obra escrita por
YAGO TADEU

A

FACA SOBRE A TÁBUA

A dor do silêncio é cruel
Ouve-se apenas a batida do coração
E o pior silêncio que estive
Foi diante da multidão.

A

— Você está sendo cruel comigo.- rebateu Priscila – Eu realmente não vim pra cá pensando primeiramente em trabalhar, vim para tirar férias do meu casamento e dar um descanso a nós três.- revelou Priscila ao olhos rígidos da patroa. Estava mais sensível do que nunca.

— Quando as coisas se esclarecem, tudo fica melhor. – disse puxando uma cadeira – Sente-se Priscila, precisamos conversar.

Dérick permanecia acompanhando a conversa e já aguardando que falassem dele depois da discussão tomar uma repentina e surpreendente serenidade.

— Você não aguenta mais ele, não é mesmo?- perguntou Lisbela.

— Eu amo o Dérick, mas diante das nossas diferenças vejo poucas saídas.- comentou a empregada – Ele é advogado, eu sou uma faxineira e os amigos dele me olham estranho e provavelmente se incomodam com minha presença ao seu lado.- Lisbela pegou um papel-toalha apenas pra que secasse suas lágrimas – Nós brigamos por pouca coisa e por muitas vezes ele é frio comigo.- Dérick saiu no mesmo instante e voltou para o quarto – Mesmo com onze anos de casados.

— Ele não pertence ao seu mundo, você não pertence ao dele. Percebi isso, logo que ele se tornou petulante no café. Meu marido mal fica em casa comigo, aliás raramente está aqui. Ás vezes passa meses e meses vagando na floresta como se não tivesse uma mulher, como se não tivesse uma família.

Priscila se surpreendeu ao saber que a patroa era casada.

— Nós carregamos um feliz passado, antes… Da morte do nosso primeiro filho.- contou Priscila barrando as lágrimas.

— Seu filho morreu?- a patroa parecia mais amena.

— Morreu. Chamava-se Mateus. Ele tinha muitos pesadelos e sofria de terror noturno, nós sempre trancávamos a porta e a janela do quarto pois costumava ter que crises e fugir. Um dia, Dérick o colocou para dormir e esqueceu a janela aberta, Mateus saiu no meio da madrugada, desceu no jardim e antes que pudéssemos alcançá-lo e ele abriu o portão e saiu. – Priscila interrompeu a fala sempre emocionada ao tocar no nome do filho – Mateus foi atropelado numa rua escura de Zellwéger, o motorista fugiu e não foi encontrado, meu filho morreu e eu não estava lá.

Lisbela segurou em sua mão tocando sua aliança de vidro.

— Sua aliança é de vidro igual a minha.- buscou sorrir a patroa – Isso significa algo?

— Significa que estamos perdidas.- brincou Priscila finalmente sorrindo. A patroa apertou sua mão e sorriu enxugando com a mão direita suas lágrimas – Espero que não tenhamos começado mal, eu tenho ótimas relações com as minhas empregadas e dessa vez não será diferente.

— Eu peço desculpas se eu passei uma imagem errada das minhas intenções.

— Não se desculpe.- Lisbela foi gentil – Precisamos descansar para amanhã e para isso temos que dormir.- Priscila largou sua fria mão sem perceber que havia a segurado por tanto tempo – Boa noite mocinha.- Lisbela deixou o lampião na varanda.

— Boa noite Lisbela.- disse quando a patroa soprou os castiçais e não houve mais luz.

Priscila entrou no quarto. Deitou ao lado de Dérick tocou na mão do filho deitado no meio dos dois. Dormia bem. Tocou na mão do marido que jogou a mão dela para trás. Os olhos castanhos de Dérick procuraram se fechar. Priscila virou para o outro lado mais uma vez sem entender suas r eações.

Cinco dias se foram. Lisbela e sua empregada começavam a se entender e tudo não poderia estar correndo melhor, isso pelo menos para Priscila. Dérick não suportava a vila. Dérick não suportava a patroa de sua esposa e seu filho Ítalo esboçava a mesma rejeição. Lisbela e Priscila se completavam nos gostos e nas críticas e isso foram descobrindo juntas durante os duradouros dias na vila. Não havia televisão ou lâmpadas, celulares ou qualquer sinal de século vinte um em SweetVillage, mas Priscila gostava. Procurou isso. Procurou paz e tranquilidade. Buscou uma amizade verdadeira em que pudesse se jogar. Hoje tinha isso e difícilmente abriria mão dessa promissora amizade.

— Hoje confesso, você correu mais que eu.- sorriu ofegante com a caminhada.

— Hoje eu fui bem.- Lisbela recuperava o fôlego. Seus filhos vinham correndo na trilha de terra.

Priscila admirou o magnífico pôr-do-sol. Ambas chegavam ao parque.

— Essa é a última vez que viremos ao parque hoje crianças.- avisou olhando para trás – Logo voltaremos e organizaremos o jantar.

— Preciso trazer Ítalo aqui.- disse olhando os fortes e grandes balanços de madeira – Eu adoro balanços.- ela confessou.

Lisbela a fitou. Andy subia alto no balanço enquanto Anne ainda não conseguia decolar.

— Priscila posso te chamar de Prisci?- indagou o menino sorrindo nas nuvens.

— Pode, Andy.- permitiu Priscila. Lisbela deu um ar de sorriso.

Anne empurrou o balanço e desistiu vindo para o lado da mãe.

— Prisci,vem balançar comigo.- chamou Andy.

Priscila se viu tentada e aceitou o pedido. Lisbela sorriu sem acreditar.

— Amanhã organizarei um jantar lá em casa.- avisou enquanto a empregada balançava – Quero te apresentar pra vila.

— Fico feliz, Lisbela. Ajudarei com muito gosto.- Lisbela balançou a cabeça positivamente satisfeita com a resposta.

Jantar pronto. Mesa posta. Cadeiras ocupadas.

— Ficou boa a salada Dérick? – perguntou Priscila cortando o fígado – Foi Lisbela que fez.

— Sim. Legal. – respondeu apenas.

— Você agia desse modo neutro com a sua mãe, Dérick? – perguntou Lisbela direta.

— Desculpe, da minha vida e do meu casamento cuido eu. – retrucou quando Priscila já se arrependia de ter tentando armar um diálogo entre eles. Ítalo os fitou preocupado. Andy e Anne olhavam desconfiados.

— Dérick, por favor.- pediu Priscila respirando fundo.

— Como funcionavam as leis em sua criação, advogado Dérick Rafael ? – indagou Lisbela.

— Não haviam leis, haviam regras em minha criação, camponesa Lisbela Reis.- Dérick se levantou no mesmo instante. Priscila pôs a mão na testa. Um rápido silêncio se instalou na cozinha que logo foi cortado.

— Por isso aprendeu a cometer erros injustificáveis ? Porque não existiam leis em sua casa advogado?

— Ítalo!- chamou o pai e o garoto levou um susto – Vamos pro quarto agora.- Ítalo se levantava.

— Dérick, deixe-o jantar.- pediu Priscila.

— Há comida ainda nas malas, ele vai ficar comigo.- disse muito alterado. Priscila ameaçou intervir e ele a cortou – Olha Priscila, se você quiser ficar com essa mulher.- atacou olhando pra Lisbela – Você fica, mas meu filho não vai ficar nessa mesa.

— Dérick!- repreendeu quase gritando de nervosismo. Lisbela apenas deu um ar de sorriso e permaneceu fitando suas reações. Andy olhou para ele de um modo ameaçador – Desculpe-se Dérick.- pediu Priscila inconformada.

— Não vou me desculpar.- gesticulou ele segurando a mão do filho – Logo vou embora dessa casa e desse lugar, decida sua vida Priscila.- Dérick deu as costas e foi pro quarto com Ítalo.

— Me desculpe, Priscila.- Lisbela encheu o copo com suco – Acalme-se, mil perdões pela minha petulância.

— Não aguento mais.- chorou referindo-se a Dérick – Seus filhos não podem ver esse tipo de coisa.

— Acalme-se.- sorriu Lisbela – Eles já viram muito do pai deles.

O carro parou na frente da quitanda. Com uma expressão nada boa Priscila entrou.

— Vai continuar com essa cara pra mim?- indagou Dérick quando ela colocou a sacola com uvas perto dos pés.

— Com que cara você acha que tenho que estar pra você Dérick?- questionou o silenciando – Você foi um grosseiro.- engasgou-se ao falar – Você foi pior que isso.

— Priscila, essa mulher é completamente anormal.- falou passando entre os moradores da vila – Será que você não percebeu isso? Suas roupas antigas, a ausência de uma televisão em casa , a falta de sinal neste lugar, o comportamento autoritário e estranho dela, e você me repreende?

— Aos poucos ela foi mudando e consigo notar generosidade e uma grande tentativa de me transmitir seu afeto, me compartilha segredos…

— E você compartilha com ela?- indagou arregalando os olhos.

— Sim, porque é minha amiga.

— É ridículo. É ridícula essa amizade com ela, é ridículo você contar coisas sobre mim pra ela, é ridículo você passar mais tempo com ela do que comigo.

Ítalo abaixou a cabeça exausto daquela cena repetitiva.

— Você está com ciúmes Dérick? Com ciúmes de mulher? – questionou surpresa.

— Não, não estou com ciúmes.- fez cara de descaso – Se bem que se observar…

— Chega.- determinou Priscila quando o carro parou em frente do bar – Não suporto mais ter que te ouvir – Priscila abriu a porta do carro.

— Você não vai comprar as coisas pro jantar?- perguntou ele.

— Já disse o que deve comprar.- Priscila bateu a porta do carro – Vou pra casa á pé.

— Vai pra casa dela, não pra casa.

— Tchau Ítalo.- Priscila despediu-se do filho e foi.

— Vamos ali no bar, preciso comprar as bebidas.- Dérick desceu do carro e o filho foi atrás.

O velho barrigudo deu um amarelado sorriso para Ítalo.

— Olá garoto.- disse o velho com as veias da testa alteradas.

— Diga olá Ítalo.- o pai colocou os óculos escuros.

— Olá.- falou segurando a mão do pai.

— Você gosta de animais, não gosta?- sorriu apontando para casa ao lado – A senhorita Emily tem uma criação de lindos urubus.

— Quer ver Ítalo?- perguntou o pai – Eu vou ali no bar bem rápido e você vê essa criação e volta.

Ítalo concordou com a cabeça meio indeciso.

— Cuida dele, eu volto num minuto.

— Não, claro senhor, é Dérick não é? – o velho continuava sorrindo.

— Dérick Rafael.- respondeu ele. O velho se despediu e levou Ítalo para a casa de sua vizinha.

Ítalo entrou na casa humilde e pequena. Muito menor que a casa de Lisbela.

— Olá garoto.- disse a senhora ruiva e sardenta lavando fígados em uma bacia.

— Olá.- respondeu meio tímido.

— Trouxe-o para ver a criação de urubus.- disse Velho Stephen.

— Pode levá-lo.- autorizou a senhora.

Ítalo chegou perto da grade onde deveria ser a porta dos fundos da casa.

— Nossa.- disse ao ver uma área circular coberta por um telhado improvisado e frágil de tábuas. Repleto, inteiramente repleto de urubus, cerca de trinta grandes urubus habitavam o local.

— Ele ficou impressionado.- riu Velho Stephen ao seu lado.

— São muitos.- observou o garoto impressionado com o tamanho deles.

Um dos grandes urubus se aproximou da grade e Ítalo recuou.

— Esse é Jubileu, meu maior e mais querido urubu.

— Calma garoto.- o velho o empurrou até o urubu.

O urubu voou ultrapassando a grande por cima. Ítalo caiu no chão e o urubu se aproximou de seu rosto abrindo as asas, o amedrontando. Os olhos negros do urubu o encararam pelos olhos. O velho sorriu e Emily permaneceu olhando. O urubu pareceu o cheirar e repentinamente voou até de volta a seu abrigo junto dos outros urubus.

— Jubileu, Jubileu.- Emily cortava os legumes com uma grande faca.

— Calma garoto.- o velho estendeu a mão e ele levantou – Foi só um susto.

— Eu achei que ele ia me devorar.- disse o garoto com os lábios brancos.

Velho Stephen deu uma grande gargalhada e Senhorita Emily riu.

— Te devorar?- o velho enxergou o medo em seu rosto – Eles só devoram carniça.

— Devoram coisas mortas.- senhorita Emily fez uma feia expressão – A não ser que você esteja morto.- Velho Stephen gargalhou e ela sorriu – Você está morto?

Ítalo engoliu seco e seu coração começou a bater tão forte que por um momento pôde escutá-lo.

Dérick bebia a segunda lata de cerveja no bar. Mal lembrava do filho.

— Isso aqui não é cerveja.- reclamou começando a engasgar ao falar – É muito ruim.

O dono do bar pareceu ter escutado, o ignorando e se encaminhando pra adega.

— Senhor Edgar?- disse ao ver o barqueiro do seu lado.

— Boa noite.- respondeu ainda mais pálido do que a última vez que o vira.

— Já é noite?- indagou Dérick atordoado.

— Estamos quase lá.- senhor Edgar acendeu um cigarro com um isqueiro.

— O que senhor faz, além de ser barqueiro?- questionou curioso.

— Eu era escritor.- revelou senhor Edgar.

— Escritor? Escritor de poemas?

— Exatamente Dérick.- os lábios pálidos sorriram sem esboçar cor.

— Porque era? Como veio parar aqui? – foi direto ao ponto.

— Aconteceu um acidente comigo,então vim parar aqui.

— Um acidente?- questionou com dificuldade de compreensão.

— Um acidente de estrada, meu carro capotou e decidi ficar por aqui.- sorriu de modo sombrio. Dérick não entendia. – Agora preciso ir, lembranças á sua família.

— Adeus.- despediu-se intrigado. Tentou levantar da cadeira e sentiu-se zonzo.

Priscila entrou na igreja. Decidiu entrar na pequena e única igreja da vila, apenas para tentar atrair tranquilidade. Uma grande fileira de bancos. Aspecto de igreja católica. Mas parecia abandonada. Porque a única igreja da vila estaria abandonada? Priscila passou por seus bancos empoeirados e foi até o altar da vazia igreja. Seu teto estava derrocado, rachaduras por toda parte.

— Olá.- disse a voz feminina surgindo na igreja. Era uma mulher morena. Cabelos meio cacheados e uma boina na cabeça. Não usa roupas antigas. Priscila logo percebeu.

— Olá.- respondeu Priscila quando ela se aproximava.

— Eu nunca te vi por aqui.- a mulher estranhou. Priscila estendeu a mão e ela tocou. A mulher parecia ter tido um choque quando arregalou e piscou os olhos em ritmo frenético.

— Algum problema?- Priscila notou sua reação.

— Não.- tentou sorrir sem conseguir – Eu só vim pra dar uma olhada na igreja.- ameaçou ir embora.

— Você cuida da igreja?- perguntou Priscila.

— Sim. Ás vezes.- respondeu apressada.

— Sou Priscila Telles.- se apresentou ela.

— Florinda Contini.- revelou seu nome saindo da igreja.

Priscila a observou sair sem entender nem um pouco sua reação. Olhou para o altar. Não sentia-se muito bem quando decidiu voltar pra casa.

Ítalo sentou na cadeira. Esperava ansiosamente o pai chegar. Suas mãos já suavam. Contornava as conversas fugindo de qualquer nova surpresa.

— Estaremos na sua casa hoje.- o velho esfregou as mãos ao ver o fígado na bacia. Sem que senhorita Emily percebesse ele abocanhou o fígado cru.

Ítalo sentiu ânsia e o velho se aproximou engolindo rápido o fígado.

— Hoje Lisbela vai apresentar sua nova empregada.- referiu-se á mãe dele.

— São todas um fracasso.- ela lançou um olhar de deboche pra Stephen.

— Vou cumprir meus afazeres.- despediu-se Stephen – Fique aqui e espere seu pai.

Ítalo apenas balançou a cabeça. Agora estava á sós com aquela estranha mulher.

— Quer comer Ítalo?- indagou com uma faca brilhante em mãos.

— Comer?- perguntou assustado.

— Nós caçamos um animal de pêlo branco que perambulava pela vila.

— Pêlo branco?- Ítalo engoliu seco.

— Sim. Parece ser um cão doméstico, deve ter fugido de uma fazenda vizinha. Não costumamos comer esse tipo de carne mas o fato é que foi pra panela.

Ítalo a olhou com nojo. Seu maxilar tremia pensando o que não queria imaginar.

— Coma. – senhorita Emily colocou uma tábua de madeira e em cima a carne cozida em uma bacia.

Ítalo não respondeu. Olhou rapidamente para bacia e com uma lágrima no fundo dos olhos voltou a encarar Emily.

— Não vai comer?- Emily cravou a faca na tábua de madeira encarando Ítalo que parecia desesperado quando seu olhar se envidraçou.

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