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A Maldição de Villeneuve

Temporada 01

Capítulo XI – Lobos

 

Damien

Estava tão envolto com a rosa mágica que sequer notei a besta se aproximar de mim. Ele saltou para cima da redoma e a envolveu em seus braços peludos, depois olhou furioso em minha direção. Os olhos de uma fera prestes a matar. Ele rugiu e urrou expulsando-me dali, e eu não pensei uma segunda vez antes de acatar aquela ordem.

Corri. Apenas corri para longe e vi-me de volta ao saguão de entrada. Avancei até a porta por instinto, mas a mesma continuava trancada. Eu estava em pânico, aquele monstro certamente me mataria por ter invadido seu território. O que faria? Como poderia fugir?

A lateral da escadaria, eu não havia explorado aquele lado ainda. Rezando para encontrar uma rota, me apressei antes que os servos da besta viessem me impedir. Quase choraminguei de alívio ao me deparar com uma porta. Abri e ofeguei ao ver que estava destrancada, então escapuli para fora. Estava em uma parte onde deveria ser um pedaço de jardim, mas que agora era só um pedaço de terra gélido e morto.

Olhei ao redor e vi o que parecia ser o estábulo. Passei correndo por um caminho escavado na neve, que os servos usavam para irem cuidar de Philippe. O cavalo relinchou feliz a me ver, mas não tínhamos tempo para uma reunião amistosa. Abri a baia e entrei já colocando o cabresto no animal antes de tacar uma manta em sua garupa para depois montar. Com um leve golpe com os calcanhares e uns estalos com a língua, aticei Philippe a sair rápido do estábulo.

Ele parecia feliz em sair dali, mas não pareceu empolgado com o perigo de encontrar os lobos quando o conduzi na direção dos portões. O cavalo tentou empacar, mas com um golpe um pouco mais forte e uma puxada nas rédeas o convenci a continuar a trotar, sob relinchos de protesto. Quando estávamos quase na saída, eu ouvi outro rugido vindo do castelo. Meu estômago se revirou com o medo. A fera me procurava.

No desespero, puxei o portão sem ao menos desmontar. O metal congelado ofereceu resistência, mas na quarta tentativa consegui o abrir. Com um comando, conduzi o cavalo para fora.

“Liberdade!”

— Vai, Philippe! Vai!

O animal relinchou e disparou. O vento gélido da corrida feria minhas bochechas, mas eu mal o sentia enquanto o sangue pulsava quente nas veias, cheio de adrenalina. No entanto, meu coração quase parou ao ouvir o primeiro uivo.

Tremendo, olhei ao redor à procura da alcatéia. Eu não os via, mas o calafrio na espinha indicava que eles estavam lá. E que já haviam me visto. Philippe acelerou, também movido pelo temor de virar jantar de lobo.

O cavalo conhecia o caminho. Eu já teria me perdido se tentasse voltar sozinho, mas lá estávamos quase de volta à estrada, eu já podia vê-la e às árvores não congeladas. Prendi a respiração pela expectativa. Quase lá, quase lá!

 Mas três lobos saltaram à nossa frente e bloquearam a passagem. Philippe freou de súbito e tentou recuar, porém surgiram mais lupinos dos lados e atrás de nós.

Estávamos cercados.

Fera

Onde estava aquele fedelho?! Fui até seu quarto, mas não havia sinal dele. Ameacei a camareira, mas ela me jurou que ele não havia reaparecido após ter saído do quarto horas atrás. Rosnei e desci, tentando farejá-lo. O cheiro mais fresco levava até as portas do saguão. Puxei-as, mas continuavam trancadas.

— Meu senhor, o que houve? — Lumière chegou saltitando.

— Onde está o garoto?! — rugi.

— Deve estar em seus aposentos, senhor…

Agarrei o maldito candelabro e o sacudi até que suas velas se apagassem.

— Ele estava nos MEUS aposentos, idiota!!! Eu mandei que deixassem-no trancado!!!

Lumière arregalou os olhos, eu sabia que ele tinha algo a ver com aquilo com o brilho de culpa no olhar.

— Eu não imaginava, meu senhor, me perdoe!

Segurei-o com a outra mão e estava pronto para entortá-lo ao meio quando Horloge parou esbaforido ao nosso lado.

— M-meu senhor! O r-rapaz fugiu!

— O QUÊ?! — Soltei o candelabro de qualquer jeito e me virei para o relógio.

— A po-porta para os jardins! E-está aberta!

A porta que dava para os estábulos. Urrei furioso e os deixei para trás ao correr até a outra construção. Vazia. O fedelho fugira. Soquei arrebentando a porta de uma das baias e saí. Olhei ao redor e encontrei uma trilha de pegadas na neve que iam para a parte frontal do terreno. O portão estava aberto e o rastro seguia para fora. Se ele conseguisse chegar até o vilarejo e contasse tudo… Ele não o faria. Por que eu o mataria antes que saísse da floresta.

Para ser mais veloz, fiquei de quatro e corri como um animal. As pegadas seguiam o caminho correto para voltar, o maldito cavalo tinha uma ótima memória. Mas o que me fez acelerar mais foram os uivos. Não! Eles não pegariam o fedelho! A presa era MINHA!!!

Lá estavam eles, uma alcatéia com dez daqueles pulguentos cercando meu alvo. O cavalo apavorado tentava coicear os que se aproximavam demais, enquanto o moleque tentava inutilmente afastá-los com um pedaço de galho. Foi quando um dos lobos saltou o derrubando e arrancou a arma improvisada de suas mãos. Ah, não, aquele mero animal não iria roubar o meu direito de matá-lo.

Saltei diante deles e rugi enquanto atingia o lobo com uma patada. O animal voou e bateu contra um tronco, porém os demais não recuaram. A alcatéia olhou em minha direção e rosnou. O primeiro saltou em minha direção e eu o ataquei jogando para longe também, porém eu não podia dar conta de todos eles ao mesmo tempo. Enquanto tirava um deles de cima de mim, outros já saltavam e me atacavam ferozmente.

Um cinzento pulou tentando acertar minha garganta, peguei-o no ar em meio ao salto e o joguei contra o chão, esmagando seu crânio com minha pata. Um negro pulou e eu urrei quando o lupino fincou os dentes em minha nuca. Tentei arrancá-lo de mim quando um branco saltou do outro lado, arranhando-me com suas garras enquanto a criatura mordia meu dorso, e podia sentir mordidas simultâneas em meu rabo e pernas. Meu sangue quente se misturava aos deles conforme as presas abriam e dilaceravam minha carne, a visão já se nublava não mais com fúria e sim com dor.

Com outro urro, consegui tirar os dois que estavam sobre mim e golpeei às cegas os que me atacavam por baixo. Eu ofegava e fiz o que podia para afugentá-los, mas as criaturas famintas não deram trégua. Cambaleei e me apoiei em um tronco caído ao lado da trilha. Olhei, mas não consegui reagir a tempo ao lobo cinzento que havia voltado e mirava novamente minha garganta.

Encolhi-me para tentar me proteger, porém o golpe não me atingiu. Apenas ouvi um ganido e, quando olhei, vi o fedelho de pé diante de mim, com o pedaço de galho de volta à suas mãos. Ele me salvara.

O animal se sacudiu, mas não se abalou com a porrada. Seu alvo, no entanto, tornara-se o garoto que o atingira. Quando o lobo saltou sobre o pirralho, avancei sobre ele da mesma forma que avançara sobre mim. Senti o gosto ferroso em minha boca assim que meus dentes se fecharam sobre seu pescoço. O lupino ganiu e se debateu tentando se soltar, mas já era tarde demais para ele.

Finquei as presas com mais força até que ouvi o estalo do pescoço se partindo. Aquele sabor… Meus olhos nublaram-se outra vez, o rubro da fome e da fera sanguinária dentro de mim. Mordi com voracidade, vez após vez, dilacerando e engolindo os pedaços de carne, couro e vísceras. Ergui a cabeça e rosnei. Com seu alfa abatido, a alcatéia recuou e fugiu assustada. Mais, o monstro dentro de mim queria mais. Procurei ao redor e meu corpo se moveu sozinho até um lobo que ficara para trás, que desmaiara quando o joguei contra uma árvore. Debrucei-me sobre ele e o devorei ainda vivo.

Pouco a pouco a fome se aplacou e parei ofegante. Após o sangue esfriar, a dor tomou conta de mim. Cada músculo, cada centímetro de mim reclamava em protesto aos ferimentos. Ouvi passos ao meu lado e rosnei ao olhar na direção. Minha mente ainda estava aérea, dominada pela besta. No entanto, eu o reconheci.

O fedelho. Ele falava algo comigo, mas não consegui entender. Rosnei baixo e tentei avançar em sua direção, porém meu corpo não aguentou. Ao primeiro passo cambaleei e tombei no meio da estrada.

Damien

Eu não sabia se estava pior com a Besta ou com aqueles lobos.

A alcatéia nos cercara e Philippe estava arredio sob mim. Eu não sabia o que fazer para me livrar daqueles animais, meu cavalo não conseguiria fugir deles. No entanto, antes que pudesse pensar em uma solução, duas das feras saltaram em nossa direção. Minha montaria pinoteou e coiceou ferozmente os predadores, mas não consegui me manter sobre seu dorso sem uma cela decente.

Eu caí quando investiram novamente. O baque das costas contra o chão nevado me deixou sem ar por um momento, mas tive que rolar para o lado para não ser pisoteado por Philippe. Arrastei-me apressado para longe dos cascos frenéticos e aquilo chamou a atenção dos lobos. Dois outros olharam para mim e rosnaram lentamente enquanto se aproximavam.

Olhei apavorado e recuei de costas até bater contra um tronco caído coberto de neve. Tateei e encontrei um de seus galhos secos, no desespero puxei e consegui quebrar um pedaço para me defender. Um dos animais pulou sobre mim e o acertei no focinho, depois afastei outro o ameaçando com movimentos bruscos.

De início eles recuaram, mas a superioridade numérica os fez adquirir confiança. Eles eram inteligentes… Sabiam que eu e meu cavalo não éramos páreos para a alcatéia. Avançaram sobre mim novamente e eu me defendi como pude, mas um deles saltou sobre mim e me derrubou. A criatura tentou morder minha garganta e eu me defendi pondo o galho entre seus dentes. O lobo mordeu o pedaço de madeira com força e o arrancou violentamente das minhas mãos. O animal olhou para mim e eu ofeguei quando ele rosnou. Era o meu fim.

Fechei os olhos esperando a morte chegar, enquanto rezava para que doesse o mínimo possível. O hálito fétido da criatura já recaía sobre mim quando algo lançou o lupino longe. Abri os olhos e dei de cara com o monstro do castelo ali. Arregalei os olhos e o encarei conforme ele lutava ferozmente contra a alcatéia. Tornei a pegar o galho seco e me afastei para não ser atingido naquela batalha.

Até mesmo os lobos que tentavam atacar Philippe haviam o largado e se voltado contra a fera. Eles eram muitos. Aquela era a oportunidade perfeita, eu poderia montar no cavalo enquanto estavam distraídos e então fugir, mas minhas pernas trêmulas não me obedeceram. Eu só conseguia ficar ali, parado, enquanto assistia o combate acontecer.

A Besta estava perdendo. Ele recuou e quase caiu sobre o tronco. O sangue, dos lobos e dele, tingia a neve por todo o lugar. Aquele monstro estava muito ferido, não aguentaria por muito mais tempo. Quando um dos lupinos o atacou novamente, eu sabia que tinha que agir. Não mirei, nem sequer pensei no que estava fazendo, apenas levantei o pedaço de pau e desci contra o lobo.

Por sorte, o acertei em cheio. Por azar, sua fúria se focou em mim.

Tentei recuar e levantei o galho outra vez, mas o animal saltou em minha direção. Estava pronto para dar outro golpe quando o lobo foi interceptado pelo ataque da Besta. Arregalei os olhos e observei enquanto o monstro quebrava o pescoço do animal e depois o devorava. Os olhos dele… Aquelas pupilas dilatadas que quase cobriam a íris por completo… Não havia nem um pingo de sanidade naquele olhar.

Afastei-me com medo de ser sua próxima vítima. A Besta rosnou e o resto da alcatéia fugiu tão amedrontada quanto eu estava. Mas ele não estava satisfeito. Avançou contra um dos animais que havia desmaiado na batalha e debruçou-se sobre ele. Meu estômago embrulhou enquanto o via comer aquele lobo ainda vivo, que gania e urrava em medo e dor até morrer afogado no próprio sangue.

Então ele parou. A respiração pesada denunciava sua exaustão após a batalha. Ele estava mal, mas eu tinha medo de me aproximar. Philippe também estava imóvel, os olhos saltados e narinas dilatadas, também temeroso em fazer qualquer movimento. Esperei um tempo, mas não poderíamos ficar para sempre ali, naquele frio, no meio da floresta e seus perigos.

Respirei fundo e engoli seco. Caminhei alguns passos em sua direção, cauteloso.

— Ei… Besta… — o chamei.

O monstro rosnou e virou o rosto em minha direção, a juba ensangüentada cobria seus olhos, mas eu sabia que me encarava. Ele rosnou e avançou para mim. Eu recuei assustado, mas a criatura caiu e ficou imóvel. Com o coração quase saindo pela boca, eu aguardei, mas ele não tornou a se mexer.

Devagar, fui até Philippe e o toquei. O cavalo relinchou choramingando e eu o afaguei para que se acalmasse. Olhei para a fera caída e depois para a saída da estrada congelada. Liberdade. Aquela era a minha única chance de liberdade. Montei nele e puxei suas rédeas para que virasse na direção, no entanto, não consegui dar a ordem par que partisse.

Voltei a olhar a Besta. Por mais que eu quisesse voltar para casa, eu não podia deixá-lo ali. Ele não salvara a minha vida exatamente, mas eu não tinha o sangue frio necessário para deixar alguém ferido para trás, mesmo que esse alguém fosse aquele monstro. Minha consciência jamais me perdoaria.

Olhei ao redor, ofegante e nervoso. Esperava que a alcatéia não tomasse coragem e resolvesse voltar antes que saíssemos daqui. Desmontei e me aproximei aos poucos da Besta. Ele continuava imóvel, apenas a respiração mostrava que ainda estava vivo. Engoli seco e toque seu ombro, trêmulo.

— Ei… — chamei ainda temeroso. —Levanta… Anda… Temos que sair daqui…

A Besta soltou um suspiro sofrido e virou a face em minha direção. Notei que suas pupilas estavam dilatadas, mas não como antes enquanto estava naquele frenesi assassino. Já cuidara de alguns animais onde morara para entender que aquela dilação significava que ele estava com muita dor. Apesar de tudo, não pude deixar de sentir compaixão.

Chamei Philippe com um assobio. O animal hesitou de início, mas depois se aproximou ainda arredio. O fiz ficar parado ao nosso lado e voltei a atenção para a fera, um uivo ao longe me fez estremecer.

— Por favor… — supliquei baixo. — Vai ter que me ajudar… — falei e o puxei de leve.

A Besta ergueu os olhos para mim e depois pareceu enxergar o cavalo atrás de mim. Acredito que tenha entendido o que eu pretendia fazer, pois tentou se levantar e se apoiar em Philippe. Eu o ajudei a se manter e depois a montar. O animal tentou protestar e negar aquele peso sobre si, mas consegui acalmá-lo afagando seu focinho.

— Shhh… Vamos sair daqui antes que os lobos voltem…

Verifiquei a Besta outra vez. Estava de olhos fechados, desmaiado. O sangue ainda escorria e sujava o cavalo, haviam muitos ferimentos. Eu precisava levá-lo logo de volta antes que sangrasse demais.

Olhei para a estrada e vi o fim daquela terra de gelo. Meus olhos se encheram de lágrimas, mas eu havia tomado minha decisão.

Respirei fundo e conduzi o cavalo de volta ao castelo.

Último Capítulo

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