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A Maldição de Villeneuve

Temporada 01

Capítulo V – Impostor

Fera

Estava preparando-me em meu quarto, tentando ajeitar aquela aparência horrenda. Se eu não tivesse quebrado todos os espelhos há tempos atrás, certamente teria esmurrado o que sobrara. Sobre a penteadeira havia apenas um grande caco que usava para refletir-me em raros momentos. Eu não desejava ver a minha imagem. Não desejava ver aquele monstro horrível que me tornara.

No entanto, eu precisava ficar o máximo apresentável possível. Que mulher poderia se apaixonar por uma besta? Peguei o caco nas mãos, com cuidado para não me cortar. Minha aparência… Toquei meu rosto peludo e olhei para o quadro rasgado na parede. Em frustração eu destruíra aquela maldita pintura. Era doloroso olhar o belo rosto que eu tinha e saber que eu nunca mais voltaria à minha beleza anterior… Tinha que ter esperanças…

Voltei a colocar o caco sobre a penteadeira e peguei a escova, que já não usava há um bom tempo. Passei por meu cabelo e tentei desembaraçar, mas estava embolado demais. Tentei e novo e arrebentei alguns fios. Já estava irritado. Na terceira vez, a escova agarrou e eu a quebrei com o excesso de força. Rosnei, arranquei aquilo dos meus pelos e taquei os pedaços longe, bufando. Ameacei fazer o mesmo com o caco de vidro, mas assim eu ficaria sem meu espelho improvisado.

Peguei uma fita, juntei os cabelos com as mãos como consegui e prendi no momento que Lumière e Horloge entraram em meus aposentos. Terminei de ajeitar as vestes que tinha mais intactas, apesar do cheiro de mofo.

— Como ela é? — Perguntei, os olhando.

Eles se entreolharam e engoliram seco. Minha expressão se fechou.

— Algum problema?

— B-bem… — Horloge começou, mas Lumière tapou sua boca.

— Nossa convidada só chegou cansada, meu senhor, levamo-la para o quarto. É melhor deixá-la repousar.

— Ainda assim quero vê-la. Irei até lá. — Anunciei e saí de meus aposentos.

— Ma-mas senhor, não é polido incomodar uma dama… — Lumière tentou.

Eu me virei para ele, mostrando as presas com um rosnado baixo.

— EU sou o DONO desse castelo! Tenho direito de fazer o que eu quiser!

Os dois se encolheram tremendo e não replicaram. Bufei pelo nariz e continuei andando até o lado oposto do castelo, que era onde ficava a torre que servia como o aposento da convidada. Cheguei diante da porta e dei batidas pesadas na mesma.

— Posso falar com você? — Perguntei e aguardei, mas não recebi resposta do lado de dentro. Pude ouvir sussurros no quarto, mas não consegui compreender o que falavam. Comecei a perder a paciência. — Abra a porta!

Horloge e Lumière aguardavam ansiosos ao meu lado. Bati novamente com mais força, a madeira tremeu sob minhas batidas.

— Abra a porta! — Ordenei rosnando baixo.

— Vai assustá-la, meu senhor, por favor… — O candelabro tentou, mas eu o ignorei.

Estava prestes a bater de novo, quando a porta se abriu. Entrei e vi a pessoa encolhida ao lado da camareira guarda-roupas, escondendo o rosto no capuz de sua capa. A vi olhar para mim e estremecer, podia sentir o medo em seu cheiro. O aroma dela era estranho, quase torci o nariz. Lembrava-me dos perfumes das damas da alta sociedade, mas ela fedia a suor como um criado. Aquele devia ser o cheiro de uma camponesa.

Aproximei-me e parei a certa distância para não assustá-la mais.

— Eu… Bem vinda ao castelo, eu sou o seu anfitrião. — Fiz uma leve reverência. Ela quase escorregou para trás da camareira guarda-roupa. — Qual é o seu nome? — Perguntei

Tentei sorrir. Do jeito que ela ofegou, acho que só a assustei mais, então desfiz o sorriso. Esperei um tempo por sua resposta e a ouvi murmurar algo, baixo demais para que eu pudesse compreender. Ergui as orelhas e perguntei de novo:

— Qual é o seu nome?

Ela engoliu seco e falou, daquela vez audível:

— Damien, meu senhor… — Respondeu a voz masculina.

Fiquei estarrecido. Espere aí. Não era uma mulher?! Onde estava a mulher?! Avancei sobre o intruso, agarrei sua capa e rasguei o capuz para ver seu rosto. Um rapaz.

— ONDE ESTÁ A GAROTA?! — Rugi.

O garoto, Damien, se encolheu com o rosnado, mas respirou fundo e ergueu a cabeça em um gesto de coragem que me deu vontade de degolá-lo.

— Eu jamais daria minhas irmãs a você, besta!

O joguei com força contra a parede e me virei furioso para a porta. Iria pessoalmente buscar aquelas garotas, bastava seguir o cheiro do velho. Depois me livraria desse impostor quando voltasse. Dei um passo para sair, mas Lumière e Horloge se puseram à minha frente.

— SAIAM! — Urrei.

— Senhor, não é assim que funciona! — Lumière estremeceu.

— Não estou nem aí para isso, SAIA!

Senti algo puxar minhas vestes e vi o garoto agarrar minha roupa.

— Não pode fazer isso! Nós cumprimos o trato! Um prisioneiro por outro! — Ele cobrou.

Eu ia matá-lo. Ia matar a ele, depois encontraria e mataria seu pai por tentarem me enganar. O agarrei pelo pescoço com a mão e finquei as unhas em sua carne, mas Lumière e Horloge saltaram e se agarraram em meu braço para defendê-lo.

— Por favor, não! — O candelabro suplicou.

— Este não é o senhor! Nosso mestre não é um assassino! — O relógio exclamou.

Assassino.

Aquela palavra me fez parar e olhar o que eu estava fazendo. O jovem já estava quase sem ar e lacrimejando pela dor. Eu quase o matara. Quase o matara. Larguei-o de qualquer jeito. Eu sentia ódio e frustração de ver aquele quarto todo arrumado para minha suposta noiva que, ao invés disso, era um moleque adolescente. Estava farto de ser bonzinho, eu não daria mordomias a um prisioneiro. Lugar de um prisioneiro era na masmorra.

O jovem me encarava assustado, com a mão sobre o pescoço, tossindo. Avancei sobre ele outra vez, o agarrei pelo colarinho e fui o arrastando pelo longo caminho até o calabouço. Ele se debateu e tentou se soltar, mas era inútil. Aquele tolo fracote jamais seria capaz de escapar de mim.

— Me largue! — Ele falou engasgado enquanto tentava se agarrar em algo no meio do trajeto. O puxei com mais força.

— Calado! Agradeça que não te matarei, impostor. Mas vai pagar por tentar me fazer de tolo!

Parei ao lado do apoio de tocha vazio da parede e puxei a alavanca de ferro maciço. O mecanismo semi-congelado rangeu e abriu a porta da cela. Eu lancei o garoto lá dentro e fechei em seguida. Encontrei Horloge e Lumière no caminho de volta pulando os degraus da escada. O candelabro continuou o caminho atrás do moleque preso e o relógio tentou falar algo comigo, mas eu o ignorei e continuei caminhando.

Já estava à caminho do quarto arrumado quando um cheiro me chamou a atenção, um cheiro que fez um rosnado baixo escapar de meus lábios e a boca salivar. Ergui minha mão, lentamente. Estava molhada, tingida de vermelho. Sangue.

Prendi a respiração. Senti a besta dentro de mim se agitar faminta. Trouxe a mão para cima, perto de minha boca, mas consegui me controlar antes de lamber o sangue. Eu não podia fazer aquilo. Tinha medo. Se eu provasse o sabor, temia gostar… Querer mais… Desejar… A carne…

A baba escorreu por meu queixo e pingou no chão frio de pedra. Precisava limpar aquilo, rápido! Desesperado, corri até a janela mais próxima e a abri violento com a mão limpa. Enfiei a mão suja na neve do parapeito e esfreguei até que os pelos estivessem limpos, depois empurrei o gelo manchado para longe. Eu não era uma besta comedora de gente! Não era!

Encostei-me na parede e rosnei. Era tudo culpa daquele invasor e do seu filho! Eles me enganaram! O sangue tornou a ferver em minhas veias. Enganado outra vez. Eu rugi e tornei a caminhar a passos rápidos e pesados, as garras dos meus pés, e depois de minhas mãos, arranharam o piso de mármore.

Saltei os últimos degraus e com um murro quebrei a porta. Ouvi um grito lá de dentro, mas uma névoa rubra já cobria meus olhos e me tomava a sanidade. Mais alguns golpes foram necessários para arrombar a porta por completo, seus destroços se espalharam pelo lugar.

A empregada em forma de guarda-roupa disse algo, mas eu não ouvi, eu só queria acabar com tudo aquilo, toda a falsa esperança que eu tivera. Entrei e destruí o quarto ouvindo seus gritos para parar e sequer vi quando ela fugiu porta afora. Cortinas foram rasgadas em trapos, mobílias foram esmagadas sobre minhas mãos, as marcas de minhas garras espalharam-se por todo o lugar. Só parei quando tudo estava destruído.

Ofegante, saí correndo dali para meu refúgio. Minha mente mal processou os corredores passando velozes, os servos que fugiam diante de meu estado descontrolado. Bati a porta dos meus aposentos com força e parei ofegante no meio do quarto. Esfreguei o rosto com as mãos e mostrei os dentes quando elas subiram e tocaram meus chifres. Fera. Fera! FERA!

Rugi e rasguei até farrapos aquelas roupas ridículas. Fui até o caco de vidro, peguei-o sem me importar de ferir a mão e taquei contra a parede, quebrando-o ainda mais. Ofegante, caí de joelhos e solucei em desespero. Tolo! Quem eu estava querendo enganar? Eu nunca iria ser livre, nunca!

Respirei fundo e ergui a mão ferida. Lambi o corte algumas vezes, antes de erguer os olhos para o objeto no fim do quarto. Ali, perto da vasta janela com pesadas cortinas fechadas, estava uma redoma de cristal sobre um pedestal de ouro. Dentro dela, a linda rosa estava parada, erguida. Ela emitia um leve brilho dourado que iluminava brevemente ao seu redor.

Uma pétala se desprendeu, caiu e apodreceu. Um tremor abalou o castelo.

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