Você está lendo:

Episódio 12 (último)

Primeiro Capítulo

Capítulo Anterior

 

A Maldição de Villeneuve

Temporada 01

Final

Capítulo XII – Ainda está aqui 

Damien

Quando chegamos, os empregados ficaram em polvorosa. Porém, o problema mais difícil de resolver era levar aquela criatura imensa até seu quarto andares acima. Com a ajuda de dois empregados em forma de cabide conseguimos chegá-lo até lá, eu já estava ofegante de arrastar tamanho peso por tanto tempo. O largamos de bruços na cama e os servos providenciaram água morna e panos. Mesmo que não houvessem me pedido, tomei a iniciativa de limpar todo aquele sangue e de cuidar dos ferimentos.

Os objetos ficaram em silêncio, nos observando. Fitavam-me surpresos por estar ainda ali, e ajudando. Pouco depois o médico em forma de valise foi levado até os aposentos e me instruiu sobre o que eu deveria fazer. Por sorte, ainda havia um pouco dos remédios que a besta fizera enquanto cuidava de mim. Após tê-lo limpado, aplicado os ungüentos e enfaixado, o cobri e deixei a fera descansar.

Olhei nauseado para mim mesmo, eu também estava coberto de sangue após ter carregado a criatura até ali. Os servos repararam e gentilmente me prepararam um banho em meu quarto. Tirei todo aquele sangue e lama de mim e fiquei ainda um tempo na banheira para digerir tudo o que havia ocorrido. O que eu havia feito? Como eu podia ter abandonado minha chance de fugir? Aliás, porque é que eu não o fazia agora que a besta já estava em seu castelo? Seria por medo de que se eu fugisse ele nos perseguisse? Eu podia retornar ao meu lar, avisar minha família e fugirmos para longe e ele nunca mais nos veria… Mas e os camponeses? Certamente muitos deles morreriam até que aquela fera fosse morta… Morta… Seria muita hipocrisia minha salvá-lo para depois deixá-lo para morrer nas mãos de caçadores. Mas aí seria culpa das próprias ações dele, não seria? Aquilo não era problema meu, certo?

Gemi e pousei os pulsos sobre os olhos fechados. Minha cabeça doía enquanto aquelas considerações fervilhavam em minha mente.

— Está tudo bem, querido? — Ouvi a voz de madame Garderobe do outro lado do biombo.

— Sim… — murmurei.

— Pois não parece… — ela disse gentilmente e ficou em silêncio por um momento. — Por que voltou, meu jovem?

Fitei o teto por alguns instantes.

— Eu não sei… — respondi sincero. — Não sei…

— Seja qual for o motivo… obrigada pelo que fez pelo mestre.

Apenas suspirei em resposta. Eu não entendia porque aqueles objetos agiam daquela forma. Que servidão doentia. Eles não estariam melhor sem um mestre violento como aquele? Ou será que dependiam da vida dele para também estarem vivos? Eu não fazia a menor ideia, já que nenhum deles respondia as minhas perguntas.

Talvez eu também estivesse afetado por aquele ar servil. Afinal, eu voltara, não voltara? Bufei. Devia me vestir e ir embora enquanto a criatura não acordava. Mas não movia um músculo sequer… Eu queria… e ao mesmo tempo não queria ir embora. Peso na consciência? Medo? Culpa por algo que poderia acontecer? Qual seria o motivo?

Compaixão pelo monstro? Não, compaixão não. Aquele maldito ameaçava minha família, quase me matara, me fazia prisioneiro dele. Parte de mim queria que aquele bicho peludo morresse, mas outra dizia que era errado desejar o mal para as pessoas… ou coisas. Que eu deveria perdoá-lo. O Senhor que me perdoasse, mas eu não tinha tanta bondade no coração quanto Ele.

Gratidão? Uma pequena parte, bem pequena, lá no fundo, talvez. Orgulho, ou honra… A questão era que a besta cumprira sua parte do acordo. Eu não concordava com suas medidas extremas de condenar um velho homem à prisão por causa de um mal entendido, mas… Mesmo furioso o monstro estava mantendo sua parte no acordo. Ele poderia ir atrás das minhas irmãs e fazer tudo o que queria à força, mas não fizera. E… eu não podia negar que minha família precisava do dinheiro que ele mandara. Aqueles baús cheios de ouro os tirariam de uma pobreza que meu velho pai não conseguiria resolver sem ajuda.

Além disso… apesar de ter me atacado a algumas horas antes, ele parecia disposto a mudar sua postura. O monstro me convidara para jantar com ele, não convidara? Bem, na verdade fora uma ordem. Que eu desobedeci. E que ele me castigou por aquilo. Mas tentar ser amistoso e não tentar me matar já era um bom sinal, não era? Talvez eu estivesse louco, ou fosse muito ingênuo e otimista.

… Ou será que o motivo era curiosidade? Eu ainda não entendia como uma floresta e um castelo congelados nunca foram encontrados. Com certeza era magia, a mesma que fazia aqueles objetos estarem vivos. E eu tampouco entendia aquilo tudo. Achava que magia não existia, que paganismo e bruxaria eram coisas de demônios, ou assim diziam os padres nas missas de domingo. Eu nunca prestara muita atenção nas pregações daqueles velhos. E agora estava ali, preso, naquele ambiente que chamariam de profano. Será que eu iria pro inferno? Seria aquela besta um demônio? Bem, tinha chifres…

E, acima de tudo, o que era aquela rosa que ele tanto defendia? A energia em volta da flor era hipnotizante… Atraíra-me como uma abelha para o mel. Seria algo amaldiçoado? Talvez, se era protegido por um monstro…

Sem chegar a uma conclusão concreta em minha reflexão, apenas tinha certeza de uma coisa: eu precisava de mais respostas.

Vesti-me e decidi que estava na hora de agir. Tentei me manter o mais calmo possível enquanto refazia o caminho para os aposentos da besta, mas em minha mente eu formulava as perguntas que deveria fazer. Quando entrei no quarto, ainda havia alguns servos ali, os mais leais eu supunha.

— Senhor Damien! — Lumière me cumprimentou com surpresa.

— Como ele está…? — perguntei me aproximando devagar.

— Ainda dormindo, mas parece melhor.

Parei ao lado da cama e hesitei um breve momento antes esticar a mão e tocar aquele focinho. Gelado e úmido, estava sem febre. Afastei-me de novo e olhei ao redor, encontrei uma cadeira ainda intacta e me sentei nela.

— Obrigada por cuidar do mestre — a chaleira falou.

— Ele cuidou de mim antes. — Dei de ombros.

Meu olhar foi atraído para a rosa sob a redoma. A flor ainda emitia aquele brilho sobrenatural que me encantava, mas eu me controlei e preferi não me aproximar. Não cometeria o mesmo erro pela segunda vez.

— O que há com aquela flor?

— É… uma longa história. — Horloge murmurou.

— Eu tenho tempo… — falei e os encarei, sério. — E acho que mereço explicações por ficar aqui e cuidar do mestre de vocês.

Eles se entreolharam receosos e depois me encararam.

— Me parece justo. — Horloge concordou e cutucou Lumière.

O candelabro pigarreou e começou a contar:

— Podemos dizer que essa rosa é o início de tudo o que aconteceu nesse castelo… Há muito tempo atrás, quando nosso mestre era apenas um jovem como você, ocorria um baile no castelo. Tudo ocorria bem quando, de repente, as portas do salão se abriam com um vento forte. Era uma noite fria de inverno então corremos para fechá-las, mas encontramos algo inesperado: uma velha senhora. Uma mendiga enrolada em trapos que parecia não ter para onde ir. Ela entrou no salão e implorou por abrigo por aquela noite, oferecendo uma rosa como pagamento pela generosidade. Mas nosso mestre… — Se calou, parecendo envergonhado.

— Nosso mestre… nunca foi muito gentil com as pessoas… — A chaleira pareceu abaixar a cabeça.

— O que ele fez? — indaguei, ouvindo atentamente.

— O mestre pegou a rosa da mão dela, jogou no chão e a pisoteou. Depois a olhou e… A escorraçou com palavras duras. Caçoou de sua aparência e negou qualquer ajuda a ela, depois mandou que a jogássemos para fora sem piedade. Quando o mestre virou as costas foi que tudo aconteceu.

— A velha brilhou e mudou, tornou-se uma linda mulher. Era uma bruxa. — A chaleira estremeceu.

— Ela então esticou a mão e a rosa amassada se refez e voou para a mão dela enquanto nos amaldiçoava. O tempo parou num inverno eterno, o mestre virou uma fera e nós nos tornamos meros objetos-vivos. Desde então tudo ficou assim. — Lumière concluiu.

Eu fiquei em silêncio, digerindo o que acabara de ouvir.

— Uma maldição… — murmurei. — Não tem como reverter?

— Na verdade, há… Com uma condição. — Horloge fitou a rosa.

— Qual condição? — Acompanhei seu olhar. Tive a impressão de ter visto o brilho da flor pulsar por um momento.

— Não podemos dizer. — Negou com a cabeça cheia de engrenagens. — Faz parte da condição…

Respirei fundo e voltei a encará-los.

— Isso não é justo… Quer dizer, ele sim mereceu tudo isso por ser um babaca. — Apontei para a criatura que ressonava em meio aos lençóis. — Mas vocês não. Vocês não mereciam ser amaldiçoados com ele! — Bufei. — Os convidados também sofreram isso?

— Não. — A chaleira negou. — Na verdade, não sabemos ao certo o que houve com eles.

— Creio que só foram embora sem se lembrarem do que aconteceu. — Horloge ponderou.

— Ainda assim, o castelo inteiro não merecia sofrer junto dele. Vocês não tem culpa da arrogância do seu mestre! Não consigo entender porque se importam tanto com ele…

Os objetos se entreolharam, havia mais significado naquele gesto do que eu conseguia compreender.

— Cuidamos do mestre a vida inteira, desde antes de nascer…

— Isso não é uma desculpa. Não entendem?! Ele amaldiçoou vocês! Será que nunca tentaram fazer alguma coisa?! Fugir, talvez? Se rebelar contra ele? Eu sei que ele é uma besta grande e raivosa, mas vocês são numerosos, não são?

Eles suspiraram desconfortáveis e pareceram subitamente tristes. A chaleira falou:

— Nós jamais poderíamos fazer nada contra o mestre… justamente porque não fizemos nada.

— Não entendo… — Olhei confuso.

— Quando o jovem mestre era apenas uma criança pequena, sua mãe faleceu. Ele era um garoto tão doce e inocente… Nós vimos o pai dele corrompê-lo e transformá-lo numa pessoa tão terrível quanto ele fora e… Não fizemos nada sobre isso… Não fizemos nada para tentar salvar o jovem mestre, apenas abaixamos nossas cabeças… Somos tão culpados quanto ele. E é por isso que aceitamos o nosso destino.

Confesso que não esperava ouvir aquilo. Fiquei sem saber o que dizer. Agora entendia um pouco mais daquele lugar, daqueles seres… Ainda achava injusto, mas não me senti no direito de fazer mais questionamentos.

— Obrigado por me contarem tudo isso. — Me levantei e fiz uma leve reverência. — É melhor eu ir e deixá-lo descansar. Eu… vou estar no meu quarto se precisarem de mim.

Eles acenaram concordando e eu me afastei e saí dos aposentos caminhando em silêncio. Precisava de um tempo para pensar sobre o que havia descoberto e o que faria quando a besta finalmente acordasse.

Fera

Meu corpo doía… Qualquer mínimo movimento fazia com que cerrasse os dentes e gemesse. Havia algo em meu pelo também que me apertava. Abri os olhos devagar e vi que estava em meu quarto, na minha cama. Olhei para o braço e vi que estava enfaixado, foi então que lembrei o que havia acontecido.

Grunhi. Maldito garoto que só me trazia problemas. Já devia estar longe naquele momento enquanto eu estava ali, todo machucado por culpa dele. Tentei me levantar e notei algo do outro lado da cama. Me virei na direção e me surpreendi ao vê-lo ali, sentado em uma cadeira ao meu lado. Ali. Não bem longe como eu imaginara.

O fedelho tinha um pequeno livro com capa azul nas mãos e encarava as páginas compenetrado na leitura. Eu não imaginava que camponeses soubessem ler.

— Ainda está aqui — murmurei incrédulo.

Ele ergueu os olhos do livro por um breve momento e sua expressão se fechou.

— Sim.

— Por que não foi logo embora? Podia ter fugido, mas você voltou — questionei. Eu não entendia. Ele tivera todas as oportunidades para ir, mas ficara.

— Foi uma questão de honra — ele respondeu ao me encarar.

—… O quê? — Olhei-o, incrédulo. Aquele moleque só podia ser estúpido.

— Mesmo que eu não queira estar aqui, nós ainda temos um acordo… Por mais que eu ache que a prisão e o que fez com o meu pai tenha sido injusto, o senhor ainda assim enviou para eles todo aquele dinheiro… Um dinheiro que os tirará da pobreza… Me dispus a trocar minha liberdade pelo bem deles. Não sou ingrato.

— Você é um tolo — resmunguei. — Se tivesse me deixado na floresta, eu morreria e você não teria mais dívida alguma. Estaria livre assim como sua família.

O fedelho abaixou a cabeça e ficou quieto por um tempo.

— Eu não podia dar as costas e ir embora sabendo que você morreria.

 — Por que não?!

Ele virou o rosto e se levantou.

— Porque eu não sou esse tipo de pessoa — murmurou antes de se afastar. — É melhor comer alguma coisa agora… Vou avisar que você acordou. Volto mais tarde para trocar as ataduras.

Eu não respondi, apenas o acompanhei com o olhar, ainda atônito, até que ele já havia sumido pela porta. Algo passou pela minha mente e virei a cabeça na direção da janela. A rosa ainda estava ali, intacta. Ele não mexera nela outra vez.

Voltei a deitar, bem devagar por causa da dor. Depois tornei a encarar a porta, ainda achando que estava delirando.

Aquele fedelho era um estúpido, com toda certeza.

Olá, caro leitor!

Agradeço com carinho por acompanhar a série até aqui. Infelizmente, este é o último capítulo da primeira temporada. Mas não se preocupe! A segunda temporada já está em produção e, assim que estiver pronta, nos veremos de novo aqui, na CyberTV! Espero que tenham gostado!

Tenha um bom dia/tarde/noite e até a próxima!

— Fabi.

A Widcyber está devidamente autorizada pelo autor(a) para publicar este conteúdo. Não copie ou distribua conteúdos originais sem obter os direitos, plágio é crime.

Pesquisa de satisfação: Nos ajude a entender como estamos nos saindo por aqui.

Leia mais Histórias

>
Rolar para o topo