Mesmo após dois dias, os sintomas da quimioterapia ainda incomodavam e perdi todo o ânimo. Tirei alguns dias de licença da universidade, sem explicitar os reais motivos. Algum tempo de afastamento me ajudaria a prosseguir com os experimentos muito embora não me sentisse bem. Arranjamos tudo para que o contato acontecesse da melhor maneira possível. Lara instalou em si os eletrodos, enquanto André preparava os dispositivos para a coleta de dados. Os amplificadores de som e os filtros de imagem foram posicionados na sala de jantar.

Enquanto André conectava os fios, Lara recostou-se tranquilamente no sofá com a cabeça apoiada em almofadas. Minha mente estava confusa. Lá no íntimo eu ainda era atormentado pela dúvida com relação àquela gravidez e pela maldita sensação de ter sido traído. Já havíamos conversado exaustivamente sobre isso. Eu queria acreditar! Ora, sou cientista e sei muito bem que bebês não caem do céu. Meus sentimentos oscilavam. Tentava focar no experimento para não ser dominado por eles.

— Estou pronta; aliás, estamos — brincou Lara.

— Faltam alguns detalhes. A senhora poderia colocar o eletrodo? — pediu André, envolto num emaranhado de fios, cabos de conexão e extensões elétricas.

 — Já fiz isso — disse ela, ajeitando os conectores nas têmporas. — Estou super curiosa.

André ligou o aparelho. A princípio, escutamos o som de um borbulhar, como se estivéssemos no fundo do mar. Nenhuma imagem. A tela estava escura.

— Surpreendente! O som do movimento do líquido amniótico! — comentei, tentando detectar alguma coisa na tela.

— André, troque para o segundo sinal. Filtre os transientes e mantenha em evidência somente o sinal do segundo cérebro.

Ainda nada.

— Querido, você pode aproximar um pouco mais o abajur? Está escuro aqui — pediu Lara, decepcionada com a falta de resultados.

Quando o abajur iluminou Lara, a imagem do monitor se avermelhou. André imediatamente recuou.

— Viu isso, professor? Captamos a imagem do embrião. Os neurônios dele reagiram à luz.

— Mas é claro! Embrionariamente, a retina é uma parte do próprio cérebro. Portanto, uma das partes sensíveis do sistema sensorial. Incrível! O embrião, neste estágio, consegue enxergar. Aproxime mais a luz.

André aproximou o abajur da barriga de Lara. Subitamente, captamos a imagem de uma mãozinha. Fascinante! Lara ficou tão eufórica que começou a falar com voz de criancinha:

— Olha só que mãozinha mais bonitinha! – Disse ela admirada. Eu mesmo contive a euforia. Toda aquela situação de desconforto entre nós esvanecera. Interessante ver como diante do fenômeno da vida os problemas se tornam insignificantes. O cientista estava havia sido engolfado pelo poderoso instinto de pai.

Ouvimos um som abafado, distante, incompreensível.

— Professor, por que o senhor não tenta falar com o embrião? Podemos ver como sua voz atinge os seus sentidos.

Concordei meio sem jeito. Aproximei-me da barriga de Lara e disse em voz alta:

— Olá, sou eu.

A despeito de me sentir ridículo, minha voz saiu tão alta que a imagem e o borbulhar aumentaram de intensidade no áudio. Talvez tivesse sido alto demais para a delicada percepção do embrião.

— Tente falar mais baixo, professor. Acho que o senhor o assustou — disse André, ajustando o equipamento.

— Como assim? Ele já escuta? Também quero falar com ele.

As imagens se misturaram. Pedi que ela não se mexesse muito.

— Tudo bem. Faremos mais uma tentativa, mas não o assuste!

Posicionei-me e, com voz mais branda, disse: — Olá, bebê. Você está bem?

Naquele instante, a imagem mudou de cor. Bolas luminosas e traçados coloridos surgiram na tela.

— Você viu isso?

— Vi, claro que vi, tente outra vez, querido.

— Olá, bebê. Você consegue me ouvir? — Parecia que tentávamos nos comunicar com um ser de outro planeta.

— Olhe, professor! Imagens coloridas. Padrões diferentes. O que podem ser?

— Arriscaria supor que o embrião, nesse estágio de desenvolvimento neuronal, desenvolve os sentidos de maneira diferente em relação ao que se conhece atualmente. Seu corpo inteiro é sensível. Quem sabe, ao ouvir minha voz, ele a traduza como estímulos sinestésicos: som e luz. Acredito que a função biológica desse comportamento é treinar a área visual do cérebro.

— Fantástico! — disse Lara, enquanto André registrava todos os detalhes.

Estava decidido a me comunicar com ele. Dirigi ao pequenino várias frases. Buscava chamá-lo, atrair sua atenção. Sobreveio o assombro quando escutamos uma voz delicada:

— Pai.

— Minha nossa! — Exclamou Lara.

— O que é isso? Você gravou, André?

— Si-si-sim. Claro que sim — gaguejou o rapaz, a controlar as emoções para não perder nenhum dado.

— Pai… — ouvimos outra vez. A voz, envolta num chiado eletrônico, era espantosa.

— André, module e amplifique.

— Pai… — a voz ficou mais nítida.

— Estou aqui — respondi  desconcertado e ao mesmo tempo emocionado. Única frase que quebrou todas as barreiras atrás das quais me entrincheirava. A voz me abraçou, envolveu-me de tal maneira que mal podia acreditar. A magia daquele momento me arrebatou. Lara não conteve o choro. — Pai, estou aqui.

Emudeci. A excitação misturou-se ao medo. Foi algo incontrolável. Tive que pedir a André para finalizar o experimento. Era por demais bizarro para suportar.

— Não! Por favor, continue. Ele quer falar conosco. Por favor, continue — implorou Lara, segurando meu braço, receosa de perder o contato.

— Não estou preparado. É contrário a tudo aquilo que sei.

Relutante, acabei cedendo. Com os olhos fixos na tela, reassumi meu posto e esvaziei a mente de qualquer ideia preconcebida. Não tinha a menor noção do que perguntar, mas arrisquei.

— Você me entende bem?

— Sim — respondeu ele, prontamente, colorindo a tela do monitor. Sua voz era branda e firme.

— Bebês não fazem isso! Eles passam a entender à medida que suas sinapses nervosas evoluem com o aprendizado. E você nem bebê é ainda…

Lara segurou-me pelo braço cheia de emoção e disse:

— Deixe de cientificismo. Ele é pequeno pra saber dessas coisas.

A tela tingiu-se de um colorido intenso: azul, verde e vermelho. A voz mais uma vez se manifesta:

— Minha consciência, neste estágio, já pode se comunicar. Estou em formação, mas consigo elaborar pensamentos sofisticados. A consciência é, por enquanto,  integral. Contudo, à medida que me desenvolvo, sinto leve torpor e percebo que lapsos de memória ocorrem. Acredito que, ao nascer, deixarei de ser lúcido da minha condição — explicou o embrião.

— Sua voz… Soa como a de um jovem. Como isso é possível se o aparelho fonador ainda não é desenvolvido? — indagou André, com uma interrogação enorme estampada na cara.

— Não falo através do meu aparelho fonador, mas através dos neurônios. Eles obviamente veiculam os impulsos elétricos. Desconheço as vias de como isso se processa.

Ficamos boquiabertos diante daquilo. Tampouco entendemos inteiramente a explicação.

— Continue falando com ele — pediu Lara em tom emocionado.

Fiz, então, outra pergunta:

— Você tem lembranças? Disse que tem lapsos de memória. Memória do quê? Sonha? Lembra-se de… de outras vidas? — Sempre considerei essa história de vidas passadas uma tremenda idiotice.

— Lembro-me de momentos recentes. Vidas passadas são memórias remotas que nem sempre afloram à consciência.

— Como é possível um embrião lembrar? A área pré-frontal do cérebro corresponde à região da memória, e neste caso, não está totalmente formada. Na verdade, está formada, mas não pode ser considerada funcional. Não se sabe ainda se um embrião é capaz de ter lembranças. Até agora.

— Pai, alguns poucos neurônios primordiais armazenam informações. A memória atual será substituída pelo fluxo de informações proveniente do novo meio no qual viverei. Sinto o que mamãe sente, estou ciente do que conversam, sinto gosto, sonho.

Aquela resposta conflitou com tudo o que eu havia aprendido durante a minha formação. A primeira reação foi achar aquela conversa uma maluquice. Estaríamos todos delirando? Discutir neurologia com um embrião! Não me contive:

— Como é possível um embrião ter clareza sobre mecanismos neurológicos? Isso é complexo até mesmo para nós cientistas.

— Sou filho de um cientista. Para me vincular a esta existência, preciso ter o mínimo de compatibilidade com meus pais. É um conhecimento adquirido por vias ainda obscuras para o conhecimento humano.

Surreal! Não sabia se largava tudo aquilo e corria ou sei lá o quê! Mas no fundo, ficara lisonjeado com o comentário.

— Eu gostaria de lhe fazer algumas outras perguntas. Na verdade não sei nem por onde começar.

O inédito resultado obtido logo de cara nos deixara sem rumo. Ficamos em silêncio por algum tempo. Então, decidi reiniciar:

— Bem, pelo que posso perceber, você tem autoconsciência. Sabe que existe e consegue perceber o seu próprio meio. Percebe também o ambiente externo, pois já nos reconhece como seus pais. Sua percepção é assim tão precisa e sofisticada?

A tela exibiu um tom dourado. Pensei que eram novamente aqueles efeitos espúrios, até lembrar da capacidade sinestésica do embrião. As explosões de cores representavam o processamento dos pensamentos dele. Uma espécie de reação luminosa à ativação dos neurônios. A resposta veio em seguida:

— A organização celular depende da informação que o corpo possui. A uma força desconhecida informatiza proteínas específicas para que elas se combinem entre si e acionem genes também específicos para o desenvolvimento de um novo corpo viável.

— Proteômica. Proteínas são acionadas por outras proteínas que acionam genes. Mas que força seria essa que comanda tudo de maneira tão perfeita? – Indaguei surpreso.

— (…)

— Que força seria essa? — Agarrei imediatamente um bloco de papel e uma caneta para anotar todos os detalhes. André  gravava tudo. O rapaz vidrado nos monitores assentiu com a cabeça, mantendo-se calado.

— Deus. Ele provê tudo o que um corpo precisa para se desenvolver. É nele que há a programação necessária para que tudo funcione, do nascimento à morte.

— Mas como isso é possível? Deus? O que Ele seria, então? Algum tipo de eletromagnetismo?

— Não, pai. Não há como explicá-Lo. Ele está tão presente que faz parte de nós.

Aquilo causou uma avalanche de pensamentos. Tentei a todo custo buscar parâmetros conhecidos dentro da minha formação acadêmica, mas foi inútil. O único ponto que permitiu dar continuidade à conversa foi algo de âmbito religioso:

— Deus existe… nossa conversa se encaminha para… Não sei se estou preparado para esse tipo de assunto — retruquei, caminhando de um lado para o outro, com a sensação de total inadequação. Deus existe. Existe?

Lara e André se entreolharam. E o embrião respondeu com outra pergunta:

— Caso contrário, você será somente um ruído dissonante. Inviável para a existência.

A resposta dele aguçou ainda mais minha curiosidade. Eu prossegui:

 — Você já viu Deus?

Primeiro um silêncio abissal tomou conta do ambiente. Depois a resposta:

— Sequer imagino tal possibilidade. Mas sei que Ele está comigo. – Disse o embrião calmamente. – Arrisco dizer que Deus é uma força potencial somente acessada pela entrega de si. Longe de ser um objeto de especulação, Ele está sempre conosco. Independente de nossas crenças e julgamentos.

Confesso que fiquei confuso e resolvi perguntar outra coisa:

— É comum dizermos que não escolhemos nossos pais. Lembro-me de, na minha adolescência, ter dito isso para minha mãe, num momento de rebeldia. Isso é verdade? Você nos escolheu ou foi tudo casual?

Fui interrompido por um sinal de Lara, que achou a pergunta complexa.

A tela tingiu-se de violeta, e bem no meio surgiu um círculo de um amarelo forte. E a resposta veio:

— Deus é quem determina a forma como deve ser.

— Mas como isso é possível, se um espermatozoide e um óvulo são apenas gametas?! — Eu o interrompi antes mesmo de ouvir a explicação. André continuava vidrado nos gráficos e ao mesmo tempo permanecia focado nas respostas do embrião.

— Antes de responder a essa pergunta, posso lhe fazer um pedido? — Era a primeira vez que ele nos pedia algo. Seu tom de voz ficou diferente, mais brando.

— Claro! Se pudermos atender…

 — Você poderia me chamar de filho?

Desmontei. Um sentimento profundo de carinho tomou conta de mim novamente. Aquela criatura sobrenatural, meu filho, pedia para envolvê-lo de afeto. A partir daquele instante deixei de lado a arrogância cientificista.

— Sim, filho. Claro que sim.

Lara chorava contidamente. Depois disso, André notou algumas flutuações nos registros. O embrião parecia ter entrado em dormência.

— Professor! — exclamou André, com voz aflita. — Perdemos o contato. O embrião, ops, desculpe, seu filho, adormeceu.

Lara se levantou do sofá e se ajoelhou diante do monitor. Deslizou a mão sobre tela como se tentasse se agarrar ao último sinal que esvanecia.

— Por hoje chega. Retomaremos amanhã — disse eu, a tentar esconder a ansiedade. Não se faz ciência com emoção. Um paradoxo que tive de assimilar.

Lara olhou fixamente para mim.

— Não é incrível? Falamos com nosso filho antes de ele nascer. Isso é magnífico, maravilhoso!

— Amanhã teremos novas surpresas.

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