Os primeiros raios de luz invadiram meu quarto por entre as frestas da janela.  O que me deixava irritada, sempre preferi a escuridão. A noite contém um silêncio especial, pelo menos para mim.

– Mais um dia de aula. – Resmunguei escondendo a cabeça debaixo das cobertas. O vento uivava fazendo as janelas trepidarem. Para quem gosta do frio nesta época do ano, Serenity parece mais o Polo Norte.

– Vamos Lara, acorde! Já está na hora, você ainda tem que tomar café. Não demore! – Era isso toda manhã. Às vezes não me via com 15 anos e sim com apenas cinco. Eu podia ouvir ao longe uma voz me chamar, mas era incrível como meu corpo teimava em não me obedecer. Respirei fundo enquanto me espreguiçava. Cuidadosamente fui deixando meu corpo escorregar pra fora da cama. Como odiava acordar cedo. Apesar do mal-estar e indisposição que sentia todas as manhãs, havia algo novo. Enquanto jogava água sobre meu rosto forçando-me a acordar, senti uma dor muito forte em meu peito. A sensação de que havia alguém atrás de mim fez com que meus pelos se eriçassem de um jeito que, por um momento, cheguei a me ver como um porco espinho. 

Após terminar o ritual que seguia todas as manhãs, me sentei à mesa para tomar meu café que já estava pronto como sempre. Enquanto minha mãe lavava alguma coisa na pia.

– Bom dia, mãe! Falei enquanto engolia o pedaço de bolo de banana que minha mãe havia feito, era o meu preferido.

– Bom dia, Lara. – Ela respondeu mantendo-se focada no que estava fazendo. Sua voz estava embargada e seca, o que achei bem estranho. Mas o que mais me impressionou foi ela ter me chamado pelo nome. Se não estiver com falha de memória, foi a primeira vez que ela me chamou pelo meu nome sem eu ter feito nada de errado, já que geralmente era “filha”. Havia alguma coisa estranha, não tinha como não perceber. Arrisquei uma nova tentativa.

  – O que você vai fazer hoje, mãe?

  – Nada de especial, vou limpar a casa e lavar roupa, por quê?

  – Nada, perguntei por perguntar.

Já que ela não queria contar o que estava acontecendo, resolvi respeitar e deixá-la em paz. Devia ter dormido mal ou se desentendido com meu pai, o que era bem comum. Levantei da mesa e fui até meu quarto pegar meu material da escola, já estava em cima da hora. Antes de sair passei pela cozinha e lhe dei um beijo, como fazia todas as manhãs. 

– Tchau, mãe. Te amo.

– Tchau, Lara. – Segunda vez que me chama de Lara… Muito estranho.

– Vá com Deus.

Nós morávamos em uma casa grande de alvenaria, toda branca com janelas grandes, emolduradas com uma tinta gasta verde, tínhamos também um enorme gramado à sua volta, e ainda folhagens e flores, das quais minha mãe cuidava com todo carinho. Nos fundos da casa, havia uma mata fechada bem extensa, onde costumava me aventurar, subir nas árvores e brincar com alguns amigos; havia uma trilha que levava direto para o rio próximo dali, tornando passagem para algumas pessoas que moravam perto, e costumavam passar por lá para fugir dos dias infernais que tem feito. Pelo seu estado, acredito que tenha sido uma das primeiras casas a serem construídas. A empresa onde meu pai trabalhava forneceu por tempo de trabalho. Não levando em conta o fato de ser famosa por ser mal-assombrada, gostava muito de morar ali.  Quando nos mudamos para cá, eu devia ser bem pequena já que não tinha nenhuma lembrança.  Não sei porquê, mas sempre quando pergunto a minha mãe ela muda de assunto demonstrando claramente sua insatisfação. Meu pai saia bem cedo e voltava tarde, praticamente só nos víamos nos finais de semana, quando não estava na rua brincando com meus amigos. Ele era um ótimo pai, mas mantinha uma vida cheia de segredos, sem contar que era notável o mau convívio dele com minha mãe. Desde que o filho deles, “Derik”, havia desaparecido na guerra, eles nunca mais conseguiram se entender, nem mesmo com a minha chegada. Angeline mantinha uma dor em seu peito que a consumia a cada dia. Às vezes a pegava olhando para a estrada na esperança de vê-lo chegar. Mesmo que quisesse, essa era uma dor que eu não tinha como arrancar de seu peito. Ela não gostava de tocar no assunto, mas eu sabia que o que mais a deixava entristecida era não ter conseguido enterrar seu filho, já que seu corpo nunca foi encontrado.

Enquanto subia o morro enorme até chegar à estrada, observava a vista do alto. Minha casa se localizava no início do morro, bem na curva onde ficava uma chácara, próxima a um rio, que era o principal da cidade. Sem perder mais tempo segui a caminho da escola.

Após ter passado mais tempo olhando para o relógio do que prestando atenção nas aulas, tive o primeiro momento de alegria. Quando o sinal soou avisando que estávamos liberados para irmos para casa. Passei a manhã toda com a expressão de angústia de minha mãe em meus pensamentos, era como se apenas meu corpo físico estive na sala de aula, enquanto meu espírito vagava, buscando entender o que estava acontecendo. Há dias ela vinha agindo estranho.

Meia hora depois, enfim, me aproximo de casa. Por um instante minha angústia foi substituída por uma coisa devastadora. Fome.

Cheguei em casa, fui direto assaltar a geladeira, enquanto resolvia o que ia comer, uma coisa me chamou a atenção… O silêncio.

– Mãe, cheguei! Falei alto o suficiente para que ela ouvisse. Mas não tive resposta.

Fechei a geladeira deixando o presunto sobre a mesa e fui em direção ao quarto de minha mãe. Aparentemente parecia tudo normal. A casa era bem grande, com quatro quartos, duas salas, cozinha, lavanderia e banheiro. Sem contar o quintal enorme. O que a deixava ainda mais assustadora.

– Mãe?  – A porta de seu quarto estava entreaberta, com uma das mãos fui abrindo-a devagar.

– Mãe você está aí? – Nenhuma resposta, apenas o silêncio. O quarto estava escuro, as cortinas estavam fechadas, o que impedia a luz de entrar.

Uma sensação aterrorizante invadiu meu corpo. Senti um calafrio que me estremeceu dos pés à cabeça. Minha mãe não costumava sair no horário do almoço, já era de costume chegar e vê-la fazendo comida ou limpando a casa. Ao levar a mão no receptor para acender a luz, fui surpreendida por um sussurro que vinha de algum canto do quarto.

– Não acenda a luz…  “Tarde demais”, pensei.  No susto apertei o botão, foi automático. 

– Mãe! O que aconteceu? – Perguntei espantada. 

Ela estava sentada no chão, entre a parede e a escrivaninha com a cabeça entre os joelhos. Escoltada por uma garrafa de vodka abraçada a um porta-retratos dela e de seu filho. Rapidamente fui na sua direção envolvendo-a em meus braços. Retirei lentamente o porta-retratos e o olhei por alguns segundos. Antes de colocá-lo sobre o criado mudo uma dor intensa pairou sobre mim.

“Vê-la embriagada não era novidade, era seu modo de fugir da realidade, mas, estava cedo demais”.

– Mãe, o que está acontecendo? – Mesmo que tentasse não podia evitar as lágrimas que escorriam pelo meu rosto. – Por que você está aqui? O que aconteceu pra você ficar assim? Seu silêncio me deixava ainda mais revoltada.

Sem dizer nada, ela levantou a cabeça procurando meus olhos. E no momento nossos olhares se encontraram, sinto como se tivesse sido apunhalada pelas costas, uma dor insuportável se alastrou, e como um flash de luz relembrei a sensação estranha que experimentei de manhã. Senti que havia alguma coisa estranha, e quando seus olhos encontraram os meus, tive certeza. Faria qualquer coisa para estar errada.

– Filha, me perdoa. Eu te amo tanto e sempre vou te amar. – Soluçando, ela me abraçou forte, o cheiro de vodka podia ser sentindo a distância.

– Oh, mãe! Não precisa pedir perdão, você não fez nada que merecesse meu perdão… Fez?

Ela estava agitada, nervosa como se o tempo estivesse se esgotando. E estava.

– Nós fizemos. – Ela respondeu entredentes, quase que sussurrando. Mas a culpa é do seu pai… Ele se envolveu com eles. Sei que eles roubaram meu filho e agora vão tirar você de mim. No começo eu não queria, mas quando vi você tão pequena… Seus olhos eram tão doces e havia tanta vida neles.

 Neste momento me afastei, ficando parada próximo a porta. Suspirei profundamente, tentando me manter em pé, mas minhas pernas pareciam não suportar meu corpo. Tudo que eu mais queria neste momento era acordar desse pesadelo. Isso não pode ser real.

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