obra escrita por
YAGO TADEU
A
O DIÁRIO DE PRISCILA
Sinistra vida. Sinistra.
Onde a sombra é benquista
A minha alma conquista.
A
Ele recuou automaticamente. Observando abismado como se tivesse mergulhado em outra dimensão. Sem reação diante daqueles esquisitos e desconhecidos ao seu redor, que nem ao menos sabiam responder suas perguntas. São Judas Tadeu, Dérick está morto. Dérick está morto! Dionísio se afastou do caixão e decidiu sair dali. Priscila e Ítalo não estão aqui, só eles podem me dizer o que aconteceu com Dérick. Ele saiu do cemitério.
O caixão foi levantado pelos senhores engravatados. O caminho até a cova foi rápido e silencioso. Ausência de choro. Olhos cadáveres e expressões frias petrificadas. Uma leve garoa se iniciava quando largaram o caixão na terra. O mais forte o arrastou pela ponta até a boca da cova. Os outros três o empurraram para o buraco quase findando o trabalho. O caixão bateu no fundo da cova. Todos os senhores tiraram o chapéu por um minuto como tradição da vila.
Seu maxilar mexeu. Sua testa contraiu e seus olhos finalmente voltaram a se abrir pro mundo. Não conseguia se locomover, apenas via o céu cinzento sobre seu corpo. Bateu com as duas mãos na madeira em busca de sair quando percebeu. Seu desespero tornou-se extremo. Dérick batia no caixão com as duas mãos dentro do espaço limitado.
— Me tira daqui. Por favor me tirem daqui! Socorro!- Dérick sentia a morte se aproximar – Me tirem… me tirem daqui.- implorava perdendo o ar dentro do caixão.
Ela pediu espaço para os senhores e foi até a boca da cova com um buquê na mão. Dérick a olhou com o semblante em pânico. Era Lisbela, era Lisbela Reis, era o maldito espírito de Lisbela Reis!
— Paz e glória em SweetVillage.- Lisbela disse e todos os outros repetiram – Silêncio e amor, respeito á dor em terra de Reis.- todos repetiram isso como um coral – Que Deus o tenha.- finalizou quando a garoa fina chuviscava. Lisbela olhou para os olhos de Dérick de cima pra baixo. Seus olhos em descontrole. Lisbela beijou o buquê de flores rosas enroladas por um lenço. Seus lábios o tocaram com carinho e ela jogou sobre o caixão. O buque voou até cair e se espalhar sobre o caixão como quando um vidro se espatifa em pedaços.
— Podem cobrir o caixão.- Lisbela ordenou dando as costas para a cova.
— Priscila! Priscila! Ítalo!- Dérick tinha a voz ofuscada pela falta de fôlego.
Lisbela colocou as luvas sob a garoa entre os abafados e inofensivos gritos. Ajeitou o chapéu preto rendado na cabeça. A terra e a pá lado a lado.
…
Dionísio estava trêmulo. Deu uma volta na vila procurando por alguém que explicasse o que havia ocorrido. Passou pelo parque mais uma vez e voltou á casa próxima do cemitério novamente.
— Dionísio?- Priscila o reconheceu enquanto varria a laje – Dionísio!- ela chamou alto.
Dionísio se virou para a casa e avistou Priscila entre as duas partes do telhado.
— Priscila.- disse meio desorientado. Priscila sorriu enquanto ele permanecia tenso.
— O que faz aqui?- Priscila logo percebeu que nada estava bem – Suba pela escada de mão atrás da casa.- Priscila imaginou que talvez Dérick tivesse pedido ao amigo que ele viesse para tentar convencê-la a voltar mais rápido. Por esse motivo Dionísio estava ali?
Dionísio subiu as escadas e se firmou na laje até que Priscila percebeu mais de perto seu nervosismo.
— Como aconteceu?- Dionísio indagou ainda sem acreditar – Como tudo aconteceu?
— Como aconteceu o quê Dionísio?- Priscila não entendia, mas notava que era muito sério – Dionísio você está tremendo.- Priscila tocou em sua mão – Vou buscar um copo de água pra você, fique calmo e depois você me diz o que está acontecendo.- ela desceu para buscar água e Dionísio passava as duas mãos no pescoço atordoado. Foi até á beira do telhado e olhou para o céu colocando as duas mãos na cabeça. Porque Dérick está morto? Questionava-se á cada segundo sobre a morte do amigo de infância.
Sentiu as duas mãos sobre suas costas, mas não houve tempo para reação. Dionísio foi empurrado arrastando-se no telhado e levando algumas telhas consigo, caiu de costas. Uma forte pancada no solo. Andy sorriu com maldade olhando para o corpo.
— Andy!- Priscila praticamente gritou com o copo de água em mãos – Meu Deus!- ela viu Dionísio agonizar – Eu vi o que você fez. Porque você fez isso?- Priscila segurou em seu braço. Andy se soltou dela com os olhos ferozes.
— Não me toque.- ele saiu correndo. Priscila desceu a escada em seguida e correu rápidamente para a frente da casa. Dionísio tocou em sua mão tentando se levantar.
— Calma, fique calmo. Eu vou te ajudar.- Priscila viu que tentava falar – Você perdeu a voz.- Priscila notou quando sua cor do rosto parecia anêmica. Ela olhou para a casa e viu Anne assistir tudo na entrada.
— Anne, me ajude á levá-lo até o enfermeiro.- Priscila tentou erguê-lo ainda sem sucesso.
— Mas mamãe disse que não era pra sairmos de casa.- Anne vestia uma blusa rosa, saia quadriculada e meias longas.
— Não importa o que sua mãe disse agora.- Priscila começava a se alterar – Me ajude á levá-lo até o enfermeiro.
Anne parecia descontente, mas foi ajudar a levar o homem. Dionísio se apoiou no ombro de Priscila e firmou com mais força o pé no chão.
— Vamos devagar.- Priscila orientou a Dionísio.
Andy lançou um olhar cruel sobre os três pela janela da casa. Dentro de sua pupila havia algo mais que maldade.
O caminho foi longo e demorado. Dionísio queria tanto dizer, queria tanto perguntar sobre a morte de seu melhor amigo, mas a voz não voltava e nem dava sinais disso ainda. Priscila não comentava nada sobre Andy perto da sua irmã, mas sua indignação era imensa diante da maldade dele. Ao menos isso Dérick tinha razão.
Anne bateu na porta e o enfermeiro abriu. Seu olhar expressou incômodo logo de cara. Priscila explicou as condições em que Dionísio se encontrava.
— A minha casa é muito pequena e durmo praticamente no chão com um colchão fino que tenho.- ele tentou ser simpático mas foi artificial – Vamos levá-lo até a casa de Maysa, o marido dela só perambula pelo bar e pela mata á noite, então com certeza não voltará hoje pra casa.- Priscila concordou com o enfermeiro, Dionísio precisava urgentemente repousar.
…
Após abrir a grade que o mantinha preso, o garoto corria pela vila em busca de encontrar seu pai. Ignorou todos os estranhos e fugindo de seus olhares entrou na mata. Corria quando o carro freou em cima dele. Era o carro do seu pai, mas não era seu pai que estava dirigindo. O caçador abriu a porta do carro e o garoto ameaçou correr.
— Calma garoto.- chamou o caçador – Você é filho do homem forasteiro que veio me procurar na loja?
— Sou.- Ítalo respondeu apreensivo.
— Seu pai foi atrás de você, há anos eu não entro nesse lugar mas ele corre sério perigo, vamos?
Ítalo correu para o carro no mesmo instante pedindo mentalmente á Deus que seu pai estivesse bem.
— Vamos lá.- o caçador se benzeu e entrou em SweetVillage.
…
Dionísio foi colocado com cuidado na cama espaçosa e grande. Os gêmeos Gean e Sizu observavam atrás da mãe gorda sentada á frente da cama e ela parecia encantada com o homem.
— Sei que quer falar e se comunicar Dionísio, mas como o enfermeiro disse amanhã sua voz voltará ao normal.- Dionísio escutava imóvel com a respiração acelerada – Eu vou tentar mandar uma mensagem pra sua esposa, mas não garanto porque não há sinal aqui.- Dionísio apenas balançou a cabeça com fortes dores – Você quer que eu vá atrás de uma ambulância?- Priscila questionou sentada perto de seus pés. Mais uma vez Dionísio respondeu negativo.
— Eu vou cuidar dele muito bem.- Maysa finalmente abriu um sorriso.
— Mas eu vou ficar aqui com ele, claro se você permitir.- Maysa abaixou a cabeça com uma descontente expressão e Priscila continuou – Mas lógico, vou antes voltar á casa e avisar Lisbela.- Priscila tentava enviar mensagem do seu celular – Vou tentar ligar do telefone da mercearia pois no meu celular está impossível.
— Bom, eu já vou indo.- o enfermeiro colocou o chapéu.
— Vamos também Anne?- a garota concordou – Eu logo volto Dionísio, fique bem. Logo sua voz vai voltar.- Priscila buscou tranquilizá-lo.
Priscila despediu-se de Maysa e agradeceu o enfermeiro saindo da casa. Anne a acompanhou até a mercearia para usar o telefone.
Priscila introduziu a moeda no telefone antigo. Pensei que nem se usava mais esse tipo de telefone. Andy passava á frente da mercearia indo pra algum lugar.
— Onde seu irmão está indo?- Priscila perguntou com o telefone no ouvido.
— Não sei.- Anne sempre respondia com poucas palavras.
— Não quer ir com ele, seja pra onde ele estiver indo, e se quiser volta com ele pra casa.
Anne concordou e deixou Priscila correndo atrás do irmão Andy.
— Não está conseguindo?- Sidney Jornaleiro indagou apoiando sobre a bancada.
— Não, não estou conseguindo.- Priscila disse apenas. Preciso falar com Ítalo, preciso também falar com Dérick, mas isso é impossível agora. Priscila estendeu a mão sentindo a garoa chuviscando mais forte. Saiu da mercearia sem se despedir quando uma voz a chamou.
— Priscila.- disse a voz feminina logo atrás.
Priscila se virou e viu a mulher com os cabelos negros dentro de um vestido estampado debaixo da garoa gelada.
— Florinda?- Priscila a reconheceu.
— Preciso muito falar com você Priscila, vamos na igreja?- indagou desconfiada.
…
— Suba até a casa isolada. – Ítalo orientou o caçador.
— Você está os vendo? – o caçador perguntou ao garoto transparecendo seu medo – Você sabe que todos são mortos, não sabe?
— Eu já sei e estou vendo.- Ítalo olhou para o grupo de moradores vestidos de preto passarem pelo carro – Eu sinto que nem todos podem ver, mas não minta pra mim,sei também que você consegue ver.
O caçador ficou em silêncio e tentou disfarçar, mas a verdade era que ele podia vê-los desde muito pequeno. Desde que tudo aconteceu.
— Você quer ir chamar sua mãe?- indagou o caçador parado á frente da casa.
— Não, os lampiões estão todos apagados, então provavelmente não há ninguém ali. Mas onde eles estão?- Ítalo questionou quando ouviu um fraco grito vindo de trás da casa – Pai?- ele olhou assustado para o caçador.
— O grito veio do cemitério atrás da casa.- notou o caçador.
— Cemitério?- Ítalo assustou-se – Vamos encontrar meu pai.- Ítalo abriu a porta do carro de imediato. O caçador desligou o carro e junto do garoto seguiu para trás da casa.
Os dois se depararam com um grande portão de ferro. O caçador desfez as correntes e o cadeado aberto caiu no chão e abriu um espaço para passar. Seguiram dando a volta no grande paredão, um muro que impedia a visão e a conclusão do que era realmente aquele lugar.
— Onde ele está?- Ítalo disse para as sepulturas e uma névoa cobria o cemitério – Pai!- o garoto gritou aguardando uma resposta. Ouviu um estrondo no lado esquerdo do cemitério após a sala de velório e já soube onde ele se encontrava. Olhou a pá deixada sobre a terra e a placa pregada na cruz. Dérick Rafael falecido em 1942.
— Tire meu pai daí. – Ítalo sentia sua cabeça pesar pelo tamanho nervosismo que passava.
O caçador pegou a pá e rapidamente começou a retirar a terra recém jogada tapando a cova. Ítalo não conseguia apenas assistir, retirava um pouco da terra com as próprias mãos pedindo a todos os santos que seu pai estivesse vivo.
— Vamos! Vamos!- o garoto chamou atenção para que o caçador fosse mais rápido.
— Eu estou fazendo o possível.- o caçador ofegante já estava com as calças imundas retirando a terra com a pá sem pausas. Já podia-se ver o caixão e o caçador acelerou ainda mais.
— Pai.- Ítalo notava Dérick de olhos fechados dentro do caixão. O caçador largou a pá e agora girava os pinos do caixão em busca de salvá-lo á tempo.
O corpo de Dérick foi retirado do caixão e ele parecia sem sinais de vida.
— Dérick.- o caçador fez massagens cardíacas até que ele começou a tossir descontroladamente como se algo tapasse sua garganta. Seus olhos chegaram a se abrir mas fecharam-se rapidamente de novo.
— Ainda está vivo, vamos levá-lo o mais rápido possível ao hospital.- Hoffmann tentou erguê-lo com dificuldades pela sua idade já avançada. Ítalo tentou ajudá-lo mas não teria muita força pra isso.
— Vamos, a gente chega no carro.- Ítalo olhava para o pai com medo de perdê-lo.
Após muito esforço o caçador conseguiu colocá-lo deitado no banco de trás do carro. Teria que ser rápido se o quisesse vivo. Hoffmann deu a partida pisando no acelerador no ritmo mais veloz que pôde e se benzeu na saída.
…
Estavam frente á frente próximas do altar. Priscila cruzou os braços e aguardou.
— Me diga Florinda, o que tanto quer falar comigo?- Priscila estava desconfiada.
Os cabelos pretos e desgrenhados de Florinda estavam jogados para trás e dessa vez não usava chapéu.
— Outra pessoa me pediu pra te falar, saia imediatamente da casa de Lisbela.- Florinda tinha a expressão de urgência no rosto.
— Quem te pediu para me falar isso? O Dérick?- Priscila questionou.
— Não…- Florinda falava baixo olhando sempre para as janelas e para a porta da igreja – Eu não posso falar, mas saia enquanto há tempo, Lisbela pode te matar.
— O que você está dizendo? Você está louca?
— Será que você não percebeu ainda?- Florinda decidiu contar tudo – Nós não somos vivos. – agora Priscila estava incrédula – Eu estou morta, o barqueiro está morto, o enfermeiro está morto, o jornaleiro está morto, Lisbela está morta, seus filhos são mortos e todos estamos mortos.
— O que você está dizendo?- Priscila acreditava agora que ela era insana. Florinda segurou em seu braço e Priscila se soltou afastando-se.
— Eles morreram queimados nessa igreja, portanto não conseguem entrar aqui, eu não, eu fui empregada de Lisbela e ela me matou.
— Me largue. – Priscila deu as costas para ela e seguiu andando no tapete carmesim desbotado da igreja.
— Lisbela é um espírito cruel e perturbador.- Florinda gritava – Salve-se e saia daquela casa, saia!
Priscila já estava fora da igreja em meio á escuridão na vila. Ela parecia tão sã, nunca imaginaria que ela teria um ataque desses. Priscila estava indignada com a fantasia e irrealidade de seus comentários.
Já eram quase oito da noite quando Priscila chegou á casa. Teria que tentar ligar para Dérick e Ítalo na próxima manhã. Abriu a porta e não enxergava nada diante da escuridão e dos lampiões apagados. Buscou o interruptor e acabava de esquecer que havia energia elétrica na casa, mas lâmpadas ainda não. Tentou enxergar na escuridão quando um lampião ligou na cozinha, iluminando os dois cômodos e o início do corredor.
— Lisbela?- Priscila chamou, mas notou em seguida que não havia ninguém na cozinha. Percebeu a antiga televisão em cima da estante, Lisbela prometeu que a pegaria emprestado pra que assistissem o vídeo de seu aniversário juntas.
— Lisbela.- Priscila se encaminhou para o início do corredor sem respostas da patroa. Deve ter saído, mas… Lisbela nunca saía á noite. Priscila girou a maçaneta e abriu a porta do quarto de Lisbela. Notou que havia alguém na cadeira de balanço. O lampião acendeu e a patroa estava com um caderno em mãos.
— O que está fazendo com meu diário?- Priscila questionou espantada. Ninguém nunca tocou no diário que ela carregava consigo e escondera no fundo da mala. Nem mesmo o ciumento Dérick descobriu a existência dele.
— O diário de Priscila… O encantado diário de Priscila.- Lisbela usava seu óculos de leitura. Já havia lido cerca de sessenta páginas. – Capa rosa, decoração impecável, fotos sem suspeitas, linhas questionáveis, verdades ocultadas, segredos imundos.- Lisbela fechou o diário. Priscila estava inerte.
— Eu preciso voltar á casa do enfermeiro.- Priscila estava sem saída.
— Já sei de tudo, já sei que um homem conhecido seu caiu do telhado, e você quase bateu no meu filho. Vai dizer que sou uma péssima mãe, não vai?
— Não, não vou dizer isso.- Priscila rebateu – E apenas repreendi seu filho, ele empurrou o amigo de Dérick do telhado e poderia ter causado algo pior.
— Está chamando meu filho de assassino?- Lisbela indagou aumentando o tom de voz.
— Não!- Priscila respondeu se alterando – Mas ele poderia ter causado algo muito pior.
— Você causou algo muito pior.- Lisbela se levantou da cadeira de balanço – Se tem alguém que pode ser chamada de assassina é você, segundo este diário você é a grande responsável pela morte do seu filho e não seu marido! Como você vem mentindo todos estes anos para ele? Você abriu aquela janela porque resolveu deixar seu filho dar uma volta no quintal se quisesse. Seu marido pensa que ele esqueceu a janela aberta, mas não, ele não esqueceu a janela aberta.- Priscila parecia petrificada com os segredos descobertos por sua ingenuidade – Irresponsável! Seu filho tinha terror noturno e você agiu como uma mocinha na puberdade.- Lisbela estava revoltada – O que mais odeio num homem é sua mente xucra e sua falta total de afeto diante de sua família, e o que mais odeio numa mulher é quando ela age feito uma menina imatura estando a dois passos da menopausa.
— Você não tem esse direito Lisbela, a vida é minha e eu fiz o que eu achei melhor. – Priscila se defendeu indignada com a sua intromissão – Mateus é uma ferida que nunca vai cicatrizar no meu peito. Uma ferida que ninguém tem direito de tocar.
— Eu não sei porque eu gosto de você, sinceramente eu não sei mocinha. De todas as empregadas você é a mais fraca, a mais incapaz de ter uma atitude pra mover o próprio pé. Pela segunda vez você esbarra nos meus filhos, quem é você pra dizer qualquer coisa?- Lisbela tocou em sua testa com a ponta do dedo -Ítalo sofre por falta de amor, pela falta de amor que você prefere depositar no cadáver de seu filho.
— Insolente!- Priscila xingou enfim perdendo o controle e tomou o diário de sua mão – Eu posso ser muito mulher se quiser e já passei por cima de mulheres como você, mas hoje eu já não sou mais assim.
— Oh… Eu sei Priscila.- Lisbela sorriu balançando a cabeça – Seu diário fala muito sobre você, eu vou continuar sendo quem sempre fui, tenha liberdade pra voltar a ser quando quiser essa que você chama de mulher.
— Chega! Pelo amor de Deus… – Priscila deu um basta pondo a mão sobre a testa – Eu não queria que tudo acabasse assim, mas não há outra alternativa. Não quero dinheiro pelos meus dias aqui, até porque você me acolheu e me alimentou em sua casa. Se você desejar eu pago os dias que faltam mas eu vou embora agora.- Priscila saiu, batendo a porta do quarto e deixando Lisbela. Atordoada entrou no banheiro. Colocou o diário em cima da pia. Suas lágrimas pingaram no ralo. Suas sinceras e doloridas lágrimas explicavam seu atual sentimento. Porque ela invadiu minha privacidade desse modo? Porque ela tentou me humilhar tão rudemente diante de um segredo que queimava como uma ferida aberta em seu peito? Pensava estar diante da maior amizade da sua vida. Estava completamente enganada. Vou embora, vou voltar á minha vida com Ítalo e pedir o divórcio para Dérick. Acabou. Um dos meu empregos mais conturbados finda-se agora. Priscila lavou seu rosto e piscou os olhos avermelhados diante do espelho secando as bochechas e a testa com uma toalha de rosto branca pendurada ao lado do espelho. Encarou o próprio olhar sobre o reflexo revelador do espelho, e sentia-se forte o suficiente para botar mais um ponto final na sua vida. Priscila entrou no quarto e foi até as malas na beira da cama. O lampião estava aceso perto do guarda-roupa. Colocou as malas nas costas e aproximou-se da janela olhando para os portões da fábrica. Sentiu a gelada ventania soprando contra a casa. Não tive muito tempo pra conhecer todos os cantos desse lugar. Não tive tempo pra aproveitar esse lugar, essas pessoas, esses sentimentos únicos de se viver uma nova experiência.
O estrondo a interrompeu e cortou todas suas lamentações. A forte batida da porta chamou sua atenção. Priscila largou as malas e correu até a porta. Girou a maçaneta mas não conseguia abri-la. Estava trancada. Ela havia a trancado. Balançou a maçaneta á ponto de quebrá-la. Lisbela havia a trancado?
— Lisbela? O que você está fazendo Lisbela?- Priscila se desesperou – Abre essa porta! Lisbela! Por favor! Lisbela abre essa porta!- o lampião apagou como a esperança quando é engolida pelas sombras e Priscila agora estava no escuro – Lisbela! O que está acontecendo? Abra essa porta! Como você pretende resolver as coisas assim? – Priscila recuou e olhou para a janela de vidro. Já estava fechada, antes que percebesse. O que essa mulher quer? Priscila sentou na cama com palpitações na cabeça sobre o que viria a seguir. Talvez, ela fosse mesmo perigosa. Talvez, Dérick mais uma vez estivesse com a razão. Agora talvez fosse tarde para tantos talvez. Ela olhou para a porta e a maçaneta girou por conta própria fazendo um uivo. A porta rangeu abrindo lentamente e a escuridão impossibilitou que enxergasse qualquer coisa. Parecia um túnel assombroso.
— Lisbela?- Priscila indagou levantando vagarosa da cama, em meio á um crescente medo que acelerou aos poucos seu coração. Abriu a porta por completo e deu o primeiro passo no escuro corredor onde pouco via.
— Lisbela?- indagou passando pela escuridão quando pisou em algo. Ela se abaixou e pegou os papéis, notando as folhas de cadernos com desenhos e momentos descritos. Lembrou-se que havia esquecido o diário no banheiro, mas agora era tarde e ela via suas folhas destruídas em pedaços pelo corredor. Ela se levantou e seguiu até o final do corredor quando pisou em algo gelado. Abaixou-se apreensiva e pegou a placa de metal onde a luz de fora que vinha da janela da sala reluziu no metal, e revelou á Priscila algumas letras das palavras soldadas no metal. Forçou os olhos e enfim enxergou com auxílio da claridade. Leu, e seu próprio sussurro a assustou: Dérick Rafael, falecido em 1942. Priscila soltou a placa e ameaçou gritar com o susto que levou. Dérick estava morto? Haviam o assassinado? E seu filho? Onde Ítalo estaria nesse momento? Agora não sentia apenas medo, agora seu corpo e sua mente estavam dominados pela tensão. Priscila correu passando pela sala e chegando até a porta. Chacoalhou a maçaneta por não conseguiu abrir. Estava trancada mais uma vez. Ela estava presa? O que Lisbela queria com isso? Os lampiões da sala acenderam e Priscila virou-se para o centro da sala.
— Já que você é uma ótima mãe, eu só devo me inspirar em você. Por isso, toda vez que acordar vou chegar nessa sala e vou me inspirar nesses quadros, nesses lindos retratos… Conhece?- Priscila olhou os quatro quadros da sala. Todos com fotos de Mateus. Todos com fotos de seu falecido filho. Seu olhos cintilavam de ódio sobre o ato repugnante daquela mulher. A faca ameaçadora na mão esquerda dela.
— Eu mandei os meus filhos dormirem na casa dos gêmeos.- Lisbela continuou com as mãos na cintura – Os mandei justamente pra fazer um passeio com você, um piquenique na madrugada, o que acha?- Priscila sentiu os batimentos cardíacos dispararem, e Lisbela sorriu alegre aguardando a resposta – Não precisa dizer, eu li no seu diário que você queria ter feito muitos piqueniques com sua mãe, mas é uma pena que ela tenha a deixado e acabado morrendo por aí.- Lisbela deu um sorriso limpando a faca no xale – Você vai fazer um bolo pra gente, de qualquer sabor que você quiser e nós vamos passear pra você matar o seu desejo.- Lisbela foi até ela e tocou em sua mão, deixando o corpo de Priscila tão frio como um defunto – Você não vai á lugar nenhum se não for comigo.- Priscila a fitava com ira e ela ainda sorria – Você não se manda mais, minha doce empregada.- Lisbela a deixou lentamente, desprendendo seus olhos dos dela aos poucos e foi até a estante ligando o rádio e descontraindo os ombros. Pôs a faca brilhante em cima do rádio.
A música clássica começou a tocar e Lisbela aumentou no último volume.
— Agora vá pra cozinha mocinha.- Lisbela sorriu batendo palmas com um ar de comemoração – Vá pra cozinha e dê o seu melhor, pois a sua noite só está começando.- Lisbela sentou no sofá.
Priscila apoiou as duas mãos sobre pia e as lágrimas desceram até seus lábios mais uma vez. Estava com ódio de Lisbela. Ela poderia ter feito mal á seu filho ou a Dérick. Ela poderia tentar tirar sua vida á qualquer momento. Corria grandes riscos naquela casa. Quem era aquela mulher? Uma psicopata?
Priscila pegou a forma redonda no armário e selecionou os ingredientes de um bolo comum. Olhou desconfiada para a sala e Lisbela dançava no tapete como uma bailarina contagiada, como se aquela fosse a noite mais feliz da vida de Lisbela.
Ela aproveitou a distração dela e buscou a caixa de chumbinhos debaixo da pia. Pegou dois e os segurou na palma da mão, os olhando com um certo medo e um desejo incontrolável de usá-los. Buscou uma bacia no armário. Jogou os ingredientes e rápido os misturou de qualquer jeito. Mesclou os dois chumbinhos na massa do bolo.
— Perdoe-me um dia meu Deus.- Priscila mexeu rapidamente a colher de pau olhando várias vezes para trás – Perdoe-me mais uma vez. – Ela colocou o bolo no forno antigo, ligou em 180º graus e aguardou.
Lisbela dançava relembrando seus tempos de bailarina na juventude. Dançava como se não houvesse amanhã.
— Edith Piaf, uma verdadeira rainha.- Lisbela exaltou a cantora surgindo na entrada da cozinha – Já escutou Hymne á l’amour?
— Não.- Priscila tentou sorrir, disfarçando o medo – É a primeira vez.
— O bolo está pronto?- Lisbela questionou descontraída.
— Não, mas falta pouco. – Priscila procurou elevar a temperatura do forno.
Lisbela voltou á dançar na sala. Priscila quase tapava os ouvidos, e a altura da música parecia a deixar mais tensa.
Minutos depois o bolo ficou pronto. Lisbela desligou o rádio e pegou a garrafa térmica que tinha uma boa quantidade de café. Colocou alguns pães caseiros numa cesta, retirou o bolo da forma e o cobriu com pano de prato colocando-o também na cesta.
— Vamos mocinha?- Lisbela questionou vestida com um de seus tradicionais casacos. Priscila continuava com uma blusa de lã e uma calça de moleton preta. Encolhida, suspirou e abriu os lábios:
— Vamos.- respondeu despreparada para o pior.
Lisbela e Priscila saíram da casa e a patroa a direcionou para a subida de onde viera quando tentava encontrar a casa de sua patroa. O vento soprava levantando os vestidos, e sacudindo os casacos.
— Onde vamos?- Priscila indagou, olhando para os dois lados e pensando numa fuga.
— Sem pressa, você saberá de tudo.- Lisbela pisava firme com a sapatilha – A pressa é inimiga da perfeição, e dos mais jovens. Você é jovem, não precisa ter pressa. Vai dar tudo certo.
Não demorou nada e elas chegaram enfim onde Priscila já imaginava. Os segundos era uma tortura que alimentava o mistério.
— E aqui estamos.- Lisbela sorriu para o lago. A meia-noite estava bem próxima – Eu pedi o barco emprestado para Senhor Edgar.- Lisbela segurou no imenso remo – Nós vamos dar uma volta nele.- ameaçou sorrir- Vamos deixar o lago nos consumir. – a patroa embarcou colocando a cesta no fundo do espaçoso barco. Priscila temeu.
Ela colocou o pé direito e Lisbela a auxiliou a se firmar e sentar no barco.
— Vamos lá.- Lisbela começou a remar lentamente e foi aumentando aos poucos o ritmo. Priscila não sabia se a patroa estava levando-a para a morte ou se jogava com ela, mas seu cinismo diante da situação parecia cada vez mais perigoso e insano. Lisbela observava as flores rosas no morro, sempre tranquila disse:
— Já notou o quanto essas flores são lindas? Só existem aqui em SweetVillage e nunca deram um nome para ela.- Priscila lembrou-se de quando havia chegado e achara tudo muito belo, principalmente as flores – Está gostando do passeio?- Lisbela perguntou – Faz uma noite tão agradável e viva, não é mesmo?
— Você tem razão .- respondeu apenas – Você não quer experimentar meu bolo? – indagou, engolindo seco e temendo as consequencias certas de seu próximo ato.
— Ah…sim claro.- Lisbela abriu a cesta e retirou o bolo do pano de prato quadriculado de vermelho e branco, colocando-o sobre a cesta – Que cheiro estonteante, você vai querer um pedaço, certo?
— Não, eu acabei comendo coisas na Maysa quando estive lá.- Priscila justificou, apertando as próprias mãos.
— Tome cuidado, Maysa acumula comida estragada que pode fazer mal muito mal e até mesmo… Matar.
Priscila deu um sorriso forçado e comemorou internamente ao ver a patroa comer um grande pedaço do seu bolo. Perdoe-me Deus, mas não posso morrer ainda. Por Ítalo. Os olhos de Lisbela brilhavam, algo estava errado. Ela começou a piscar frenéticamente segurando sem forças a mão da empregada. Tão rápido e tão forte, começou á tossir compulsivamente, engasgada e suas veias saltavam no pescoço e na testa. Abalada, Priscila fechou os olhos optando por não assistir sua morte.
— Priscila… me ajude. Eu não estou bem… – ela disse quase sem voz agarrando na perna da empregada – Algo está muito errado aqui… Priscila… – largou aos poucos a mão trêmula da empregada.
Colocou as duas mãos na garganta e com a expressão pálida apagou estirando-se no barco.
— Desculpe. Me perdoe. – Priscila lamentou sozinha. Segurou o pulso de Lisbela. Ela já estava morta. Priscila teve pouco tempo para as lágrimas, mas elas escorriam sem controle pelas maçãs de seu rosto. Priscila virou o corpo de Lisbela e o jogou com muita dificuldade do barco. Viu o corpo boiar por um tempo nas gélidas águas do lago de Reis, e sumir aos poucos no negrume iluminado pela lua. Mas não demorou muito pra voltar a agir. Preciso recolher tudo que é meu e tudo que possa me incriminar diante de autoridades. E depois fugiria daquele lugar pra não voltar mais. Nunca mais.
Ela remou de volta á terra. Priscila arremessou o bolo e a cesta no lago. Caminhava rápido, e o que mais temia era ser vista por algum morador da vila. Chegou á porta da casa quase que correndo. Pedia perdão mas sabia que o que fez foi necessário. Ou seria ela ou seria eu. Priscila abria a porta. Priscila entrava na casa. Priscila estava na sala. Agora só preciso arrumar minhas coisas e fugir daqui. Acabava de cometer um crime, mas estava em pânico e só queria sair daquele lugar o quanto antes.
A televisão antiga ligou sozinha e a fez parar. O vídeo do recente dia do seu aniversário começou a rodar. Os primeiros segundos foram reproduzidos e Priscila entrou em choque. Segundos aterrorizantes de um filme macabro e real. Suas mãos tremiam e seus batimentos cardíacos dispararam com um medo descarrilhado. Apenas ela, Dérick, e Ítalo apareciam em seu vídeo de aniversário. O vídeo não mostrava nem Lisbela e nem seus filhos, como se não conversasse com ninguém, não haviam sons da fala de qualquer um. O prato recebido pela patroa flutuava no vídeo. Foi quando o corpo inteiro de Priscila se horripilou. Ela colocou os seus dedos tremendo sobre o próprio rosto quando seu celular tocou e o som vinha do quarto de Lisbela. Priscila saiu da sala como quem foge da verdade, correndo foi até o quarto o mais rápido possível e ouviu o chamado estridente do celular pela terceira vez. Seria Dérick? Seria Ítalo? Conseguia pensar apenas em sua família naquele momento. Abaixou-se, e o celular chamava debaixo da cama. Priscila entrou debaixo dela e deitou de lado o atendendo. O pânico aumentava gradativamente.
— Alô?- Priscila indagou com os dedos tremendo – Alô?!
— Mãe…- ouviu a voz de Mateus e seus lábios começaram a tremer.
— Mateus?!- as lágrimas começaram a descer incontroláveis novamente.
— Mãe…- ouviu a voz do filho mais uma vez quando apertou o celular com a mão que segurava e suas unhas quase cortavam a própria palma da mão. Uma estarrecedora risada soou no celular e Priscila arremessou o aparelho contra a parte de baixo do guarda-roupa. Suas mãos cobriram o rosto quando a música clássica cortou o silêncio cruelmente e começou a tocar no volume máximo na sala. Priscila arregalou os olhos escutando aturdida a música. Sentiu debaixo da cama o terror muito próximo, e o medo corria em suas veias como sangue.
— Você não pode ressuscitar os mortos Priscila…- a voz falava atrás dela no pé do seu ouvido.
Priscila virou-se com lentidão e terrificada soube quem soprava palavras em seu ouvido. O braço mais gelado que os altruísmos da vida a abraçou estremecendo sua alma.
—… E muito menos matá-los.- ela estava face a face com Lisbela.
Priscila estava em pânico. Sua tensão a entorpeceu novamente diante dos olhos de Lisbela. Priscila gritou aterrorizada estarrecendo os quatro cantos de SweetVillage. Seus secos lábios tremiam. Suas pupilas escorriam dores, seu rosto corado empalideceu quando seu corpo se envidraçou.