A vida e a morte convivendo juntas; unindo almas, mesmo que seus corpos estejam separados.
Luz e trevas brigando por seu lugar, e usando como adorno dois seres que se amam.
O amor ganhando luz e fazendo as trevas ganharem brilho.
O que há no coração sempre vence, nesse plano ou no infinito.
(Ellen dos Santos)
— Você sempre foi assim. Não é agora que vai mudar, né? Sinceramente, estou cansada.
— Eu sou como?
— Carrancudo. Não se pode brincar com nada ao seu lado. Você não curte a vida, quer só aquela mesma rotina de sempre, sem pensar que tem uma esposa que gosta de fazer coisas que não são limpar a casa, cozinhar e lavar roupa.
— Mas estamos indo viajar. Não era isso que você queria?
— Queria sim, mas não desse jeito. Você já está com a maior cara de tédio e ainda estamos na estrada!
— Quer que eu dê risada durante o caminho todo? Prefiro me concentrar no trânsito.
— Eu não posso nem colocar música. Ainda bem que não tivemos filhos. A criança cresceria sem saber o que é brincar com o pai.
— Você já sabia que eu sou sério desde antes de namorarmos. Disse sim no casamento, prometendo estar do meu lado em todos os momentos. Arrependeu-se depois de tantos anos?
— Eu estou do seu lado. Mas parece que você não está do meu. Você não me apoia, quer saber apenas das conveniências de ter uma esposa dona de casa. Você prometeu segurar a minha mão em todos os momentos, mas só segura a papelada do trabalho mesmo.
— Se você…
Um caminhão não viu o carro à sua direita e mudou de faixa, empurrando o veículo menor ladeira abaixo. Foi perda total. O carro capotou oito vezes, ficando o casal com ossos quebrados e cortes pelo corpo todo. Bateram as cabeças, e ambas estavam ensanguentadas.
Bárbara se foi primeiro, deixando o marido desesperado, gritando por socorro, esperando que ela acordasse, sempre dizendo que a amava e pedindo desculpas enquanto suas lágrimas misturaram-se com o sangue. Não queria morrer, nem conseguia se livrar do cinto de segurança; ele ainda tinha muito o que viver; estava quase se aposentando e logo poderia aproveitar mais a vida. Eles estavam de ponta cabeça. O homem sentiu-se cada vez mais fraco e dolorido. Pensou na briga que culminou na morte da esposa; ele, depois do casamento, se dedicou ao emprego para manter uma estabilidade financeira em casa, mas pelo jeito a dedicação se transformou em vício, e o dinheiro não deixava a esposa feliz, como ele sempre pensou que fizesse. A essa altura, já se odiava por ter errado tanto; faria de tudo para ter sua esposa de volta. Enquanto chorava, de raiva, decepção, tristeza e dor, adormeceu.
Quando o resgate chegou, o carro cheirava a sangue e gasolina. Foram retirados com pressa, pois o veículo poderia explodir a qualquer momento. E explodiu. O enterro aconteceu num dia quente e úmido no interior de São Paulo. Familiares e amigos estiveram presentes.
Abriu os olhos e estava na sua casa, deitado do lado esquerdo da cama de casal. Não sentia dor alguma, então pensou que tudo aquilo fora apenas um pesadelo. Sentou na cama, calçou os chinelos felpudos e procurou sua esposa; queria lhe dar um abraço e verificar se o café da manhã estava pronto. Aquele sonho o assustou e lembrou de todos os meses que passou sem contato físico com ela. Estava disposto a mudar e vê-la feliz.
Chegou à cozinha e viu um vulto brilhante.
— Querido?
Então foi verdade, e Bárbara estava morta. Sentiu uma horrível amargura tomar conta de seu peito.
Bárbara acordou cedo, junto com o Sol. Levantou-se e, ao olhar para Wellintom, viu-o translúcido. De repente, toda a cena do acidente veio à sua memória e ela teve certeza de que estavam mortos. Apesar de que esperava sentir-se triste, não estava; pelo contrário, era, agora, leve e parecia que alguém tinha passado óleo entre as suas juntas. Nada mais doía; não sentia sono, nem preguiça. Sorriu.
Andou silenciosamente até a cozinha e sentou-se no parapeito da janela, ficando quieta até o marido aparecer. Quando olhou para o relógio, algum tempo depois, já eram sete horas. A vida lá fora parecia não perceber que havia duas vidas carnais a menos naquela casa durante a manhã. Observou as crianças com os pais dentro do carro indo para a escola e para o trabalho. Viu algumas pessoas passeando com seus cachorros, outras caminhando sozinhas com ou sem fones de ouvido. Os lixeiros passavam, instintivamente ela se perguntou se havia posto o lixo para fora e lembrou que sim; colocou antes de saírem de viagem, mas isso também já não fazia diferença. Não ouviu passos, mas percebeu o marido se aproximando.
— Querido?
A feição de Tom se transformou num misto de tristeza e espanto. Nascendo de seu peito e se espalhando pelo corpo, uma escuridão profunda apareceu. O homem deixou de ser, então, uma alma transparente para ser um vulto tão negro quanto o centro de um buraco negro.
Ao mesmo tempo que Bárbara não conseguia desgrudar os olhos do marido, Wellintom não podia olhar diretamente para sua esposa sem ter uma sensação agoniante tomando conta de si. Ela era brilhante, muito brilhante, como se dezenas de estrelas formassem sua alma. Entretanto não estranhou, pois ela sempre fora uma pessoa alegre e leve. O homem olhou para o que deveria ser a própria mão e constatou que não estava como Babi, mas sim totalmente o contrário. O preto era tão profundo que parecia sugar a energia das coisas ao redor. Ele não sentiu-se tão ruim, afinal. Deu de ombros. Oras bolas. O que fariam agora? Não era pressuposto que os mortos iriam para o céu ou para o inferno? Nunca entendeu aquela coisa de alma penada, que fica vagando pelo mundo. Enfim, estava realmente morto. Aquele acidente foi fatal e causado por algo que poderia ter sido resolvido numa conversa calma, entre quatro paredes.
Percebeu um ódio profundo dentro de si que ficava cada vez maior. Maior. Maior. Seus olhos tornaram-se uma mancha vermelha no meio da negritude completa; pareciam queimar como o fogo, crepitavam, pulsando com o ritmo de um coração vivo, mas irritado. Estreitou os olhos e urrou. Sua energia fez com que todas as portas dos armários da cozinha se abrissem, expelindo com violência os copos, pratos e tudo mais. As gavetas se escancararam também sozinhas, e os talheres voaram, circulando pela cozinha e prometendo espetar qualquer corpo material que aparecesse por lá. O ar estava frio, bem depois da temperatura negativa. As torneiras da pia se abriram, soltando água que congelava antes mesmo de tocar no alumínio. Pouco a pouco, a cozinha ganhava um novo piso de gelo esbranquiçado. A mesa e as cadeiras tremiam, batendo os pés no chão ao ponto de lascar a madeira pintada de branco. A luz começou a piscar. Alguns transeuntes pararam na calçada, com os ouvidos sendo incomodados pela estática que os eletrodomésticos soltavam em alto volume.
Tão rápido quanto Tom se endiabrou, Babi expandiu a sua luz, fechou as cortinas e segurou com múltiplas mãos invisíveis todos os objetos que ameaçavam espatifar no chão. Com um silêncio vibratório, que era possível sentir na pele dos vivos que estavam na calçada. A luz tomou o cômodo. Ela fechou os olhos, fazendo uma força descomunal para conter a escuridão que emanava do marido, mas conseguiu.
Wellintom foi encolhendo a alma contra a parede, murchando os ombros e mudando seu urro para um gemido. A dor ficou tão grande, tão sufocante, que não foi possível continuar ali. Gritou uma última vez e voou até o banheiro, trancando-se lá. Babi soltou delicadamente os objetos que segurava e todos caíram ao mesmo tempo, mas nenhum se quebrou. A casa ficou silenciosa e calma novamente. Os pedestres escutaram a porta batendo e admitiram cegamente que tudo foi apenas o vento, então voltaram a andar até seus destinos.
Bárbara sentia-se forte, e a luz acariciava seus sentimentos, esquentando sua alma. Ela olhou para a cozinha e viu o estrago causado pelo marido. Suspirou, mas não se deixou abalar. Começou imediatamente a arrumar tudo, sempre cantarolando alguma música da qual gostava, enquanto Wellintom gemia, encolhido num canto do banheiro.
Em algumas horas, tudo estava novamente na mais perfeita ordem, e Babi nem sentia-se cansada. Bateu as mãos uma na outra, como se quisesse limpar a pele que já não carregava e sentou-se na beira da janela para observar a vida lá fora. Preocupava-se com o marido, mas sentia que não podia incomodá-lo naquele momento. Portanto, prorrogaria o contato o máximo que pudesse.
Certo dia pela tarde, alguém começou a movimentar a maçaneta da porta e Bárbara decidiu apenas observar. Não sabia como alguém reagiria ao vê-la, ou mesmo se a veria. Wellintom não estava por perto – já havia abandonado o banheiro há algum tempo, deixando sujeira pelos cantos, uma sujeira que Babi nunca viu, uma gosma esverdeada e fétida, mas ela já cuidara disso e o cômodo cheirava lavanda novamente. Um homem rechonchudo abriu a porta, e sua irmã mais nova, Beatriz, estava ao lado dele. Ele, então, trocou a fechadura e a entregou a nova chave; ela agradeceu e pagou pelo serviço.
Babi sentia-se feliz, pois não via Bia há anos. Ela mudou-se de estado, vivia atropelada pelo trabalho e parecia mais madura desde então. Algumas rugas já estavam embaixo de seus olhos, os famosos “pés de galinha”. A mulher viva entrou na casa com passos lentos, olhando para os lados e passou os dedos delicadamente pelo retrato de família da época de criança que ficava no aparador ao lado da porta. Uma lágrima escorreu de seu rosto e Babi tentou abraçá-la, arrepiando a pele da mais jovem e fazendo-a mover-se para longe.
— Bia… – a morta tentou falar, mas não foi ouvida. Sua irmã apenas olhou para trás com uma expressão confusa, imaginando que o vento estava soprando no local fechado – sem prestar atenção ao detalhe inconsistente – e voltou a andar.
Tom apareceu perguntando alto sobre com quem a mulher falava, mas não precisou de resposta. O local ficou frio, mas apenas o suficiente para fazer Bia cruzar os braços, tentando se esquentar. Ele parou na sua frente, e ela o atravessou por completo, fazendo-o abraçar o próprio corpo com uma careta estranha, enquanto a cunhada desatava a chorar. Ficara subitamente triste, passando a sentir um peso enorme nos ombros, pois Tom havia se escorado nela, sussurrando palavras desagradáveis ao pé do seu ouvido, tentando fazê-la ir embora. Mas Bárbara interferiu, escorando no outro ombro e dizendo o quanto amava a irmã e que estava muito feliz por vê-la, mesmo depois da morte.
Andaram os três pela casa toda. Vez ou outra Beatriz parava, tocando nos objetos que lhe traziam alguma lembrança. O silêncio, para a viva, era sepulcral, mas para as almas, o barulho chegava a irritar os ouvidos, pois as trevas lutavam com a luz, e parecia que o casal não eram os únicos a falar, mas sim apenas dois no meio de centenas.
— Ah, Babi, até depois da sua morte, sua casa continua cheirando limpeza – ela conversava com uma foto. – Queria poder te dar um abraço de despedida.
Tom olhou para Babi, que negou com a cabeça.
— Você não pode abraçá-la. Ela deve partir!
— Nunca gostou da minha família, não é?
— Eles nunca gostaram de mim, foram até contra o casamento.
— Talvez eles estivessem certos… – Isso fez com que Tom libertasse Bia de seu encosto e que a sua falta de luz passasse a ser mais melancólica, menos raivosa. Estava visivelmente triste, mas a esposa já estava cansada dele. Queria dar atenção para a irmã e apenas isso. Ele que se lascasse em algum outro canto da residência.
— Espero que não me odeie por vender a sua casa – ela continuou a falar. – Mas não tirarei nada daqui de dentro além das fotos, não consigo… os compradores cuidarão disso. Você já deve ter se encontrado com os nossos pais a essa altura… e eu estou falando sozinha….
Wellintom ficou ainda mais opaco e regressou do caminho que tinha tomado; por fim tentou pular para cima da jovem que respirava com dificuldade, tentando conter os soluços provenientes do choro, mas Bárbara conseguiu segurá-lo.
Aquele toque foi como uma descarga elétrica para ambos, agradável para Tom e dolorido para a esposa. Olharam-se assustados, trocando a atenção entre o vulto do outro e as próprias mãos, pois as quatro estavam da mesma cor: cinza, que tinha a própria luz, mas não era nada comparado ao brilho do resto do corpo de Bárbara. Ela sentiu toda a repulsa que sentia pelo homem ir embora, e seu coração foi tomado pelo mesmo amor que sentia na época do namoro. Ele, por sua vez, estendeu a mão, pedindo silenciosamente para que ela o tocasse novamente, o que foi feito com cuidado, primeiramente apenas as pontas dos dedos indicadores, depois a palma da mão. Dessa vez não sentiram nada além do toque que parecia ser de carne com carne. Ficaram assim por não se sabe quanto tempo, mas quando saíram do transe, Beatriz não estava mais ali e levara consigo os retratos.
O relógio cuco tocou, sendo o responsável por acordar os dois mortos. A luz de Babi estava um pouco mais fraca, enquanto Tom estava uma escuridão brilhante com um dos braços cinza.
Ambos sabiam o que aquilo significava. Pela primeira vez em muitos anos, Tom decidiu abrir mão do seu bem-estar para prezar pela esposa, e Bárbara preocupava-se com o humor do homem que naquele momento, além de triste, estava impassível, recusando-se a tocar nela novamente. Cada um foi para um canto da casa. Tom com o seu braço cinza e Babi com uma mancha preta no lado esquerdo do peito.
Não contaram quantos dias se passaram desde a visita de Beatriz. Possíveis compradores apareciam com frequência, até que numa manhã faxineiras de uniforme vieram para esvaziar todos os armários e limpar a casa – que já estava limpa, na verdade (claro que o de alma escura tornava as visitas e tarefas uma coisa difícil, fazendo os interessados desistirem rapidamente da compra. Cada vez era uma travessura diferente: portas batendo, ar frio, ambiente pesado demais, alucinações de pragas como ratos e baratas…) – e, no dia seguinte, um carro estacionou na garagem, e um casal começou a descarregar algumas malas porque estava se mudando para lá. Tom ficou furioso, tentando derrubar as bagagens que eram carregadas para dentro, mas isso só fez parecer para os vivos que elas estavam mais pesadas. Ele parecia uma criança mimada, balbuciando frases desconexas, tentando conseguir o que queria, mas sem resultado algum. A mulher brilhante recusou-se a olhar a mudança e focou na vida que passava do outro lado da janela, já que o marido estava com a ira um pouco mais calma desde que se tocaram durante a visita de Bia. Ele já não era perigoso, apenas chato. Em pouco tempo, tudo já estava descarregado e colocado na sala. O casal vivo olhava o chão de madeira escura, os móveis minimalistas e as paredes claras. Pareciam satisfeitos com a casa.
— Acho que devemos trocar os sofás, apenas. Assim como a cama do nosso quarto.
Concordaram, e Tom gritou. Como alguém ousaria tocar na cama onde ele dormia com a sua mulher?
O casal se abraçou, para então começar as organizações.
— Amanhã devemos ir comprar alguns itens para a cozinha. Hoje ficaremos na base da pizza com a mão e água na garrafa.
O casamento havia sido há menos de dois meses, e mudaram-se logo depois da lua de mel. Os beijos eram constantes, assim como os abraços e as trocas de palavras agradáveis. Babi, com o tempo, ficava cada vez mais triste, comparando o seu casamento com o dos novos donos da casa; sua luz estava se apagando. Tom, por sua vez, ficava cada vez mais chato e irritado, ao ponto de até o seu braço voltar a não ter luz alguma e de seu corpo parecer o centro de um buraco negro. Voltava a deixar de ser inofensivo, e já era visível sua pretensão de machucar os novos moradores.
Sempre que os vivos estavam perto de Wellintom, sentiam-se cansados e, algumas vezes, até começavam brigas sem cabimento. Bárbara percebia isso e tentava manter o marido longe dos moradores o máximo que conseguia. Queria prezar pela felicidade deles, coisa que ninguém fez por ela enquanto era viva. Ela mesma sentia sua energia acabando.
Certo dia foi a gota d’água. Wellintom explodiu o copo que um vivo segurava. O sangue parecia estar em muito mais abundância do que estava saindo de verdade. O chão contava com uma falsa mancha vermelha que só as duas almas viam, pois a preocupação entre os vivos era tão grande que expelia a negatividade que Tom tentava implantar ali. Babi, com toda a sua racionalidade, também não se deixou abalar, pois estava ciente de quantos litros de sangue o corpo humano carregava e podia perder antes da morte. Ele tentava abrir as portas dos armários e gavetas novamente, querendo machucar ainda mais os que tomaram a casa sem a sua permissão. Tudo tremia delicadamente, pois Bárbara fazia sua luz agir, segurando as trevas do marido. Novamente ele foi encolhido contra a parede, sentindo dor nos olhos flamejantes e o peito pesado. Saiu em disparada para o quintal, pois, naquele momento, a casa toda brilhava com paz. Bárbara ignorou o marido e sussurrou no ouvido dos vivos frases boas até eles decidirem ir ao hospital tratar das feridas abertas.
Esgotada da rotina, Bárbara decidiu sair para andar pela cidade num domingo de manhã. Tom poderia fazer a algazarra que quisesse lá, pois seria até melhor que aquele casal doce fosse morar em outro lugar; assim teriam suas vidas deixadas em paz. Ela sentia falta do parque municipal e de conversar com suas amigas, que também iam fazer caminhadas por lá. Imaginou que estava com seus tênis preferidos e saiu quando a porta foi aberta por um dos vivos.
Tom ficou sozinho e, quando percebeu a luz se afastar, ficou melancólico, urrando de raiva e tristeza ao mesmo tempo. Procurava alucinadamente suas fotos, roupas e outros pertences, mas ali estavam apenas as coisas dos novos moradores. Isso o deixava mais triste do que irado, pois sentia que ali já não era mais o seu lugar. Pensou no carinho entre os humanos vivos naquele momento de dor e desejou ter Babi para abraçá-la. Começou a destruir o ambiente, mas não conseguiu continuar; aquilo pareceu errado. Pensou em, ao menos, estragar a comida da despensa, mas desistiu antes de começar. O que estava acontecendo com ele? Parecia que sua força fora embora. Sentiu saudades da esposa. Era ela que faltava. Ele não era o mesmo sem sua presença angelical. Por que foi tão ruim a vida toda? Por que não deu valor ao que tinha enquanto vivo? As perguntas brotavam e matutavam não só na sua cabeça, mas na alma toda, refletindo na escuridão.
~
Não demorou mais que uma hora para chegar ao parque, mas suas colegas já estavam no fim da caminhada, alongando-se e quase indo embora.
— Já faz quase um ano…
— Sim. No começo senti muita falta da Babi. A felicidade dela alegrava as nossas caminhadas.
— Quando estávamos cansadas e querendo desistir, era ela que nos animava. Mas, agora, até a Maria já parou de vir. E olha que ela era a mais persistente.
— Ela deve estar sentindo muita falta do grupo completo. A Ma sempre foi sensível demais.
Apesar dos elogios, Bárbara sentiu que já não fazia tanta diferença estar ali ou não. Apenas uma das suas colegas foi afetada por sua morte, mas, de qualquer forma, a morta também sentiu-se triste com essa notícia.
Voltou para casa, pensando em como estaria o resto de sua família. O que eles sentiam? Eram saudades genuínas?
Sua luz ficava cada vez mais fraca. Queria poder chorar no colo do marido, já que ele era a única parte da sua vida que restou depois da morte, além dela mesma. Andou o caminho todo vagarosamente.
Entrou por uma janela aberta da sala e viu Tom sentado no sofá novo de cor cinza.
Ele se assustou quando viu sua mulher. Ela estava diferente de como saiu de casa mais cedo.
— Querida?
Isso a fez parar. Não lembrava de quando foi a última vez que ele a chamou com tanto carinho e preocupação na voz. Se estivesse viva, seu coração estaria palpitante. Não teve coragem de olhar para a escuridão, então ficou parada no meio da sala, de costas para o marido, sentindo um peso aumentar do lado esquerdo.
— Parece que nem a morte nos separou, não é? – ele disse, tentando quebrar o gelo daquele momento. Ela sorriu, voltando a brilhar forte, e se virou. Não se sabe como era possível, mas o sorriso era ainda mais brilhante que o resto do corpo. Quando se conheceram, o riso de Babi foi o primeiro fator que o fez se apaixonar, seguido pela personalidade da até então moça; mas agora não conseguia olhar diretamente para aquela curva da que mostrava metade dos dentes superiores e um terço dos dentes inferiores. Sentiu-se desconfortável e desviou o olhar.
Ela se perguntava onde estava toda a raiva que já habitou aquela outra alma.
— Pelo jeito não… e morremos brigando.
— Sim. Morremos brigando. – Tom foi até a cozinha e sentou-se numa cadeira qualquer na mesa de madeira pintada de branco. Havia outros três lugares livres. Bárbara foi atrás dele e tentou sentar a seu lado, mas também sentiu-se esquisita e preferiu pela cadeira à sua frente.
— Estamos mortos, então não podemos comer, né?
— Isso realmente é a sua dúvida sobre a vida após a morte? Devia ter imaginado… você sempre teve o estômago maior do que o resto do corpo.
— Não tenho culpa se o seu café da manhã é mais gostoso do que o de qualquer hotel.
Ficaram em silêncio. Ela sentiu-se triste por nenhum dos dois iniciar um pedido de desculpas. As palavras pareciam estar entaladas nas suas gargantas.
— Ali! – Tom apontou para o lado esquerdo de seu peito, ligeiramente assustando a esposa. – Você está triste! Uma pontinha preta apareceu no meio da sua claridade.
— Como sabe que isso significa que estou triste?
— Pois eu me sinto triste e estou completamente sem luz…
A mancha escura cresceu no coração da mulher.
— Ali! Você ficou mais triste. Por quê?
— Saber que você está triste também me deixa assim – ele encolheu os ombros, pois sabia que durante os últimos anos não foram os mais agradáveis para Babi; ela ficava emburrada com mais frequência do que o normal, mas isso nunca o afetou. Sentiu-se egoísta.
— Poder comer me deixaria um pouco mais feliz.
— Ah, Tom… – riram nasalmente, e isso fez a mancha escura desaparecer de seu peito. – Querido, me desculpe. Não devia ter discutido enquanto você dirigia. Olha como acabamos…
— Está tudo bem. Pelo menos não precisarei mais trabalhar. E pelo andar dessa conversa e duas risadas seguidas, estamos nos dando melhor do que nos últimos anos das nossas vidas. – Não conseguiu reunir a coragem necessária para se desculpar por tantos erros.
— Na verdade, estou decepcionada com você. Como pôde machucar aquela pessoa?
— Roubaram a nossa casa!
— Não, esta não é mais a nossa casa. Estamos mortos. Não temos mais nada além de nós mesmos. Na verdade, temos menos de nós do que imaginamos…
Ele olhou para o chão, sentindo a consciência pesar.
— Sua luz está mais fraca do que no primeiro dia de morte.
— Eu estou mais fraca. Já não sinto como se fosse aguentar te segurar por muito mais tempo. Talvez seja melhor que você vá embora, e eu também, mas…. não juntos.
Sua luz começou a piscar, como uma luz prestes a queimar. Ela sentia-se cansada.
— Eu te amo, Babi. Não posso viver sem você, mesmo já estando morto – a luz parou de piscar e de diminuir, ficou estática, mas o peito dela estava mais claro do que o resto do corpo. Ele entendeu o que deveria fazer. – Você foi a razão pela qual eu consegui ser bem-sucedido na vida, e nunca te dei o valor justo. Nunca te agradeci, mas só agora tenho consciência disso. Obrigado por ter feito parte da minha vida. Se você quiser me deixar agora na morte e ser finalmente feliz sozinha, não poderei impedir. Você é livre.
A luz de Bárbara voltou a ficar intensa, e seu peito brilhou rosado, cheio de amor. Queria ter escutado aquelas palavras ainda em vida. Isso fora seu sonho desde o primeiro dia que se sentiu decepcionada com o casamento. Wellintom levantou-se da cadeira onde estava e abraçou a esposa, fazendo-a sentir dor, mas o amor exalado por ele anestesiou a sensação ruim. Luz e trevas se misturaram numa bagunça agitada, e as duas almas, por alguns momentos, se tornaram uma só. As luzes da casa piscavam com aquelas energias sendo fundidas, e ali estava todos os pedidos de desculpas que Tom nunca disse. Ali estavam todo o sentimento, todo o amor e todo o carinho. Desabafaram suas mágoas, choraram as tristezas e comemoraram as alegrias. Recordaram-se dos momentos bons e aceitaram os ruins. Amaram-se como há anos não faziam.
Quando separaram as almas, já não havia luz ou trevas, apenas almas translúcidas, leves e de peito rosado, pulsando o amor onde uma vez foi o coração. Ele acariciou o rosto da mulher, sentindo a pele que sabia não ser de verdade, sentindo o calor agradável daquela alma. Suspiraram juntos, permitindo que a paz se instalasse nas suas mortes.
Estavam finalmente livres, e logo ele, que nunca aceitara sair da rotina, estava pronto para qualquer aventura, desde que fosse ao lado da amada. Talvez poderiam começar tomando um avião sem saber o destino e viajando pelo mundo cegamente. Poderiam tudo, desde que estivessem de mãos dadas.
FIM