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A Maldição de Villeneuve

Temporada 01

Capítulo VI – Cuide dele 

Damien

Dor. Dor era tudo o que eu sentia. A fera havia me jogado com força dentro daquela cela fria e úmida. Meu corpo todo estava dolorido, mas o que mais doía era o meu pescoço. Eu toquei o local e um gemido choroso escapou dos meus lábios. Os talhos feitos pelas garras do monstro estavam abertos. O sangue quente contrastava com o chão e as paredes congeladas, encharcando cada vez mais minhas roupas rasgadas.

Aquilo seria a minha morte. Se a perda de sangue ou o frio não me matassem, os ferimentos certamente infeccionariam e eu morreria lento e dolorosamente. E eu não saberia se meu pai e minhas irmãs estavam bem. Fui um tolo em acreditar que os salvaria vindo no lugar delas.

Tossi e vi estrelas com a dor que aquilo me causou. Ouvi sons do lado de fora e me encolhi imaginando ser a besta que havia me trancado. No entanto, eram barulhos mais suaves e metálicos. Pouco depois surgiram o relógio e o candelabro em meu campo de visão.

— Você está bem?! — O candelabro perguntou preocupado, segurando nas grades.

Eu tentei responder, mas tudo o que conseguir emitir foi um gemido.

— É claro que ele não está bem, seu idiota! — O relógio parou ao lado dele, olhando-me também preocupado.

— Ele está sangrando muito. Se não o tirarmos logo daqui pode ser tarde demais. — O candelabro falou e se afastou para o lado, além do que eu podia ver.

— O que está pensando em fazer?! — O relógio se afastou das grades.

— Soltá-lo.

— Está louco?! O mestre irá nos fatiar se fizermos isso!

— Prefere deixar o garoto morrer?

O relógio olhou para mim e se calou. Pouco depois eu ouvi o som do mecanismo e a porta se abriu. O candelabro se aproximou de mim e eu encolhi as pernas por reflexo. Ele notou o meu medo e se aproximou mais devagar, com suas mãos-velas erguidas em sinal de paz.

— Não se preocupe. Eu só quero ajudar. Ajude-nos a te tirar daqui.

Eu o olhei por um tempo e concordei de leve com a cabeça. Tentei me levantar, mas ainda me sentia dolorido, afinal aquela maldita besta me arrastara até ali, além de ter me jogado contra a parede duas vezes. Eles se entreolharam.

— Vou chamar alguém que possa te ajudar a andar, fique aqui. — O candelabro disse e já saiu apressado.

O relógio se aproximou e parou ao meu lado.

— Tire a sua capa e pressione contra os ferimentos, vai ajudar a parar o sangramento. — Instruiu.

Eu o obedeci. Retirei a peça esfarrapada e enrolei contra o pescoço, esperando que aquilo ajudasse. Eu tremia de frio e sentia a energia se esvaindo de mim. O tempo parecia se arrastar e o candelabro não voltava nunca. O relógio me fitava, ansioso, e conversava comigo com medo que eu apagasse.

Não consegui estipular quanto tempo levou, mas o objeto de ouro voltou trazendo uma figura familiar. Era o cabide da entrada.

— Posso? — Ele perguntou.

Em resposta, ergui de leve meu corpo para que ele me ajudasse a levantar. O objeto de madeira passou dois de seus apoios sob minhas axilas e me puxou para cima. Tudo rodou e precisei me apoiar nele para não cair de novo.

— Vamos, com calma, com calma. — Algum deles disse.

Eu sentia minha consciência oscilar enquanto subia degrau por degrau, escorando-me no cabide. O candelabro havia sumido de novo, saltitando apressado à frente. A visão começou a sair de foco e meus pés bambearam. Faltando poucos degraus para chegarmos ao térreo, senti um tremor no castelo que me tirou o equilíbrio. Quando eu caí, tudo apagou.

Fera

Eu não queria ver nada, nem ninguém. Momentos atrás mais uma pétala caíra. E, como sempre acontecia, mais uma parte do castelo desmoronou. Logo meu castelo não passaria de ruínas gélidas no meio de uma floresta parada no tempo, naquele eterno inverno.

Lá fora uma tempestade de neve começou, acompanhando meu estado de espírito. Eu queria ir até aquela vila e tomar o que era meu por direito, mas meus servos tinham razão. Tínhamos quase certeza que a maldita bruxa ainda nos observava e acompanhava cada passo meu. Se ela me transformara neste terrível monstro apenas porque lhe recusei abrigo por uma noite, o que faria comigo se eu matasse e sequestrasse pessoas? Minhas mãos estavam atadas. Aquele era o meu fim. A única oportunidade que eu tive de me ver livre da maldição havia escorrido por meus dedos e formado uma poça debochada no chão, refletindo minha face bestial.

Enquanto lamentava meu destino, com a testa colada no vidro da janela, ouvi alguém entrar. Olhei pelo reflexo e vi meu mordomo e conselheiro.

— O que querem? — Grunhi.

— Majestade, o rapaz precisa de cuidados. — O candelabro se aproximou.

— O que ele merece é ficar trancado naquela masmorra.

— Ele está ferido e não está bem. — Horloge falou e parou ao lado de Lumière.

Voltei a olhar para fora, sentindo um calafrio na espinha. Eu sabia que ele estava ferido porque… A lembrança do que o sangue despertara em mim me fez estremecer.

— E o que diabos querem que eu faça?

— Que cuide dele. — Lumière apoiou suas velas no que seria a cintura.

Virei para eles e os encarei com uma cara fechada. Ele só podia ter enlouquecido para me exigir tal coisa.

— O quê?

— Foi o senhor quem o feriu. Então é o senhor quem deve cuidar dele.

— Além disso, nossos corpos atuais não ajudam muito. — Horloge completou.

— E que tal se eu terminar de matá-lo? — Sorri agressivo. — Seria um ato de misericórdia com aquele fedelho.

— E o senhor quer que a bruxa piore a maldição?! Quer que ela tire sua única chance de voltarmos ao normal?! — Lumière exclamou.

— Pior do que está não fica. E eu já perdi minha chance. Não há mais tempo.

Voltei a me virar para a janela, emburrado.

— Bem, você não terá sua esposa e nós provavelmente vamos ficar amaldiçoados para sempre, mas… Ao menos pode aproveitar o resto do tempo tendo companhia. — O candelabro tentou.

— Não tenho interesse na companhia daquele plebeu.

Eles ficaram em silêncio por um tempo e eu senti algo tocar minha perna. Quando olhei para baixo, vi que era Horloge me encarando.

— Por favor, majestade… —- Ele falou baixo. — Sua mãe não iria gostar de vê-lo agir assim.

Minha expressão ficou sombria e eu senti um amargo em minha boca. Minha mãe… Vagas memórias nubladas surgiram em minha mente. Podia ouvir sua voz doce e calma como um longínquo sussurro. Ela… Ela se decepcionaria se eu deixasse aquele maldito camponês morrer.

Bufei, rosnei e me afastei da janela.

— Que seja!

Os dois olharam aliviados.

— Ótimo, vamos chamar o médico. — Lumière saltitou à frente.

Parei e os olhei bravo.

— Se temos um médico no castelo, por que eu quem tenho que cuidar do fedelho?

— Porque é sua obrigação. — O candelabro respondeu. — E porque o médico não tem mãos em sua nova forma.

Passei a mão por meu rosto, resmunguei e apenas os segui. Descemos até o primeiro andar e saímos do castelo. Caminhamos por um tempo por entre a tempestade até chegar ao prédio de pedra que servia como residência para os antigos soldados de meu pai. Restava pouco do que antes fora um quartel general glorioso. Todo o esplendor ruíra com o antigo rei…

Entramos na área reservada à enfermaria. Todo o local estava empoeirado e cheio de teias de aranha. Um pedaço do teto havia ruído e abaixo dele acumulavam-se pedras e um monte de neve. Lumière nos guiou até a despensa hospitalar. A porta rangeu quando a abri e suas dobradiças congeladas quebraram, fazendo a porta despencar. Grunhi e segui para dentro do cubículo. O local estava escuro, então peguei o candelabro e o ergui para enxergar as estantes.

— Ali! — Ele indicou uma maleta.

Coloquei o candelabro em uma prateleira e peguei a bolsa de couro preto nas mãos. Estava coberto de poeira. Alguns dos meus empregados, transformados em objetos que não tinham uso naqueles dias congelados, acabaram caindo em um profundo torpor. Eu o sacudi e depois dei tapas nele para tirar a sujeira, a pequena nuvem de poeira me fez tossir.

— Ai, ai! Por que estou sendo agredido?! — O objeto despertou e protestou.

— Preciso dos seus serviços. — Falei e já o puxei comigo. — Majestade! — A maleta exclamou com surpresa. — O senhor está bem?!

— Seus serviços não são pra mim. — Grunhi.

Ele ficou em silêncio digerindo a informação até que gritou:

— Temos uma visita?!?!

Eu o apertei por ter feito escândalo.

— Não fique animado, não é uma mulher. — Resmunguei.

— Ah… — O objeto murmurou decepcionado. — Bem, se vou tratar alguém, vou precisar de algumas coisas. Como está o paciente?

— Ferido e com febre. — Horloge respondeu.

— Umn… — A maleta se abriu. — O senhor pode, pode favor, pegar o que eu indicar e colocar dentro de mim?

Eu rolei os olhos, grunhi, mas fiz o que ele pediu, depois tornei a segurá-lo.

— Estou pronto, levem-me ao paciente.

Resmunguei e esperei Lumière saltar da prateleira e me guiar junto à Horloge para onde eles haviam levado o garoto. Voltamos ao castelo e seguimos para um dos primeiros quartos do segundo andar. Estava empoeirado, não era usado há muito tempo. O médico não ficou feliz com aquilo.

— Não, não, não! Uma pessoa doente não pode ficar num lugar sujo como esse! Ele precisa de um lugar limpo e aquecido para se curar!

Eu olhei Lumière e ele bateu continência.

— Vou pedir para providenciarem isso. — Falou e saiu saltitando do quarto.

— Por favor, retire o pano do pescoço dele. — A maleta pediu.

Minha vontade era de arrancar o pano com violência, mas consegui me controlar e tirar com cuidado. Um mal estar se apossou de mim ao ver o estado que o fedelho estava. As feridas pararam de sangrar, mas estavam infeccionando. O rosto dele estava vermelho e úmido, febril.

Parte de mim sentiu culpa por tê-lo machucado, a parte que tinha vergonha do que eu havia me tornado. Outra parte, a arrogante, dizia que ele merecera o castigo. Porém, outra ainda mais perigosa, era a mais difícil de controlar. A besta se agitou dentro de mim, reagindo ao cheiro das feridas. Senti minha boca salivar novamente e engoli a baba antes que algum deles percebesse. A fera implorava que eu o provasse, implorava para sentir o gosto da carne humana. Prendi a respiração e fechei as mãos fincando as garras nas palmas para me distrair daquele instinto predatório.

— Isso aqui está bem feio. — A maleta falou e olhou me acusando. Era claro que ele reconhecia diferentes ferimentos e sabia que aqueles foram feitos por mim. Eu o ignorei, não precisava de um sermão. — Toque-o e veja se a febre está muito alta.

Eu obedeci e apoiei a palma na testa do camponês. Estava queimando.

— Sim, está bem alta.

— Vou precisar de duas bacias com água fria, panos, uma chaleira com água quente e uma xícara com colher. — Pediu.

— Eu cuido disso. — Horloge falou e saiu apressado.

Ficamos sozinhos, eu, o médico e o jovem. A maleta me olhava esperando que eu o esclarecesse o que estava acontecendo, mas eu permaneci calado. Ele tampouco teve coragem de me indagar diretamente, então ficamos em silêncio até que o relógio voltou em um carrinho metálico de camareira, trazendo as bacias cheias e os panos.

Conforme o médico me instruiu, eu limpei as feridas, passei uma pasta para ajudar a cicatrizar e depois enfaixei o pescoço do rapaz. Depois molhei um pano na água fria e pousei sobre a testa. Madame Samovar, a chaleira, olhava-me espantada enquanto eu colocava outro remédio dentro da xícara, despejava a água quente e misturava com a colher, algo difícil para quem tinha mãos que mais pareciam patas. O gosto daquilo devia ser horrível, porque só o cheiro já era.

— Agora espere esfriar até estar morno. Depois segure a nuca dele com cuidado e erga sua cabeça para ele não engasgar ao dar o remédio a ele.

— E como vou fazer para ele beber?

— Puxe o queixo dele de leve para que abra a boca e despeje o líquido aos poucos, ele vai acabar engolindo por reflexo.

Respirei fundo e esperei a bebida estar na temperatura certa para poder dar a ele. Foi uma tentativa desastrosa e metade do remédio escorreu para fora da boca, mas consegui fazê-lo engolir ao menos um pouco. Logo depois Lumière retornou.

— O quarto dele está pronto.

Com cuidado, ergui o rapaz em meus braços e o carreguei até o novo aposento, estava limpo e a lareira estava acesa. Enfim o coloquei deitado na cama. Os outros seguiam cada um de meus passos.

— Tire as roupas dele, estão sujas e podem estar contaminadas. Depois o cubra. — A maleta ordenou.

Eu não queria fazer aquilo também. Lumière colocou as velas na cintura e Horloge cruzou os braços. Dei um longo suspiro e obedeci. Rasguei as roupas do garoto com as minhas garras, puxei os trapos para fora da cama e depois o cobri.

— Ele deve estar curado em alguns dias, parece ser um jovem saudável. Mas o senhor deve medir de tempos em tempos a temperatura para verificar a febre e dar os remédios. Estarei aqui enquanto ele precisar de mim.

— Pode ir ao seu quarto repousar, majestade, o chamamos quando o médico pedir. — Lumière garantiu.

Bufei e dei as costas para eles. Tudo o que queria era me afastar daquele garoto fedendo a sangue. Saí pela porta e voltei para meus aposentos sem olhar para trás.

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  • Fabi, que elegância na escrita! A descrição, em especial, da dor, senti em mim a agonia da personagem ao ser arremessado naquele local tão horrível. Impossível! Vai precisar ir para a Netflix!!! Parabéns.

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