A Maldição de Villeneuve
Temporada 01
Capítulo X – A Rosa
Damien
Meu estômago roncava. Eu não comia nada desde o dia anterior, quando houvera toda aquela confusão. Nenhum dos empregados viera me trazer algo para comer, então eu supunha que ele os proibira de fazer isso. Eu não fazia ideia do que fazer. Talvez definhasse de fome até a morte.
Estava encolhido nas cobertas, suspirando e coçando as bandagens recém-trocadas quando ouvi batidas na porta.
— Senhor Damien — era a voz de Lumière. — Abra a porta, por favor.
— Ele está com você? — perguntei me encolhendo mais.
— Não, senhor.
Respirei fundo, afastei as cobertas e caminhei cauteloso até a porta. Hesitei por mais um momento antes de destrancá-la e abri-la.
— Olá, senhor Lumière.
— Não é necessária tanta formalidade. — Ele abanou a vela que era sua mão. — Vim convidá-lo para jantar.
— Jantar? — perguntei receoso. — Mas a besta…
— Ah, não ligue para o que o mestre diz, às vezes ele está fora de si. — O objeto sorriu. — Além disso, não podemos te deixar morrer de fome, não é?
— Eu espero que não…
— Então vamos?
Olhei temeroso para fora.
— E se ele souber…?
— Não vai saber se ninguém contar.
Semicerrei os olhos e fiquei pensativo. Eu estava morrendo de medo de encontrar com o monstro do castelo, mas também estava morrendo de fome. E se eu tomasse cuidado… Talvez pudesse descobrir um jeito de fugir dali.
— Tudo bem.
— Ótimo. — Ele esfregou as “mãos”. — Esperarei aqui fora enquanto se troca.
— Me trocar?
— Sim, o senhor não pretende ir para o salão de jantar vestindo um camisolão, não é? — Riu.
Corei. Havia me esquecido que vestia trajes tão inapropriados. Murmurei que já estaria pronto e fui até madame Garderobe.
— Umn… Será que… a senhora teria roupas adequadas para mim agora?
— Sim. — Ela pareceu sorrir e abriu suas portas. Eu desviei o olhar por reflexo e ela riu. — Vamos, escolha o que mais gostar.
— Amn… Eu… Posso?… Não tem problema se eu…? — Gesticulei como se pegasse algo dentro dela.
— Não tem problema se uma dama permite…
A malícia em sua voz me fez corar fortemente enquanto ela ria da minha cara. Sem encará-la, com vergonha, peguei as primeiras peças que vi. Era um conjunto de camisa branca, com calça e colete azuis com detalhes dourados, além de botas. Fui atrás do biombo para me trocar, eu não sabia muito bem como vestir algo tão pomposo, mas consegui me virar. Ao menos devia ser mais fácil do que se fosse uma dama colocando um vestido sozinha.
Quando estava pronto, agradeci à camareira e me encontrei com o candelabro no corredor. Ele me levou para o primeiro andar e me conduziu até o salão de jantar. Era um ambiente amplo, que devia ser imponente em seus tempos de glória. Hoje era só mais um cômodo escuro, iluminado precariamente por uma lareira acesa e um conjunto de poucas velas em castiçais inanimados. A mesa larga, própria para receber mais de uma dúzia de convidados, estava posta apenas para um.
— Somente eu vou comer? — perguntei, parte por curiosidade e parte por medo.
— Sim, senhor. — Lumière concordou com a cabeça e saltou sobre a mesa. — Nós somos objetos, não precisamos comer. E o mestre saiu para dar uma volta e ainda não retornou — adivinhou meu receio.
Dei um suspiro aliviado e me sentei. O estômago roncou e doeu. Comeria o mais rápido possível e voltaria logo para meu quarto antes que a fera descobrisse que eu não estava em meu confinamento.
O castiçal assobiou e logo um carrinho com travessas deslizou até onde eu estava e as bandejas se puseram sozinhas sobre a mesa, depois se destamparam. Salivei e meu estômago roncou novamente com o aroma da comida. Não fiz cerimônias e logo me servi com um pouco de tudo, depois comi com gosto e um mínimo de etiqueta, aquele lugar decrépito, porém ainda pomposo, me intimidava a ter modos.
Depois de comer aquela comida surpreendentemente apetitosa, ainda tive o privilégio de apreciar uma boa sobremesa, nunca tinha comido um bolo tão delicado e bem confeitado quanto aquele. Os servos olhavam-me atentos, o que me deixou um pouco sem jeito.
— Vocês parecem felizes…
— É que faz muito tempo que não servimos ninguém além do mestre — Lumière respondeu.
— E isso é bom?
— Sim… Este é o trabalho e a vida de um servo… Torna-se sem sentido quando não se há mais a quem servir.
Estranhei aquele tipo de pensamento, tão cativo e subserviente, mas preferi não contestá-los. O som do carrinho retornando tomou minha atenção e olhei para ele.
— Ah, por favor, não aguento mais nada — gemi. Estava empanturrado.
— Bobagem — a chaleira falou e saltitou para a mesa junto de uma xícara lascada. — Sempre há espaço para um chá.
Olhei sem jeito para o candelabro e ele riu suave.
— Não se deve contestar uma senhora, não é?
Suspirei e sorri, mas acabei aceitando o chá. Ou tentando, já que a xícara em minhas mãos estava tão inquieta que quase derramava seu conteúdo.
— Filho, tenha modos! — A chaleira ralhou.
— Desculpe, mamãe! — a xicarazinha ficou quieta, mas seus olhos pintados na louça moveram-se para me olhar. — É que eu tô muito empolgado!
— Desculpe — a mãe falou comigo. — É que ele estava ansioso para conhecê-lo.
— Conhecer-me? — perguntei intrigado e bebi um gole, logo afastando o objeto dos lábios ao senti-lo estremecer.
— Faz cócegas! — a criança riu e não pude deixar de rir junto.
— Sim, é que faz muito tempo desde que não vemos pessoas normais…
Fiquei um pouco sério ao ouvir a tristeza na voz dela. Pensei em perguntar, mas eu já sabia a resposta, eles continuariam a me negar explicações. Então somente terminei o chá e agradeci a todos, mas antes de retornar ao quarto precisava botar meu plano em ação. Prometi que voltaria direto para meus aposentos enquanto eles arrumavam tudo, mas não cumpri a promessa.
Assim que me vi livre deles, corri direto para a porta principal no saguão de entrada. Continuava trancada. Precisava arranjar outra rota de fuga e escapar antes que a fera voltasse. Esgueirei-me para o outro lado, mas ouvi sons de algo se mexendo por ali. Com um xingamento preso entre os dentes, corri de volta para a grande escadaria e subi até o segundo andar. Não ia dar para verificar o térreo naquela hora, então optei por explorar o que estava ao meu alcance.
Fui para a ala oposta a que eu estava. Perto do meu quarto eu poderia explorar depois, tinha que aproveitar a oportunidade que ganhei para ver o que teria daquele lado. Quem sabe não teria uma saída ali, longe de onde me botaram? Não custava verificar. Andei e andei por corredores empoeirados, com cheiro de mofo e bolor, as paredes e teto cobertos por teias de aranhas. Outros estavam tão deteriorados que decidi não arriscar, além das partes que já haviam desabado, por onde a neve entrava das rachaduras feitas no teto e nas paredes. Senti-me preocupado pensando no perigo extra de viver em um castelo que estava caindo aos pedaços.
Afastando os pensamentos, precisava continuar a seguir. Dentre os inúmeros corredores, enfim encontrei um caminho mais limpo e foi por ali que eu segui. Logo a iluminação tornou-se melhor, graças às poucas tochas acesas nas paredes. Aquele corredor parecia mais ornamentado que os demais, porém também era mais sombrio. Haviam quadros nas paredes, cujas pinturas eram paisagens retorcidas, escuras, com monstros espreitando dentro delas. Muitas outras estavam rasgadas e destruídas, as marcas indicavam que fora minha besta captora quem fizera aquilo. Também havia gárgulas medonhas de pedra e armaduras demoníacas retorcidas, todas as estátuas tão vívidas que pareciam prestes a saltar sobre mim a qualquer momento e me assassinar.
Eu não deveria ter ido por aquele caminho. Quase no fim do corredor, que terminava em grandes e ornamentadas portas duplas, um alerta soou na minha mente e as palmas das mãos começaram a soar. Ali havia mais rastros do monstro do que os demais lugares, como eu fora tão burro de não ter pensado aquilo antes? Eu deveria estar indo justamente para o covil da fera. Seu ninho, toca, ou qualquer que fosse o nome certo para seus aposentos. Eu só sabia que devia estar longe dali.
O mais seguro seria fugir antes que eu fosse notado e já estava prestes a fazer aquilo, quando um vento vindo de dentro do aposento me atingiu. Havia aquele cheiro de pelo de animal mal lavado, além de todo o cheiro comum de mofo e gelo que eu já sentia, mas havia um aroma diferente que consegui distinguir. O aroma de uma flor.
Parei hesitante. Uma flor? Ali? Como poderia haver uma se toda aquela droga de lugar estava coberta de frio e neve? Precisava correr, mas também precisava verificar aquilo. Quando a curiosidade superou o medo, abri a porta devagar, rezando para que o monstro não houvesse retornado ainda. O movimento da madeira pesada fez as dobradiças rangerem mais alto do que eu gostaria. Parei por um momento, esperando ouvir algo, mas nada aconteceu. Voltei a empurrar, com o coração quase saindo pela boca e meus olhos a fitaram de imediato: uma linda rosa, que emitia um suave brilho, sob uma redoma de vidro ornamentado que a protegia.
Fui atraído por aquela beleza. Quando dei por mim, já estava diante da flor. Era a coisa mais linda que eu já havia visto, mas também emitia uma melancolia que fazia meu coração se apertar.
Estendi a mão para tocá-la.
Aquele foi um grave erro.
Fera
Eu precisava sair para espairecer, ainda estava irritado com aquele moleque. Ouvi-lo chorar ainda me incomodava e eu sentia vontade de quebrar tudo ao meu redor, mas não queria destruir as poucas coisas que restavam intactas em meu quarto. Saí para dar uma volta pelos jardins congelados, deixando minha mente vazia enquanto andava sem um rumo certo a tomar.
Já era noite e a neve recomeçara a cair. Um vento frio fez eu me encolher sob a capa rasgada e decidi que estava na hora de voltar para meu quarto aquecido. Caminhei de volta ao castelo e entrei por uma passagem lateral. Como estava com fome, passei direto pelo saguão de entrada e fui até a cozinha para ordenar que servissem o jantar em meu quarto. Depois disso, resolvi voltar até meus aposentos e esperar pela comida.
Quando quase chegara ao meu destino, notei que algo estava errado. O cheiro… Era o cheiro do fedelho perto do meu quarto! O medo e a raiva fervilharam em mim e eu corri, notando que a porta estava aberta. Passei por ela quase a escancarando e quebrando, gelei quando vi o moleque com a mão esticada para a redoma. Não! Não! Ninguém podia tocar aquela rosa! Ninguém!
Avancei com um rosnado e me debrucei sobre a redoma. O moleque se afastou assustado e eu o olhei com a fúria queimando em meus olhos.
— Fora! SAIA! SAAAIIAAAAA!!! — rugi.
O fedelho saiu correndo no mesmo instante. Eu fiquei ali ofegando irritado por alguns minutos, depois olhei para a flor. Dei um suspiro aliviado ao verificar que estava intacta. O que aquela criança pensava que estava fazendo?! Invadiu meu quarto e ainda queria tocar na coisa mais preciosa e perigosa que eu tinha?! O que poderia ter acontecido caso ele tocasse a flor? Talvez todos nós estivéssemos condenados se ele o fizesse.
Tornei a rosnar. O fedelho, eu tinha que ensinar uma lição a ele, para que parasse de se meter onde não era chamado e passasse a me obedecer. Ele tinha que entender quem era o DONO daquele lugar. Bufei, analisei a rosa uma última vez e saí em busca do prisioneiro.