Na manhã seguinte, os resultados dos exames complementares estavam nas mãos do médico, e ele bem na minha frente. Os indicadores pioraram. A recomendação foi convocar os membros da família para uma análise de compatibilidade medular, com vistas à realização de um transplante. Sob o aspecto clínico, a última alternativa. Sabendo do prognóstico, Lara conteve as lágrimas e procurou me animar.

O intrigante de tudo isso é que, apesar de ser comigo, não me sentia como um terminal. Uma força estranha me empurrava para a vida. Talvez o experimento direcionasse minha atenção para fora de mim. De certa forma, manter a mente ocupada seria melhor do que curtir a depressão de saber que eu estava tão mal.

À tarde, já em casa, aguardava André para auxiliar nos registros. Estava sentado na poltrona, com o tabuleiro de xadrez e as peças arrumadas bem à minha frente. Sentia que a vida assemelhava-se àquele jogo. No começo, achamos que estamos no controle. A esperança de ganhar sempre nos motiva. De repente, os ventos mudam e ficamos ao sabor dos acontecimentos. Só nos resta aguardar uma chance. Até que a sensação de impotência sobrevém, permanece e subtrai os sonhos. O passado, as lembranças emergem como tábuas de salvação tentando nos dar um sopro a mais de vida. No entanto, sabemos que são apenas lembranças.

As conquistas, o amor e o sonho de fazer algo importante diminuíam de importância diante da situação que representava meu fim. Tinha tanto ainda para descobrir e explorar! Apesar de tudo, senti necessidade de ter mais um contato com meu filho.

Em meio ao fluxo de pensamentos, via Lara cochilar. Mais uma vez, contemplei o ambiente tomado por aquela atmosfera de paz. A temperatura cálida, agradável, o aroma de rosas e aquele fino feixe de luz penetrando pela janela a matizar a superfície da mesa, exatamente onde o equipamento estava instalado.

De repente, o contemplativo foi quebrado pelo som estridente da campainha. André. Estava ofegante. Parecia nervoso. Entrou. Com passadas firmes depositou a mochila de equipamentos no chão. Omiti qualquer comentário. Esperei. Quebramos o silêncio conversando sobre os registros. Lara desceu a escada com cara sonolenta.

— Querida, você está bem? — perguntei, tentando ajudá-la a despertar mais rapidamente.

— Sim, mas com um tremendo sono. Coisa de mulher grávida.

— Vamos colocar o eletrodo, então. — Sugeri, segurando o dispositivo na mão, pronto para adaptá-lo.

Instalado o eletrodo, iniciamos a captação de sinais. O embrião acordara. Aquela típica explosão de luz dourada na tela marcou o início de sua manifestação.

— Senti falta de vocês — disse ele. Sua voz, porém, não era a mesma. Agora era possível percebê-la mais infantil, de menino mesmo:

— Sua voz está diferente — observei.

— O tempo avança, os neurônios passam a captar o padrão de diferenciação do novo corpo.

Tive o ímpeto de perguntar algo importante. Lara e André estavam concentrados em mim. E eu  transpirava receoso de conhecer a resposta à pergunta que estava prestes a fazer. Deveria perguntar isso a uma criança? Será que ele sabia da minha condição?

— Professor! Professor! O senhor está bem? — perguntou André, preocupado.

— Querido, o que houve? Acha que devemos parar? — Indagou Lara, aflita.

— Não, não, estou bem. Só tenho  dúvidas quanto a uma pergunta. Não sei se devo fazê-la.

Naquele momento o embrião produziu uma tela escura com um túnel prateado bem no centro.

— Pai, tenho ciência de sua pergunta: Como é a morte?

Meus olhos afoguearam.

— O medo do desconhecido — continuou — é mais um conceito errôneo que aprendemos ao longo de milênios. A morte é apenas uma pausa.

Enquanto o embrião (meu filho) falava, notei Lara empalidecer.

— Querida, o que está havendo?

— Medo.

Procurei acalmá-la, dizendo que estava tudo bem. O mesmo que chover no molhado. Ela continuou:

— É estranho. Sinto o que ele sente. Vejo em minha mente as coisas que ele vê. Compartilhamos os mesmos sentimentos.

Imediatamente perguntei ao meu filho o porquê daquilo. Ele respondeu com precisão:

— Estamos unidos por vários fatores. O que ela sente, também sinto. Às vezes, mamãe sonha os meus sonhos.

 — E por que ela sente medo?

Houve um silêncio perturbador. O monitor escureceu. Nenhum sinal. De repente, a tela ficou azul e o embrião decidiu falar:

— Gostaria de propor um experimento.

— De que tipo? – perguntei, curioso.

— Coloque o eletrodo em você e segure a mão dela.

— Mas, nós perderemos contato…

— Simplesmente faça.

Apreensivo, retirei o eletrodo de Lara e o posicionei em mim. O monitor agora captava os meus sinais. Porém, ao segurar a mão de Lara, três sinais surgiram na tela. Surpreendentemente tive visões mentais, assim como Lara havia descrito anteriormente. Ouvi o embrião pedindo que me recostasse no sofá e relaxasse. Fiz exatamente o que ele sugeriu. Fechei os olhos. E as imagens mentais ficaram nítidas. Tive a visão do túnel. Eu estava lá! Posicionei-me diante daquele turbilhão. Era enorme e girava rapidamente. Uma força incrível me atraía em sua direção. Novamente, ouvi a voz do embrião pedindo para que eu atravessasse o túnel. Hesitei, até que finalmente me arremessei. Entorpeci instantaneamente. Fui engolido por uma luz branca. Silêncio. A claridade ofuscante diminuiu aos poucos. Olhei em torno e percebi que estava numa casa parecida com a minha. Lara  cozinhava, feliz. Parecia ambientada e falava com alguém que eu não via:

— Venha ver quem chegou! Você ficará surpreso — disse ela.

Olhei para a porta e vi uma bola de praia azul rolando para mim vagarosamente. De repente, surge um menino sorridente de aproximadamente seis anos, cabelo encaracolado, castanho, pele alva. As linhas do rosto o tornavam bastante familiar.

— Você é…

— Sim, papai. Sou eu.

— Onde estamos? Que lugar é esse?

— Vocês estão na minha mente.

Imediatamente teorizei que o cérebro, mesmo o de um embrião, cria um modelo de realidade a partir das impressões que capta através da mãe.

— É assim que você imagina nossa casa?

— Sim, é dessa forma que seremos um dia.

— E Lara… Desculpe… Sua mãe sabe que estamos aqui?

— Claro que sim.

— Por que você nos trouxe aqui?

— Preciso falar uma coisa  importante.

Naquele instante, o ambiente, antes claro e acolhedor, tornou-se sombrio. Uma brisa fria soprou. Então, eu disse:

— Olha, prefiro não saber de nada. Já sei o que me espera. Por favor, não antecipe minha angústia.

O menino se aproximou, sempre a me  olhar com atenção.

— Não é sobre a sua morte, mas sobre a minha.

Nesse momento, Lara virou-se rapidamente. A faca caiu da mão. Precipitou em direção ao garoto e segurou-o pelos ombros:

— Mas do que é que está falando?

Tentei segurá-la, mas fui afastado. O menino a olhou calmamente e, explicou:

— Desde o começo dos experimentos, disse que o sinal estava fraco e instável. Na verdade, me referia ao meu próprio sinal.

— E por quê? – Perguntei

— O objetivo de minha existência é salvá-lo.

— Impossível. Trata-se de uma doença fatal… Não há como evitá-la, a menos que seja com, sei lá, com um transplante de medula. Mesmo assim, na minha idade, tal procedimento não é garantido. — O menino disse suavemente:

— Minhas células poderão ajudá-lo.

Olhei para Lara completamente confuso,

— Um transplante das minhas células para a sua medula e tudo estará resolvido.

— Não tenho o direito de tirar a sua oportunidade de viver. Já vivi o suficiente! Além disso, tal procedimento é proibido.

— Sei disso, mas seus colegas de equipe o auxiliarão. Tudo dará certo. Não se preocupe. Você, papai, deverá ficar para contar aos outros sobre esta nossa experiência. Mostre que a vida é ampla e deve ser respeitada.

— Isso é o mesmo que cometer canibalismo — rebati.

— Células são unidades promotoras de vida. Nelas há o substrato da vida. O transplante apenas lhe dará o potencial de melhora.

Lara, furiosa, me agarrou pelo colarinho:

— E eu, como fico nessa? Eu sou mãe e ao mesmo tempo não sou! Estou na iminência de perder um filho e um marido. Por que Deus tiraria os dois de mim? Fui enganada. Deus me enganou.  Como fico sem vocês? Preferiria não saber de nada! — e rompeu em lágrimas.

O menino se aproximou, deslizou seus dedinhos por entre os cabelos de Lara, que o abraçou fortemente.

Este não é um momento de conflito, mas de paz. A vida não cessa da forma como se imagina. Lembre que a vida só vale a pena se — tivermos amor. Mãe, se nos ama, esqueça de si mesma. Só se encontrará Naquele cujos planos desconhecemos. Deve ser assim.

Lara ergueu a cabeça, afrouxou os braços, deixou-os pender. Nossas missões (destinos, talvez?) já estavam traçadas. Mas e ele? Estaria  encerrado para sempre o nosso contato?

— Pai, o processo de desligamento começou. — Seus olhinhos, antes brilhantes, tornaram-se esbranquiçados. Então, completou: — As células devem ser coletadas o mais rápido possível.

Naquele instante, Lara sentiu uma forte cólica. Ouvi a voz de André como um eco distante a me chamar. Abri os olhos e notei que havia sangue no local onde Lara estava sentada.

— Vamos rapidamente para o hospital universitário. Farei a coleta das células.

— Professor, o que foi?

— Depois explico. Ligue para Carolina. Peça a ela para convocar rapidamente a equipe de pesquisas de células embrionárias. Procedimento sigiloso.

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