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Segredos Mortais – Capítulo 9

Após horas no esconderijo, a noite havia chegado. O trepidar da fogueira tornava a noite ainda mais sombria. Fazia tempo que não nos reuníamos e essa podia ser a última reunião para muitos de nós. Apertei o cordão que Daniel havia me dado algumas horas atrás, tentando afastar de minha mente a imagem de Adele naquele castelo, cercada por aquela criatura, cujo sangue eu me recusava e jamais aceitaria como sendo igual ao de alguém da mesma família. 

Daniel podia ter mudado de aparência, de nome, mas para mim ele continuaria sendo Daniel. Apesar de Joduá ser até um nome “maneiro”. Mas assim como eu queria esquecer meu passado entendi suas razões para ter mantido seu passado morto por anos. Argumentei enquanto amarrava meu cabelo que o vento insistia em jogar e fazer cair sobre meu rosto. 

Daniel estava apreensivo e mesmo longe sabíamos onde ele estava. De certa forma estávamos com ele. Sem dizer nada ele coloca uma das mãos sobre suas costas pegando uma caixa e puxando-a para si, apoiando sobre seus joelhos. Assim que a abriu, uma luz azul surgiu de dentro dela atraindo a atenção de todos. Uma lembrança rapidamente assombrou meus pensamentos. Era a mesma luz que emanava da seringa que o vi encher com um líquido no esconderijo.  

– Daqui a um dia, iremos para uma guerra onde vocês terão que colocar em prática tudo que aprenderam aqui. Após esse ataque que tivemos, perdemos cruelmente muitos dos nossos. Mas mesmo estando em menor número, juntos poderemos vencê-los. Temos algo que eles não têm. Mas preciso avisá-los que há um risco. Com o olhar concentrado em nós prosseguiu sem perder tempo…

– Esse soro funciona de uma forma diferente para cada um de vocês. Infelizmente ele não funciona em humanos… Ainda… – Concluiu.  Gabriele arregalou os olhos enquanto amarrava seus cabelos longos em um rabo de cavalo.

– Como assim diferente? – Perguntou Heitor.

– No seu caso e nos demais como você… – Disse Daniel olhando para os outros híbridos – ele ativa o DNA turbinando a capacidade mental e física, além de ativar algumas mutações que estão adormecidas desde a alteração que vocês sofreram anos atrás, quando foram capturados por Leonel e o bando dele. Entre uma delas, o envelhecimento, e… algumas alterações físicas podem serirreversíveis, podendo causar a morte.

Heitor andou para um lado e para o outro com as mãos sobre a cabeça. “Era uma decisão difícil. Afinal essa guerra não era deles, e sim nossa!” Pensei olhando para os outros que estavam espantados.

– Não existe um meio de parar essas alterações? De controlá-las? – Perguntou Heitor apreensivo, arrancando a camisa e jogando-a no chão ao seu lado. Deixando visíveis seus músculos se contraindo.

Ele deu uma pausa observando alguns sussurros entre os híbridos continuando em seguida…

– A mordida de um Original pode parar o efeito do soro tornando-os imunes e ativando rapidamente a regeneração, mas se não funcionar…  morrerão. Todos se aglomeraram impacientes.

– Caramba! Não tem nenhuma outra coisa que possa funcionar sem que precisamos morrer? – Perguntou um dos híbridos que estava na roda.

– Vamos descobrir. – Disse Daniel pegando uma seringa de dentro da caixa. 

– Algum voluntário? – Perguntou se levantando, parando no meio do círculo. Não sabia se era a fogueira, mas um calor se abateu em meu corpo.

– Quais as chances?  – Perguntei me aproximando. 

– Esquece, Lara! – Disse Heitor ficando na minha frente a menos de dois passos de Daniel. 

– Se tiver que fazer, faça em mim. Se fui capaz de sobreviver às experiências de Leonel, posso sobreviver a isso. – Esticando o braço olhando em seus olhos ele sussurrou.

– Faça! 

Daniel concordou movimentando sua cabeça afirmativamente, e antes que pudesse interferir, aplicou o líquido em seu peito. Gabriele correu em sua direção abraçando-o, inconsolável. Uma profunda dor se instalou em minha alma por ter que vê-los viver esse pesadelo sem terem tido a chance de escolher. 

Um vento forte passou varrendo as folhas do chão fazendo-as flutuar em um redemoinho. Olhamos em volta, surpresos com o vento súbito, esperando que fosse o aviso de uma tempestade. Mas assim que olhamos acima de nós, a uns dois metros, três criaturas com enormes asas voavam em círculos se aproximando cada vez mais, descendo até nós…  

Eram os guardiões. 

Assim que desceram até nós, Leiael buscou rapidamente meus olhos. Ele parecia apreensivo. Enquanto me perdia em seu olhar, não percebi os outros dois guardiões fazerem os híbridos caírem ao chão reverenciando-os. Voltei o olhar para Leiael sem entender nada. Sendo surpreendida por um sussurro.

– Há alguém vindo, preparem-se! 

Olhei em direção à floresta e a entrada principal da aldeia, mas não vi nada.Puxei as duas adagas presas às costas esperando o invasor, observando os outros fazerem o mesmo enquanto se levantavam ficando em posição de ataque. Um gemido similar a um grito chamou minha atenção. Olhei apreensiva para Heitor que se debatia compulsivamente no chão, suas veias estavam da cor do líquido azul e em poucos segundos seu peito e seu rosto ficaram encobertos por elas, deixando-o com a aparência de um monstro. Da forma que ele se agitava no chão mostrava o quanto era dolorosa a transformação. Os híbridos olhavam atentos para ele temendo o que iria acontecer.

Ele se debateu por alguns segundos diante de nós. Daniel se aproximou, erguendo seus olhos negros em nossa direção com a face completamente transformada. Enquanto Heitor dava seus últimos suspiros, ele se aproximou rapidamente e com um único movimento quebrou seu pescoço. Voltando rapidamente para os guardiões.

– Não! – Gritei. Mas já era tarde. Heitor estava morto. Gabriele fez uns círculos em suas mãos pronunciando algumas palavras e disparou na direção de Daniel. Gritando em seguida: 

– Seu monstro! – Por que fez isso? Por que o matou? – Descontrolada por ver Heitor imóvel, ela atacou Daniel com uma magia atrás da outra, sendo interrompida por um dos guardiões que a fez cair de joelhos, neutralizada. 

– Olhei para Leiael fuzilando-o com toda minha raiva, por ele ter deixado o guardião fazer isso com ela. Por não ter nem tentado interferir. Estava tomada de raiva, quando dei um passo decidida a ir em direção a Leiael para lhe cobrar uma resposta, escutei um zumbido quase perfurar meu ouvido.

– Eles ficarão bem. É assim que funciona, Heitor precisa morrer para que o soro seja ativado. Não se meta. Apenas escute! – Avisou ele. Abrindo as enormes asas.Levei a mão ao ouvido que parecia latejar. 

Daniel se virou em seguida em direção à floresta atrás de nós. Sua expressão havia mudado e um ar de preocupação surgiu em seu semblante.

– Não estamos sozinhos. – Falou Daniel.

– Isso todos já sabem.  Alguma novidade? – Falei olhando para ele. 

Com os olhos concentrados em direção à floresta, notamos uma sombra surgir entre a pouca luminosidade da lua. Ela se aproximava lentamente como se a qualquer momento fosse desaparecer sobre a terra seca. Podia sentir e ouvir os batimentos acelerados e motivados dos híbridos, prontos para atacar qualquer coisa que se aproximasse, mas o batimento da criatura que se aproximava sorrateiramente era o mais calmo e suave. Não sentia seu medo. Mas podia sentir sua raiva.

Assim que reconheci a criatura, minha expressão foi uma mistura de minha surpresa e curiosidade. Não consegui distinguir meus sentimentos exatos. Aqueles olhos não eram os mesmos do ataque, eles pareciam vazios.

– Malcon? O que faz aqui? – Perguntei, dando dois passos em sua direção, encarando-o. Dois dos híbridos o cercaram prontos para atacar. Pareciam dois cães raivosos. 

– Eu… – Começou ele, passando a mão pelo casaco marrom e comprido, sem tirar os olhos dos híbridos. 

– Vim ver Daniel.

– Daniel? Você quer dizer Joduá? – Senti um impulso de voar em seu pescoço, mas me contive observando Daniel e Leiael que me encararam repreendendo-me. Fiz um gesto com as mãos dizendo “Ok, não falo mais nada”. Nessa altura não era mais segredo para ninguém que Daniel na verdade era Joduá, irmão do diabólico Zoraky, que havia morrido anos atrás. Ou melhor, fingiu estar morto. Mas acho que Daniel não gostava muito do seu verdadeiro nome. Ou talvez não gostasse de seu passado.

– O que você veio fazer aqui? Veio trazer algum recado daquele verme? – Perguntou Daniel partindo para cima de Malcon, mas sendo impedido rapidamente por Leiael, que o barrou colocando a mão sobre o seu peito. 

– Se ele encostar um dedo nela…

– Adele está bem. – Disse ele.  – Por enquanto. – Completou. – Quero me juntar a vocês para salvá-la. Posso ser útil, conheço bem o castelo e sei que estão à espera de vocês. – Explicou.  

Daniel jogou seu sobretudo para trás firmemente, parando em sua frente, encarando-o como se fosse devorá-lo.

– E por que você acha que acreditaria em você depois de nos atacar dias atrás com seu bando? Você acha que sou tolo? – Berrou Daniel, grudando em seu pescoço.

– Não! – Disse ele, entredentes, sufocado.

– Sei quem é você. Adele me contou. Eu… a amo, por isso estou aqui.            Daniel o empurrou para trás surpreso com suas palavras.

– Ela falou sobre mim? Com você? O que ela disse? – Perguntou se aproximando novamente, tentando conter sua fúria.

– Antes de Zoraky prendê-la no calabouço ela me contou que você é o pai dela e que a enviou uma carta, ou melhor, um mapa contando sobre o ataque. Queria ajudá-la a fugir, mas sozinho não tenho nenhuma chance, assim que descobrirem minha traição serei morto e ela também. Mas com vocês sei que podemos salvá-la. Sei que com a ajuda das criaturas da floresta podemos ter uma vantagem. 

Os guardiões se olharam incrédulos com suas palavras. 

– Mentiroso! – Berrou Daniel se atracando com ele no chão com a mão em seu pescoço.

– Um dos guardiões que estavam com Leiael o pegou pelas costas do sobretudo o arremessando para longe. 

– Parem com isso! Estamos ficando sem tempo. Você deixou de usar seus poderes por tanto tempo que se esquece de usá-los quando precisa. Leia a mente dele. Ele diz a verdade. – Seus olhos pareciam pegar fogo por um segundo.

Assim que terminou, abriu suas enormes asas e voou sumindo em direção à floresta. Ele era tão bonito e alto quanto Leiael e o terceiro que estava com eles. Mas seus olhos eram diferentes. Eram mais frios, misteriosos e enigmáticos. Seus cabelos negros e compridos faziam-no parecer com um anime, desenho animado japonês. Lembrava os cavaleiros do zodíaco, só que no lugar das armaduras, usava roupas normais, quer dizer, mais ou menos. O terceiro guardião apenas observava em silêncio, aparentemente mais novo que Leiael e o outro que havia se retirado. Não gostava do jeito indiscreto que me olhava. Com uma das mãos jogou seu cabelo loiro para o lado falando alguma coisa para Leiael que não consegui compreender. Seu cabelo ao contrário de Leiael e o outro era mais curto, na altura do pescoço. Antes de partir, senti seus olhos percorrerem cada centímetro do meu corpo. Um arrepio fez meus pelos se eriçarem.  Leiael me observava em silêncio.

Antes que alguém argumentasse alguma coisa, Malcon tirou um papel do bolso de seu jeans carmim e apontou em direção de Daniel, que o pegou no mesmo instante, observando o papel.

– Isso não prova nada. – Disse ele jogando o papel no chão. – Zoraky pode ter te entregado para você poder se infiltrar entre nós como um lobo em pele de cordeiro.

Malcon se aproximou de Daniel desafiando-o.

– Então, veja! – Ele deitou a cabeça para o lado deixando à mostra seu pescoço.

Daniel de imediato crava seus dentes em seu pescoço nu. Caindo segundos depois no chão e em silêncio.

Com os punhos cerrados contra o chão ele sussurrou: 

– Ele diz a verdade…  Deixem-me sozinho. 

Sem questionar atendemos seu pedido, nos reunimos novamente em volta da fogueira. Observando Daniel desabar sentando sobre a raiz de uma árvore mais distante de nós, queria saber o que ele viu ao morder Malcon, que o deixara ainda mais desesperado. 

Voltei o olhar para Heitor colocando a mão sobre sua testa. Ele estava fervendo, podia ver o suor escorrendo pelo seu peito nu. Seu rosto já havia voltado ao normal, mas em seu peito ainda era visível as veias azuis. Gabriele não saia de seu lado esperando sua recuperação. E eu temia por ela. Não sabíamos como seu organismo iria reagir com o soro e nem como ele voltaria. Um dos híbridos se aproximou passando uma corrente em volta de seu corpo.  Gabriele no momento tentou impedir, mas acabou entendendo que era necessário. Enquanto ele não acordasse era uma ameaça.

Voltei o olhar para Malcon que estava sentado no chão mais distante de nós, com os cotovelos apoiados na perna, escondia seu rosto entre suas mãos. Levantei-me, indo em sua direção, sentando-me ao seu lado. 

– O que mais você sabe? O que Daniel viu que o deixou assim tão transtornado? – Perguntei sem rodeios. Ele continuou como estava. Em Silêncio. Tentando conter minha ansiedade e irritação, tentei novamente.

– Se quer que confie em você precisa confiar em mim. Ela é minha prima e farei de tudo para salvá-la. – Ele suspirou profundamente enquanto passava as mãos em seu cabelo arrepiado empurrando-os para trás. 

– Você está enganada, Lara. Tem muita coisa que você não sabe. Não culpo você. Mas o que sei, não vou te revelar, você terá que achar outra maneira de descobrir. Só quero salvar Adele porque a amo. Mas sou um monstro, Lara. Fui treinado para matar, não para ter piedade. E Adele acordou em mim um lado que achei que não existisse. Quando estou com ela me sinto melhor.  Pensei que cumprindo as ordens de Zoraky ela ficaria à salva, fiz muita coisa da qual me arrependo, mas o que está feito não pode ser desfeito. Mas Zoraky não passa de um mentiroso e manipulador. Lamento por você ter o mesmo sangue que ele. Eu já tive uma vida e ele a arrancou de mim assim como fez com muitos outros. Não vou permitir que ele tire mais nada de mim.

– Comovente suas palavras. Mas você falou, falou e não me respondeu. 

– Por que acha que estou enganada? E enganada sobre o quê? Acha que não conseguiremos salvá-la? – Perguntei tentando conter minha impaciência.

– Você sabe por que isso está acontecendo, Lara? Você em algum momento parou para avaliar a história que Daniel contou para vocês? Você quer que eu acredite em você, mas você acredita em Daniel? Tentei achar alguma resposta coerente, mas não estava com paciência para pensar.

– Não, não confio. – Respondi apertando o maxilar. 

Colocando minha mão sobre sua nuca, apertei buscando seus olhos. 

– Não sei por que isso tudo está acontecendo, mas você vai me contar.  – Sussurrei cravando minhas unhas em seu pescoço.

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