Na manhã seguinte, senti a cabeça pesada. Aquela estranha conversa com meu filho tumultuou meu sono. Puxa! Havia conversado com meu filho ainda em estágio embrionário! Confesso que fora difícil chamá-lo de filho, embora a ideia me agradasse.

O experimento gerou uma enorme quantidade de informação em apenas vinte minutos, além de ter provocado uma completa reviravolta no meu conceito sobre existência. Estava cheio de expectativas e pensando na possibilidade de fazer mais perguntas crucial.

Aprender com um embrião… Isso ia muito além da minha capacidade de entendimento!

* * * * *

Faltava uma hora para o reinício do experimento, mas Lara e eu, e por que não, nosso bebê, estávamos a postos. Faltava André que traria o equipamento de apoio. Depois de uma hora, que pareceu uma eternidade, ele chegou. Cumprimentou-nos com um murmúrio. Soltou as malas no chão e se justificou:

— Desculpa. Dormi quase nada a noite passada. Conversar com um embrião é demais pra minha cabeça, e ainda por cima… Os conceitos…

— É, eu sei — disse eu, ajudando-o com o equipamento. — Não há nem como questionar. Revirei na cama a noite inteira.

O rapaz mal conseguia me olhar. Agora calado mexia nos cabos e ferramentas. Continuei:

— Todos os meus conceitos de vida e crenças caíram por terra.

André baixou a cabeça. Permaneceu pensativo. Quebrei o silêncio com a pergunta:

— André, você anotou todo o diálogo de ontem?

— Sim, professor. Inclusive algumas perguntas que ficaram sem respostas.

— Muito bem. Vamos ajustar o equipamento para dar início. Querida, você poderia, por favor, colocar o eletrodo?

Enquanto verificávamos os últimos detalhes, me dei conta de que a sala fora inundada por uma atmosfera de tranquilidade. Um aroma adocicado de rosas evolou pelo ambiente. A cortina, atravessada por um fino feixe de luz iridescente, enfunava-se lentamente com a brisa, pousando de volta com delicadeza. A primeira vez que tive a chance de perceber a riqueza de pequenos detalhes em minha própria casa.

Tomado pelo vislumbre me dei conta de que o eletrodo já havia sido colocado em Lara. Por ser uma gestação em fase inicial, ainda não era possível ver nem sentir externamente os movimentos do embrião, mas de alguma forma ela sabia que nosso filho estava acordado.

— Eu o sinto como um peixinho nadando na minha barriga. Está agitado hoje, e eu, ansiosa para saber mais sobre sua vidinha.

Lara soava como uma menina. O instinto de mãe aflorava. A ânsia de saber mais nos fez apressar o início do experimento. Logo, André  captou alterações na tela.

— É ele, professor. Temos contato.

— Filho, como você está?

— Muito bem, pai.

— Podemos conversar um pouco? Se sentir necessidade de parar a conversa, não tem problema.

— Sua preocupação é reconfortante. O sono incontrolável. Independe da minha vontade.

— Como são seus sonhos?

— Não, não sonho. Mas existe uma coisa… não sei explicar direito… é como se eu fosse para algum lugar do qual não consigo me recordar depois. Mas é uma sensação agradável.

— Quero perguntar várias coisas.

– Farei o possível para me fazer entender.

— Acho que estou pronto. E eu farei o possível para captar a informação sem  julgamentos — disse eu, abraçando Lara.

– Você poderia detalhar mais sobre o que nos revelou ontem?

— Explicarei da forma mais simples possível. Como disse antes, somos feitos de uma energia organizadora, um modelo estrutural energético que define o corpo.

André, com sua lógica acadêmica implacável, interrompeu imediatamente o emb… meu filho.

— Nossas características físicas são determinadas pelos genes, que são coordenados por proteínas.

— Desculpe discordar. Os genes não determinam nada, mas sim o modelo organizador biológico proveniente de Deus. Ele sim está envolvida na forma de como os genes irão se expressar. Trata-se de uma força tão poderosa que faz com que os elétrons se organizem para gerar potenciais eletroeletrônicos coerentes e assim se combinem.

André se calou. Meu filho defendia bem sua tese. Em resumo, o que ele dizia,  era que Deus é capaz de orquestrar a genética. Com propriedade, o embrião continuou sua exposição:

— O corpo é divinamente soprado para ganhar vida. Assim os pais tornam-se fatores fundamentais na formação de uma nova vida.

— Como isso é possível? — perguntei, enquanto Lara, ouvia maravilhada.

— O ato da concepção é algo sagrado…

Conforme a explicação transcorria, imagens do processo passavam pela minha cabeça, como num filme. Tudo soava absurdamente coerente.

André precipitou-se a perguntar:

— O embrião pode desistir de nascer?

— Somente Deus pode determinar o que pode acontecer.

Caímos em profundo silêncio, tentando digerir aquela informação. Resolvi fazer uma pergunta que imaginei delicada para mim e de extrema complexidade até mesmo para ele:

— Como foi possível Lara, sua mãe, engravidar, já que sou estéril?

Naquele instante, a tela saiu do verde-escuro e voltou ao tom dourado.

— Deus é capaz de ativar mecanismos orgânicos mesmo que ele seja defeituoso ou lento demais. Imagine que o espermatozoide carregue consigo uma espécie de sintonizador de rádio. Deus se utiliza deste para potencializar seus recursos, dando-lhe total condição e força para prosseguir com seu objetivo. Ele será forte o suficiente para vencer a barreira natural do óvulo e fecundá-lo. Na verdade, não importa o fato de existirem dez ou milhares de espermatozoides; na maioria dos casos, somente um será potencializado de acordo com a luz divina.

A explicação causou-me um grande alívio e, ao mesmo tempo, pouco satisfez minha curiosidade. Foi isso, então, o que aconteceu? Deus interveio na gravidez de Lara. Duvido. Acredito mais num acidente de percurso, na coincidência. Algo selecionou e ativou um espermatozoide que possuía as características e o potencial necessários para a fecundação. Agora, a pergunta permanecia: fui eu mesmo? Enquanto me debatia em questionamentos, o embrião disse:

— Pai, muitas coisas são possíveis. Estarmos aqui hoje é um milagre.

Gostaria de perguntar mais uma coisa — cortou Lara, hesitante, tentando ainda formular a indagação. — Para que estamos todos aqui nesse mundo? Qual a real lógica da existência?

Naquele momento notei que o assunto havia deixado de ter um caráter informativo para se tornar algo que poderia tocar nossas vidas e quem sabe até mesmo transformá-las de forma definitiva. Pessoalmente, considero tais questionamentos perigosos, pois tendem a conduzir ao vazio existencial. A pergunta de Lara foi também o estopim para André fazer uma observação cáustica:

— Essa é uma ótima questão. Somos obrigados a nascer, cuidar de um corpo por décadas, sofrer dores e doenças, trabalhar para esperar o gran finale, então, pra que viver? Já sabemos onde tudo isso vai dar…

Meu filho embrionário levou alguns segundos para responder, até que, finalmente, retornou com a mesma voz branda, mas firme:

— Sob a visão fria de um cientificismo limitado, realmente não há lógica na existência. Mas sob o ponto de vista de Deus, tudo tem uma razão importante de ser.

— Então, quer dizer que não há lógica na existência! — Repeti, para ter certeza de que não se tratava de algum mal-entendido.

— Se não existirmos para o próximo, não há lógica. — Respondeu ele.

— Se é assim, para que afinal estamos aqui? — Perguntou Lara, apreensiva.

— Por amor.

– Como assim, “por amor”? — Perguntei. — Por favor, explique melhor. Minha cabeça vai dar um nó! — exclamei já bastante confuso.

— Pensemos dessa forma: a vida média de uma pessoa é de setenta anos. O que fazemos ao longo desse tempo?

— Aprendemos, trabalhamos, sobrevivemos. — Afirmei eu.

— Se olharmos somente para nós mesmos, deixaremos de exercitar aquilo para qual fomos criados.

— E para o quê fomos criados? – Perguntou André.

— Para o amor verdadeiro.

— Você quer dizer que venho a este mundo para amar. Só isso? Pensei que podíamos aprender muito mais, adquirir informações técnicas, evoluirmos tecnologicamente. — Completei.

— Para onde iremos um dia, não precisaremos de nada disso.

— Então, o que viemos fazer neste mundo? — Insistiu André, com voz fraca e medo da resposta.

— Devo ter respondido a isso.

— Pensei que morríamos e pronto. Pelo menos essa é a forma como sempre pensei.

— Deus não desperdiçaria uma alma. Infelizmente, algumas pessoas passam pela existência como que mortas. Pai, saiba que a vida não deve ser desprezada.

—  O que quer dizer com isso?

Houve um momento de silêncio, que me deixou ansioso. Sem que ele respondesse, lembrei-me imediatamente da maldita doença que consumia meus dias. Meu filho manteve-se quieto.

Incomodada com a demora na resposta, Lara resolveu lançar mais uma pergunta. Imagine só: a possibilidade de uma mãe questionar o filho, um filho em gestação, com lembranças frescas do além:

— E por que você está aqui?

— Por amor. Esta é a minha missão.

— Professor, o sinal! Está fraco — avisou André.

— Descanse, André. Deixe-o dormir. Já basta por hoje. — A imagem  ficou escura, inerte.

Depois de André partir, Lara, inquieta,  tinha algo a me dizer:

— Durante o experimento, as imagens eram nítidas em minha mente e eu também era capaz de visualizar tudo o que aparecia na tela e que não pertencia à mim. Era como se eu estivesse unida a outro cérebro. O que isso pode significar? — comentou ela aflita.

— Não faço a menor ideia. Acho melhor verificarmos os registros. Só assim poderei responder. Amanhã relatarei isso a André. Não se preocupe.

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