A Maldição de Villeneuve
Temporada 01
Capítulo IX – Jante comigo
Fera
“Quanto tempo ainda me resta?” era a pergunta que fazia todos os dias.
Eu não sabia qual era o tempo exato, mas sabia que se esgotava perigosamente a cada pétala caída. Ainda assim, nenhuma outra caíra desde o fedelho chegara a meu castelo.
O moleque não saía do quarto. Desde que eu lhe dera uma bronca, trancara-se lá dentro e não fazia menção de sair. Melhor assim. Quanto menos saísse, menos eu deveria me preocupar com outras tentativas de fuga.
Porém, com a presença dele ali, as palavras de Lumière martelavam em minha cabeça. Eu não teria uma esposa, não me livraria da maldição, entretanto… Eu realmente sentia falta da presença de outras pessoas. Não meus servos, mas pessoas comuns, pessoas… não amaldiçoadas.
Com certeza o moleque não quereria receber-me depois do que eu fizera. Ele me via como um monstro, e com razão. Eu quase o matara… Quase… perdera minha sanidade. A cada dia que passava eu sentia mais e mais o monstro rugindo em minhas entranhas, crescendo e se alastrando dentro de mim. Quando a última pétala caísse, tudo o que eu fora um dia sumiria. Não mais um homem, para sempre uma fera.
Eu tinha que combater a besta, tinha que lembrar-me do humano dentro de mim. E se a única forma de fazer aquilo fosse interagindo com meu prisioneiro, então eu me agarraria àquela deplorável alternativa.
Respirei fundo e segui para o corredor.
Damien
Passei os dias seguintes dentro do quarto. Não queria descobrir que outras coisas estranhas vivam naquele castelo, e muito menos encontrar a fera. A febre foi embora e os ferimentos foram fechando, logo eu conseguia comer e movimentar o pescoço sem sentir dor. Agora precisaria me fortalecer o suficiente para resistir ao frio do lado de fora se conseguisse sair do castelo.
Olhei pela janela. Eu não entendia aquele lugar. Como ninguém nunca vira aquele castelo? Por que tudo estava congelado se não era inverno? Por mais que eu perguntasse aos móveis-vivos, nenhum deles respondia às minhas perguntas. Disseram que o mestre os proibira de falar. E eu não abordaria a besta para conseguir as respostas.
Eu não ficava mais sozinho. Talvez porque os servos tivessem pena de mim, um prisioneiro de seu mestre, ou talvez porque o monstro ordenara que me vigiassem para eu não fugir. Vez ou outra algum vinha me trazer alguma comida ou preparar um banho quente, mas na maior parte do tempo deixavam-me em paz, creio que sabiam o medo que eu tinha de ver objetos animados. A única que me fazia companhia todo o tempo era a mulher guarda-roupa.
Madame Garderobe, foi como ela se apresentara. Até que era uma senhora simpática, que costumava cantarolar músicas antigas que dizia tocar nos salões da nobreza. No entanto, eu sentia falta de privacidade. Compartilhar o quarto com meu pai era uma coisa, compartilhar com uma… mulher… objeto vivo… guarda-roupa falante… era estranho.
Ainda ponderava meus próximos passos quando ouvi uma batida na porta. Olhei tenso na direção.
— Garoto — a voz rosnada chamou.
Eu gelei. Era ele.
Fui pé ante pé até a lareira e agarrei o atiçador de brasas.
— O que você quer?
A fera rosnou, parecia não gostar da forma que fala com ela. Parei ao lado da porta, com o objeto erguido acima da cabeça.
— Quero que jante comigo.
Quase deixei cair o atiçador, de tão desconcertado. Meu rosto esquentou de raiva.
— Como é?!
— Quero que jante comigo — repetiu impaciente.
— Eu não quero jantar com você!
— Você não tem escolha! — ele rosnou e tentou abrir a porta.
— Ah, eu tenho sim! — falei e tranquei a fechadura.
A fera ficou furiosa e começou a esmurrar a porta, enquanto eu corria para o lado oposto do cômodo. Estava morrendo de medo, mas não me tornaria um bichinho de monstro.
— Você DEVE me OBEDECER!!! Eu sou o SENHOR desse castelo!!! — a criatura urrava.
— Não sou seu servo! Deixe-me em paz! — gritei.
Ouvi um rosnado irritado do outro lado e outra batida violenta que pensei que partiria a porta.
— ENTÃO VAI FICAR COM FOME! — a besta urrou, esmurrou uma última vez e então ouvi seus passos pesados se afastando.
Somente quando o som sumiu que suspirei mais aliviado. Apesar de tê-lo enfrentado de cabeça erguida, meu corpo todo tremia. Encostei na parede e fui escorregando devagar até o chão, onde me encolhi e abracei minhas pernas, ainda ofegante.
Madame Garderobe olhou preocupada para mim e se aproximou. Ainda encolhi-me no início, mas já havia me habituado com aquele objeto vivo. Ela parou ao meu lado e falou algo que não prestei atenção, creio que tentava me acalmar. No entanto, tudo o que passava por minha mente era que eu tinha que fugir, tinha que ver minha família novamente…
Minha família…
Arfei e apertei ainda mais meus joelhos. Eu me sentia tão sozinho ali que chegava a doer. Sentia falta das minhas irmãs, por mais insuportáveis que fossem às vezes. E eu sempre fui independente devido a tudo o que acontecera em nossas vidas, mas, por Deus, como eu queria o colo do meu pai e me sentir protegido naquele momento!
— Madame… — eu chamei, tentando controlar voz trêmula.
— Sim, querido…?
— Naquele dia… quando eu cheguei… A senhora saberia me dizer onde foi parar o livro que eu trouxe? — perguntei, um pouco temeroso. E se a besta o tivesse destruído em seu acesso de raiva?
— É um com capa azul, não é?
— Sim! — me virei para ela, esperançoso.
Suas feições no metal e madeira pareceram sorrir quando ela abriu uma de suas gavetas. Exclamei surpreso ao ver o objeto ali.
— Eu o vi caído no chão depois da confusão e achei melhor guardar por segurança.
— Muito obrigado! — agradeci e peguei o livo.
O objeto, por sorte, não estava danificado além de leves amassados. Alisei a capa simples e meu coração se apertou ainda mais. Ali estava a salvo a única coisa que eu tinha para me lembrar de minha família. Abracei o livro e senti a garganta fechar e os olhos lacrimejarem.
— Isso… foi um presente do meu pai. Ele me deu antes que… antes que eu fugisse e viesse no lugar dele — falei com a voz embargada.
— Entendo — ela murmurou em um misto de surpresa e pesar.
Dei um leve sorriso tentando me fazer de forte, mas não pude evitar as lágrimas que escorreram por minha face. Eu podia tentar me fazer de durão, mas no fundo eu era apenas um adolescente assustado que só queria poder voltar para casa.
— Ah, querido… — ouvi-a murmurar com pena.
Encolhi-me apoiando a testa nos joelhos e deixei as lágrimas escorrerem enquanto eu soluçava de saudade e extravasava tudo o que estava guardado até então.
Fera
Saí furioso. Quem aquele fedelho pensava que era? EU era o DONO daquele castelo! TODOS deveriam OBEDECER a mim! Principalmente um prisioneiro! Minha vontade era pegar e esganar o moleque, mas se eu fizesse mal a ele, seria eu quem teria que cuidar do garoto de novo. E se eu o matasse… Então talvez eu sofresse um castigo ainda pior da feiticeira.
Eu não queria matá-lo, era claro… Isso… Isso a envergonharia. Faria-me como ele… E ser como ele seria uma ofensa à memória dela.
Rosnei. Por mais que pensasse em meus limites, ainda havia aquela coisa dentro de mim, aquela parte bestial que crescia cada vez mais e começava a tomar conta dos meus sentidos. A besta pedia que eu voltasse e partisse o aldeão em pedaços, mas eu a combati, apesar da raiva.
Ouvi os tão familiares passos atrás de mim, assim que estava diante de meus aposentos.
— Meu senhor, o que houve? — Horloge perguntou.
— Ouvimos gritos — Lumière comentou preocupado.
— Aquele fedelho! — rugi. — Ousou recusar meu convite e me enfrentou! Eu deveria jogá-lo de volta às masmorras!
— Não é assim que se deve tratar um hóspede…
— Ele não é um hóspede! É um prisioneiro! — soquei a parede, que afundou e lascou com minha força. Os dois se encolheram. Estava com tanta raiva que não senti dor.
— Assim ele terá medo de ti, meu senhor…
— POIS QUE TENHA! — urrei e entrei no quarto, batendo a porta com força atrás de mim. Os dois não me incomodaram.
Fiquei andando de um lado para outro por longos minutos enquanto tentava me acalmar. A raiva ainda fervia dentro de mim quando olhei para a redoma que protegia o objeto de minha maldição. Inferno! Por que aquilo tudo estava acontecendo?! Peguei a cadeira e a arremessei contra a parede, onde se quebrou em pedaços.
Ofegava e senti minha visão nublar outra vez com aquela névoa vermelha de ira, estava perdendo o meu autocontrole. Respirei fundo diversas vezes e fui até a janela, abrindo-a. O vento gélido e a neve ajudaram a me pôr de volta ao eixo.
Comecei a pensar novamente nas palavras ditas. Companhia… Se eu quisesse companhia para não me tornar uma fera, então eu teria que tratar melhor aquele fedelho… Mas a culpa também era dele por ter recusado o meu convite. Por que não aceitava de uma vez? Uma hora ou outra ele sairia do quarto em busca de comida.
Talvez eu devesse tentar de novo… Talvez conseguisse convencê-lo a não ser tão insensato com seu anfitrião. Sorri. Isso, eu o convenceria… Nem que fosse arrastado. Tornei a sair do quarto.
Fui até a outra ala do castelo e parei diante da porta, pronto para bater, quando um som me chamou a atenção. Parei com a mão erguida e aproximei meu ouvido para ouvir melhor.
Eram sons de soluços. O fedelho estava chorando.
Baixei o braço. Aquele som me fez sentir estranho, mal… Qual era o problema? Até parecia que eu estava… arrependido? Tolice, alguém como eu não sentia aquele tipo de coisa. Arrependimento era para ao outros abaixo de mim.
Respirei fundo e me afastei. Não importava qual sentimento fosse, esfriara minha convicção. Por isso, dei as costas e saí rápido dali.