sonora era embalada pelos top 10 das paradas, mas Julia preferia estar sentada na mesa, conversando com seus amigos. Era óbvio que os populares não iriam perder tempo com aquela ralé, então estavam tranquilos, embora ela não houvesse reparado como Vanessa a fuzilava com os olhos ao longe. Nos últimos meses, Nádia e Emanuel haviam começado a namorar, não que isso tenha atrapalhado o grupo em alguma coisa, mas em um determinado momento da noite, se afastaram da mesa para irem dançar. Um garçom loiro, com um terno cinza se aproximou da mesa oferecendo bebidas e canapés.

Enquanto comia, observava os alunos que dançavam e bebiam, comemorando ao máximo o fim do colégio. Eram quase meia noite quando ela se levantou, ajeitou a bolsa pequena e olhou para Rodrigo:

– Acho que é melhor eu ver se me pedem um taxi lá na entrada…

– Ju… – ele começou meio sem jeito. Os cabelos pretos no corte que ele usava, com a roupa social faziam ele parecer ter saído dos Beatles. – Fica mais um pouco? Eu… ia perguntar se não queria dançar?

A forma como ele perguntou e ficou instantaneamente vermelho, a deixaram meio sem jeito também. Pensou que sua mãe não iria se importar se passasse um pouco da meia-noite daquela vez.

A música que estava tocando era animada, e Rodrigo dançava de forma um pouco destrambelhada. Pouco a pouco as músicas foram dando lugar a mais lentas, e acabaram dançando mais próximos. Podia sentir o nerd tremer um pouco, e engolir seco quando começou a falar baixinho enquanto dançavam.

– E-e-eu… eu gosto de você Julia, acho que sempre gostei, nunca tive coragem de falar isso e, só tinha mais hoje…

– Eu meio que sempre gostei de você também Rô…

Por alguns instantes, ficaram se encarando sem saber ao certo o que fazer. Quando se é um excluído total você não é o tipo de aluno que tem vários namoros. Ninguém se interessa por você, e você não se acha interessante a ponto de atrair alguém. Mas meio desajeitados, enquanto dançavam, os dois arriscaram um beijo. Quando se afastaram estavam ambos corados, mas com um sorriso meio bobo no rosto.

– Até que enfim!! – ouviram a voz de Emanuel, os zoando de perto, e acabaram rindo. Julia pensou que talvez ter ido na festa não tenha sido de todo ruim.

Ela se afastou para ir até o banheiro. Quase se arrependeu ao passar pela porta e ver que uma das três cabines estava com a porta aberta, mas com vômito caindo para fora da privada até o chão. Era de se esperar com tanta gente que nunca havia bebido. Preferiu ir na cabine mais longe daquela. Enquanto segurava a saia longa ouviu alguém entrando na outra cabine do banheiro. Deu a descarga, já meio entupida, e foi até a pia.

Abriu a torneira lavando bem as mãos e sentiu um calafrio. Ao olhar para o espelho, uma imagem se formou atrás dela, não identificou muito além de um borrão cinza. Em sua mente ecoavam as palavras “Tenha cuidado”. Virou-se num impulso, mas não havia nada ali. Quando voltou o olhar para o espelho, não havia nada lá.

O som da porta se destrancando ecoou no banheiro, e a pessoa que saiu cambaleante era Vanessa. Tudo o que ela não precisava naquela noite.

– Olha só se não é a estranha! Tá gostando de brincar de popular só porque tá arrumadinha? – riu, quase pisando na barra do próprio vestido. – Veio se livrar do bafo pra continuar beijando o nerd é? – Uma coisa que Julia havia aprendido nesse tempo todo fora a não responder as provocações. E seu silêncio irritou ainda mais Vanessa. – Talvez você devesse treinar mais…

Vanessa segurou Julia pela nuca, e acertou o rosto dela contra o espelho, que trincou onde sua testa bateu, lhe tirando um pouco de sangue, e o que ainda restava de seu batom manchou onde seus lábios bateram. Tentou se soltar, empurrando Vanessa, que tonta de tão bêbada tropeçou na barra do vestido e caiu de bunda, com metade do corpo em cima do chão sujo de vômito.

– VADIAAAA! Você não é NINGUEM! E NUNCA VAI SER! – gritava a loira, sem conseguir se levantar. – Você estragou meu vestido! Você vai pagar por isso!!

A gritaria vinda do banheiro chamou a atenção de Clarissa e Jorge, que saiam do banheiro masculino, enquanto ela ajeitava a calcinha e a saia do vestido. A negra entrou no banheiro, e ele parou na porta segurando uma garrafa de vodca ainda pela metade que bebiam enquanto transavam.

– Mas que porra! – ele falou, bloqueando o caminho, e fechando a porta atrás de si para que Julia não pudesse sair, enquanto Clarissa ajudava Vanessa a se levantar.

– Tira essa roupa e dá para ela! – ordenou Clarissa. – Olha o que você fez!

– Ela me atacou, tem mais é que ficar suja pra ver se aprende alguma coisa! – Julia se defendeu, o filete de sangue já descia por sua testa branca, descendo pelos sua sobrancelha.

– EU MANDEI VOCÊ TIRAR! Você não tem direito de estar bonita! – gritou Clarissa a puxando pelas alças do vestido. O cheiro de álcool vinha forte de sua boca enquanto a gótica tentava se soltar dela.

– Ela mandou você tirar a roupa caralho! – Jorge falou quando acertou a garrafa de vodca contra a cabeça de Julia, a quebrando.

A força do impacto foi o suficiente para fazer a garota desacordar, caindo e batendo com a cabeça na pia e então escorregando contra o chão.

Por alguns segundos os três ficaram completamente sem reação, e se entreolharam. Quando voltaram a atenção para o corpo no chão do banheiro. Sangue já começava a se espalhar pelos cabelos negros molhados pela vodca que ainda restava na garrafa.

– Ela morreu? – Clarissa foi a primeira a perguntar. Vanessa ao ver o sangue acabou vomitando e sujando ainda mais seu vestido.

Jorge que se aproximou e colocou uma mão na frente do rosto dela, sem sentir nenhuma respiração.

– Que se foda se essa bosta morreu… tira a roupa dela logo! – falava Jorge.

– Não vou sair com essa roupa de bruxa! Deve ser amaldiçoada! – reclamou Vanessa.

– Quer ficar toda vomitada então? – ele rebateu.

– A gente precisa tirar ela daqui! Sem ninguém ver! Ninguém pode saber que a gente a matou! Isso vai destruir minha carreira!

– Você fala como se tivesse uma! – falou Vanessa.

– Os jardins têm uma entrada que dá pra Floresta da Tijuca, vamos largar o corpo dela lá e sumir daqui! – alegou Jorge.

O esportista pegou o braço de Julia, a erguendo do chão de qualquer jeito, jogando o braço por cima de seu pescoço e a arrastando meio de lado. Clarissa acabou apoiando o corpo de Julia pelo outro lado, e saíram com ela pela cozinha da casa de festas, alegando que ela havia bebido demais, ninguém questionou. Mas o garçom de cinza os seguiu com o olhar.

Se apressaram até onde as arvores começavam a se aglomerar e entraram um pouco mais longe na floresta, largando o corpo de Julia no chão, e se abaixando, começando a abrir um buraco no meio das folhas e terra com a mão.

– Tirem logo essa merda dela pra gente sumir!

– Eu não quero botar isso, Jorge!

– E nenhum taxi vai querer te levar toda vomitada, caralho! Façam isso logo e me ajudem aqui!

A muito contragosto, Clarissa e Vanessa tiraram o vestido de Julia, e a loira se escondeu atrás de uma arvore para mudar de roupa. Quando o buraco estava grande o suficiente, Jorge pegou o corpo nu, e riu.

– Até que a esquisitona é gostosa hein? Dá até vontade de dar uma antes de enterrar!

– Você não tá achando que eu vou dar pra você se você comer uma morta, não é?

– Ei gata relaxa, eu só tava brincando… – Ele falou jogando o corpo na cova improvisada.

O corpo caiu de qualquer jeito, e seu colar se soltou do pescoço, caindo no fundo da cova, sendo banhado pelo sangue que ainda saia do ferimento em sua cabeça. Vanessa jogou seu vestido prateado sujo de vômito em cima do corpo enquanto Clarissa e Jorge jogavam terra em cima.

Juraram nunca mais falar sobre aquilo, e seguiram pela floresta até chegarem na estrada e conseguirem um taxi.

O que não contavam era com o homem que desenterrou o corpo pouco após saírem com todo o cuidado que eles não possuíram. Pegou o pingente na poça de sangue e recolocou no pescoço dela, e se agachou, ao lado:

– Eu falei para tomar cuidado minha criança! Você tinha tanto potencial… – O homem loiro de terno cinza pôs a mão onde o sangue dela havia se acumulado, e traçou um símbolo na testa de Julia. – Mas sua vingança tem data marcada… até lá sua alma é minha!

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2018

Meia-Noite.

As telas de três celulares acendem, enquanto o aparelho vibra uma vez. A notificação de mensagem fazia as telas piscarem até que cada um verificasse.

Clarissa acordou com a luz que a tela causou no quarto. Pegando o celular sem acordar seu marido. Tinha sido trabalhoso conseguir um marido trabalhador que sustentasse suas manias de riqueza, afinal sua família havia falido e ela nunca havia aceitado esse fato.

Vanessa estava na cama com seu amante, quando ele lhe chamou a atenção para a notificação, parando de se mover em cima dela, que xingava mentalmente seu noivo, imaginando que era mais uma de suas mensagens chatas e carentes no meio da madrugada, quando só queria um pouco de prazer no meio da noite antes de mais um dia de trabalho como vendedora em shopping. Nunca conseguiu subir na vida como queria, e continuava se aproveitando dos outros.

Jorge tinha falhado completamente na vida. Estava apagado no chão do apartamento de um cômodo no meio de garrafas e mais garrafas de bebida enquanto sentia a droga que tinha injetado no braço invadir sua veia. Só viu a notificação no dia seguinte.

A mensagem era resumida: “Reunião da turma de formandos de 2004” seguido de uma data e local.

Seria bom por um dia poderem ser as pessoas que eram lá atrás: populares e com a vida ganha. Afinal todos aqueles perdedores não poderiam ter se saído melhor do que eles, não é?

No dia e hora marcados, Vanessa passou com seu noivo, Rodrigo, de Uber para pegar Clarissa e Jorge.

– Eu ainda não entendo porque o Rô não recebeu esse convite! – dizia Vanessa se ajeitando melhor no banco.

– Já falei que sempre fui excluído, especialmente por vocês. Quem montou essa festa não deve me querer nela. Eu devia ter ficado em casa… – ele suspirou desanimado. – Além do mais, pra que comemorar o dia que a Julia desapareceu?

Quando ouviram aquela frase, os três engoliram em seco.

– Ah, quem liga pra ela! – retrucou Vanessa enciumada. Ela sabia muito bem que ele ligava. Jamais admitiria a inveja que tinha de como Julia era feliz sem ser popular, enquanto ela nunca havia deixado de ser uma sombra dos outros dois.

Com a depressão que Rodrigo entrou, foi fácil se aproximar dele. Com tanta carência, logo estavam namorando, mas Julia era como um fantasma nos pensamentos dele.

Seguiram o caminho em silencio com o clima que havia se instalado. Ao chegarem, foi Jorge que se exaltou.

– Mas que porra é essa? Brincadeira de mal gosto? O endereço é esse mesmo? – ralhou com o motorista.

– Sim, é o que está marcado aqui! – respondeu, ajeitando o terno cinza e encerrando a corrida.

Estavam casa de festas onde havia sido a formatura. Com o desaparecimento de Julia, havia sido fechada para a investigação, afinal o sangue da garota havia sido encontrado no banheiro. Quando finalmente deram o caso por arquivado, o local ficou mal visto e acabou fechando as portas.

– Não parece ter festa nenhuma aqui também! – Clarissa olhava em volta, a rua escura no Alto da Boa vista.

– Deve ser lá dentro! Vamos entrar! – dizia Vanessa abrindo a porta.

– Isso não tá me parecendo uma boa ideia… – comentou Rodrigo.

Com a porta aberta, eles entraram. Não havia iluminação no caminho até a casa, mas ouviam uma batida de música e algumas luzes piscavam na casa ao fundo, que os acalmou um pouco. Enquanto seguiam para o salão. A calmaria durou muito pouco.

As cadeiras e mesas estavam bagunçadas, a poeira que as cobria era grossa, como Rodrigo constatou ao passar o dedo em cima de uma delas. As velas decorativas não deviam ser usadas há muito tempo. Havia apenas um rádio no meio do salão, e um LED estroboscópio jogando luzes no local.

– Mas que porra? – Jorge se aproximou do objeto luminoso o chutando, visivelmente puto. – Tem alguém fazendo alguma brincadeira de mal gosto com a gente? – A luz se apagou, deixando-os completamente no escuro.

– Ótimo agora você ferrou tudo!! – falou Clarissa pegando seu novo iPhone e usando a luz da tela como iluminação. Seu marido ainda pagava as parcelas. – Vamos embora daqui, são quase meia noite e é certo que fomos enganados!

O relógio de seu celular mudou lentamente de 23h59 para 00h00. O rádio parou, com a música dando lugar ao irritante chiado de uma estação sem sinal. Luzes amarelas começaram a se acender em volta deles. Uma a uma, as velas nas mesas começaram a acender sozinhas, e o grupo andava para trás, até chegarem no meio do salão.

– Isso é algum tipo de pegadinha? – perguntou Rodrigo, tentando descobrir como aquilo estava acontecendo.

– Pegadinha ou não vou sair dessa merda agora! – disse Jorge correndo até a porta que bateu forte, se trancando.

– Isso não pode estar acontecendo! – Clarissa estava tremendo, olhando em volta apavorada.

– Será que… descobriram? – Vanessa olhou a amiga com os olhos arregalados.

– CALA A BOCA! – recebeu o grito em resposta com um olhar feio na direção de Rodrigo. – Quer falar mais alto pra mais gente ficar sabendo?

– Sabendo do que? – o homem estava visivelmente confuso, olhando as duas, enquanto Jorge usava toda a sua força para tentar abrir a porta em vão.

– Que eles me mataram…

A voz ecoou por todo o ambiente, tornando impossível de descobrir de onde vinha. Jorge suava frio quando se afastava da porta, se juntando ao grupo. O choque fora tão grande que Rodrigo por alguns instantes não assimilou a informação, e olhou em volta do salão.

– Ju-Julia? –perguntava sem uma direção certa, mas quando seus olhos caíram em cima de Vanessa, Clarissa e Jorge, a ficha pareceu cair. – Ela… ela não desapareceu… VOCÊS A MATARAM?

– Rô a gente pode explicar…

– VOCÊS MATARAM UMA PESSOA!!

– Foi um acid… – Clarissa começou, mas não conseguiu terminar de falar.

– Acidente? – a voz veio mais de perto. Julia andava pelo corredor que passava pelos banheiros até os fundos.

O tempo não havia passado para ela. O vestido preto longo estava impecável, e a pele muito branca, ainda mais pálida, ressaltava pela luz das velas.

– Eu, eu achei que você tinha fugido! Fugido de mim… eu… – Rodrigo não aguentou, começando a chorar.

– É uma pena que esteja aqui Rodrigo. Aparentemente, Vanessa não se contentou em apenas me perseguir e acabar com a minha vida não é mesmo? – o olhar vazio de Julia se voltou para a loira, que se encolheu mais. – Não achei que você fosse tão baixa.

– Você está morta! Você não existe!!! – Clarissa começou a se desesperar.

– Eu estou? Vocês com certeza estão mortos por dentro… Como conseguiram conviver com isso? Quanto menos culpa sentiram, mais fiz que isso prejudicasse o futuro de vocês… enquanto esse momento não chegava.

– Do que você está falando? – Rodrigo tentava se recompor, olhando-a, e percebeu que os seus olhos brilhavam em vermelho.

Jorge correu contra Julia, de forma alucinada, atravessando o corpo da gótica, e se virou olhando para trás, vendo que ela ainda estava lá.

– O que acha que vai fazer Jorge? Me matar de novo? – o pavor no olhar dele era visível, quando ele gritou.

– Fujam! Fujam daqui!

– Não tem para onde vocês fugirem…

Ela esticou um braço e o homem foi erguido do chão. A mão de Julia esticada no ar fazia força, e ele sentia como se dedos invisíveis estivessem o estrangulando, mas a sensação que vinha de dentro era pior do que a de asfixia.

Jorge sentia como se algo líquido se expandisse dentro de si, tomando seus pulmões, como se estivesse se afogando de dentro para fora. Clarissa caiu no chão quando tentou correr, um líquido transparente começou a espumar pela boca de Jorge até escorrer sem encontrar mais para onde ir em seu corpo. O cheiro de vodca tomou conta do local, especialmente quando o corpo dele caiu no chão, de olhos abertos e vidrados. O Liquido ainda descia pelo canto da sua boca.

– Jo… Jorge? – Clarissa perguntou, ainda no chão, levando uma mão à boca percebendo que ele estava morto.

– Julia! Você não precisa fazer isso! – Rodrigo tentava dialogar com a entidade a sua frente, era real demais para parecer um fantasma, e intocável demais para parecer real.

– Eles se sentenciaram a isso… meu espirito não pôde ter paz graças a eles! E agora os espíritos deles ficarão presos aqui para sempre!

Vanessa por sua vez começou a gritar. Tentou buscar abrigo nos braços do noivo, que a empurrou com nojo, por saber que ela havia sido uma das responsáveis por matar seu amor de infância e adolescência.

– Rô…?

– Fica longe de mim! Sua assassina!! Julia, por favor, me ouve! Me deixa te ajudar! Me deixa poder dizer tudo o que eu não pude! – naquele momento Vanessa percebeu que podia ter tirado tudo de Julia, mas Rodrigo, nunca tenha sido dela.

– É tarde Rodrigo, mas seu coração não pode me trazer de volta. E agora vou pagar minha liberdade, com as almas deles! É o único jeito. Fuja, você não deveria estar aqui…

– Julia, por favor… – Rodrigo disse vendo uma lagrima descer o rosto dela antes do rompante.

– SAIA DAQUI! – com o grito os vidros das janelas se partiram, fazendo o homem se abaixar e se proteger. Quando os sons dos cacos silenciaram ele correu, seguindo pelo corredor até a saída dos fundos.

Vanessa não teve tanta sorte, demorando para se proteger e recebendo um caco grande contra a barriga. Ao sentir a dor, baixou o olhar, e tentou puxar o caco, mas parou se lembrando que poderia sangrar até a morte. Levantou o olhar na direção do espirito vingativo. Tentou se jogar contra ela, gritando, queria acertar Julia. A atravessando e caindo contra uma das mesas, o que fez com que o vidro penetrasse ainda mais fundo sua pele. Sentiu o gosto amargo subir rumo a sua boca, vomitando. Quando se permitiu olhar de novo para a entidade, os olhos vermelhos lhe causaram ânsia mais uma vez.

Vomitou sangue, vomitou até não ter mais forças para se manter em pé, caindo no meio da poça de sangue e bile. A ânsia que o cheiro trazia não passava, e sem forças para pôr para fora, se afogou em seus próprios fluidos.

Julia então se voltou para Clarissa. Era hora de terminar aquilo. Ela não estava mais ali, mas sabia que não havia ido longe.

A negra se trancou em uma das portas do banheiro, se encolhendo com as pernas em cima da privada, como se isso fosse permitir se esconder. Se forçava a não fazer nenhum som enquanto se escondia, especialmente quando ouviu o som de palmas lentas, de alguém que aplaude por cinismo.

– Voltar para onde tudo começou? Nem eu pensaria nisso… – ela ouviu a voz de Julia ecoar.

– Por favor… por favor não me mate, eu imploro!

– Implorar fez vocês pararem quando me mataram? Foi exatamente aqui que você quis arrancar minha roupa, você lembra?

Clarissa começou a sentir suas roupas repuxarem seu corpo na frente, como se alguma força invisível as puxasse. Fechou os olhos com força desesperada, sem ter para onde fugir.

Sua pele se machucava com a força do tecido, mas aquilo não era o pior naquele momento. Sentia seu corpo quente, excitado. Precisou se segurar nas paredes quando aquela sensação se tornava mais do que insuportável. Sentia que ia explodir se não fizesse algo. Sentia que ia morrer.

Rodrigo ao passar pela cozinha pegou uma faca enferrujada para se proteger, e correu pela porta dos fundos, que estava quebrada. Não sabia para onde correr nem fugir, apenas corria. Nem ao menos percebeu quando já havia entrado na floresta escura, nem a quanto tempo estava correndo. Só parou quando tropeçou e caiu.

Se viu em um buraco na terra, e quando tentou se levantar, percebeu que estava em cima de um esqueleto. A corrente de prata no osso do pescoço carregava um pingente de pentagrama. O pingente de Julia. Se levantou para sair da cova, pegando o celular e discando 190.

– E-eu encontrei um esqueleto, acho que é de uma desaparecida… – Após passar o endereço da casa de festas, e dizer para procurarem na floresta, ele desabou.

Todos esses anos, imaginou que ela fugira dele, e algo terrível tivesse acontecido. Agora sabia que sim, algo terrível havia acontecido, mas não por culpa dele. Tocou levemente o pingente no esqueleto.

– Talvez agora que encontrei seu corpo, seu espirito possa descansar.

– Não é assim tão simples. – A voz de um homem o fez virar para trás. O homem loiro de terno cinza e olhos completamente negros tinha um sorriso demoníaco no rosto.

– Que-quem é você? – perguntou apavorado, engatinhando de costas até bater em uma arvore.

– Quem eu sou não é importante, apenas que eu a trouxe de volta. Por quatorze anos o espirito dela me serviu para pagar por esse retorno. Agora ela me deve três almas para que a dela seja livre! Duas já foram, só falta uma.

– Como a alma dela pode ser livre se está assassinando pessoas? – perguntou o rapaz que vinha de família muito devota. Nunca ligara para isso, até aquele momento.

– Pessoas que foram responsáveis pela morte dela. Nada mais justo.

Rodrigo olhou para o que restava de Julia. Por um minuto quis realmente acreditar que seria melhor assim, com os assassinos mortos. Mas não acreditava no que tentava se convencer. Acreditava menos ainda que conseguiria ter uma vida normal após aquilo, sendo depressivo e especialmente depois de ter se permitido envolver com quem havia matado seu grande amor. Se sentia tão culpado quanto eles.

– Leve minha alma!

– O que? – O demônio jamais admitiria que queria ficar com as quatro almas para si. Afinal, Julia agora era tão assassina quanto eles.

Se ele oferecesse de bom grado sua alma pela dela, seria obrigado a libertá-la, assim como alma dele, e ainda perderia a alma de quem ela ainda não havia matado.

Antes que o homem pudesse fazer qualquer coisa para impedi-lo, ele havia alcançado a faca que trouxera, a atravessando firme contra o próprio coração. Sentiu aos poucos sua vida se esvaindo, enquanto o demônio em seu terno cinza gritava à sua frente, até desaparecer.

Clarissa sentia como se estivesse sendo torturada com aquela sensação. Não era de prazer, era de horror. O mais completo pavor.

Mas quando já estava aceitando seu destino, de que iria morrer, que deveria pagar pelo que havia feito, tudo cessou.

Não entendeu o que estava acontecendo, e demorou um pouco para arriscar abrir a porta da cabine de banheiro onde estava com medo de dar de cara com o espírito. Mas o que viu foi o corpo se tornando cada vez mais translúcido. Julia não entendia o que estava acontecendo. Sabia que estava ascendendo de alguma forma, mas como? Se não havia matado Clarissa?

Mais uma alma apareceu, translúcida, e pegou a mão de Julia.

– Estamos livres… – A imagem falou.

Clarissa reconheceu Rodrigo. As duas almas se reuniram, depois de tanto tempo. Em segundos, os dois fantasmas desapareceram no ar, como se nada houvesse ocorrido.

Clarissa caiu no chão em choque. Não sabia quanto tempo havia ficado ali até os policiais aparecerem.

Era óbvio que ninguém havia acreditado em sua história. Acabou indiciada pelas mortes que não cometera além da de Julia, mas devido a seu estado mental, foi presa em um hospital psiquiátrico.

E na calada da noite, quando os dois ponteiros do relógio se juntavam marcando a meia noite, ela gritava. Gritava cada vez mais e mais alto, quando as almas de Vanessa e Jorge se reuniam e a infernizavam por ter sobrevivido.

 

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