Deixamos o pronto-socorro com uma bateria de exames a serem realizados o mais rápido possível. As recomendações médicas básicas já haviam sido feitas. Voltamos para casa calados, mergulhados em pensamentos contraditórios. Eu continuava irritado e com medo.  “Um filho se sou estéril… Um nascimento se vou morrer… Filho de quem? Fui traído? Mas nos amávamos! Ela não é uma mulher leviana. Ou é? Tornei Lara infeliz? Foi esse o motivo?”

Minha cabeça não parava. Naquela noite, tentamos iniciar uma conversa, mas no final acabamos chorando abraçados na sala de estar. Pela primeira vez na minha vida, desconfiei da integridade de Lara. Sou estéril (e isso mais que comprovado por exames clínicos) e a “divina providência” não poderia ter arranjado isso. Se aceitasse passivamente essa história, teria de começar a acreditar em coelhinho da páscoa e em Papai Noel. Teria sido eu, após tantos anos de casado, traído por alguém que sempre amara? Lembrei-me da primeira vez que a vi na universidade onde estudávamos. Uma garota radiante, bonita, delicada. Nossos olhares se cruzaram pela primeira vez no baile. Eu estava no segundo ano de Biologia e, ela, no primeiro de Administração. A partir daí ela passou a habitar cada pensamento, tudo o que eu imaginava, cada ato, cada plano. Ela impregnou minha alma de tal jeito que nos fundimos um ao outro. Nossa relação sempre fora da mais profunda confiança. Havia uma cumplicidade afetiva sem igual. Para essas coisas não existe explicação racional. Aliás, essa é uma das poucas áreas onde a lógica não entra. Antes de nos casarmos, contei-lhe que era estéril. Optamos por viver sem filhos.

Olhei para Lara. Ela deixava que as lágrimas caíssem sem a menor tentativa de contê-las. Parecia indignada com a situação e isso me deixava ainda mais confuso.

— Vou para o quarto. Não quero ficar aqui. — Ela se levantou, mas seu olhar caiu sobre o transdutor neuronal.

— Que é aquilo? —Perguntou, com voz trêmula.

— Ah! — Esforcei-me para responder em tom neutro. — Trouxe para fazer alguns ajustes. É um transdutor neuronal.

— Sabe o que pensei que fosse? Um aparelho de ultrassonografia. Já pensou como seria interessante termos nosso próprio equipamento? Poderíamos acompanhar o crescimento do bebê diariamente.

Enquanto falávamos, evitávamos cruzar o olhar. Lara aproximou-se do aparelho e o segurou.

— Essa é uma versão compacta, com tela pequena — antecipei, procurando abreviar a conversa. — Esse aparelho é capaz de registrar seus impulsos neuronais e transformá-los em som e imagem — expliquei, por fim.

— Como assim? Um leitor de mentes?

— É mais ou menos isso.

— Como funciona?

— Quer mesmo saber? Agora? – Ela fez que sim. Então continuei. – Basta ligar e encostar o eletrodo na pele — completei.

— Pode ser no braço?

— Sim. Quer ver como funciona? — A mudança súbita de assunto quase me fez esquecer tudo de ruim que estava acontecendo. – Dê-me o braço. Repara, estou captando o eco de seus pensamentos. Vê essa imagem?

 — Sim. Parece uma câmera filmando o próprio aparelho.

— Na verdade, é você olhando para ele.

— Isso é incrível!

Subitamente detectei um sinal diferente: Um sinal neuronal trabalhando em espelhamento com os sinais cerebrais de Lara.

— Estranho! Esse aparelho está realmente precisando de uma regulagem — comentei, ajustando a sintonia do sinal captado.

— Por quê? Para mim parece perfeito — Disse Lara, sem entender o que estava acontecendo. Antes que eu respondesse, uma ideia cruzou minha mente como um raio. No entanto, estava esgotado demais para dar crédito às minhas próprias intuições. — Não é nada. Algum tipo de interferência. Farei os ajustes amanhã.

— Fernando, — ela raramente me chamava pelo nome — caso o médico confirme o diagnóstico, amanhã você iniciará a quimioterapia. E com certeza não terá ânimo para mais nada.

Tentei me esquivar:

— Começo o tratamento outro dia.

— Não brinque com a sua saúde.

— Não há de ser nada. Confesso que nem sei ao certo se estou interessado em continuar vivendo.

— Vamos subir. Deixe as coisas como estão. Não arrume nada. Quero que você descanse.

Ela subiu para o quarto e eu permaneci ali, diante do aparelho, só observando os sinais que ficaram armazenados na memória do equipamento. Com tantas coisas na cabeça, por mais que tentasse, não conseguiria dormir. Decidi, então, analisar as imagens captadas, e foi aí que notei uma segunda imagem, escura, com nuances avermelhados. Suposições começavam a fazer sentido.

 

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