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Onde está Você?

A tristeza lhe tomava a alma, e as dores corroíam o corpo; sentia- se afogar em mágoas,

de seus olhos imagens turvas. Não desejava mais a vida, até o dia em que a viu.

Sua alma iluminava a todos, seu sorriso era um chamariz.

Por ela apaixonado, o mundo retomando as cores dentro do seu coração, já sabia que o amor era doce.

Pelo acaso separados por um tempo, que, para eles,

parecia mil anos, mas o destino os trouxe onde tudo começou.

E, como as flores daquele campo, o amor desabrochou.

– Ellen dos Santos –


UM

Era de tardezinha. Todos os dias, naquele horário, Marina ia à pracinha passear com o cachorro. O nome dele era Robert. E Robert gostava de deixar, no meio da grama, um sinal visível e malcheiroso da sua presença. Todos os dias.

Thiago também sentava em algum banco da mesma praça, todos os dias. E estava sempre lendo. Ou fingia que estava lendo. A mãe dizia: “Vá dar uma volta, menino; não fique o dia inteiro sentado na frente desse computador”. Não, ele não tinha nenhum cachorro. Mas tinha uma gata, Lilica. Ela não gostava de sair, pelo menos não com ele. Preferia dar seus próprios passeios noturnos pelo telhado, com outros gatos. Pra não se sentir muito sozinho, Thiago levava um livro. Já tinha reparado na moça que andava por ali às voltas com o cachorro. Um cachorro enorme, mas brincalhão, que não metia medo em ninguém. Isso era divertido.

Era difícil achar graça em alguma coisa. Mas ficava entretido com o cachorro. E se sentia interessado na moça. Muito interessado. Ela era jovem, cabelos castanhos, magra e tinha sardas. Os dois sempre se vestiam de calça jeans e camiseta, o uniforme da geração deles. Ele era moreno, não muito alto, magro e tinha um ar muito triste. Ele detestava se olhar no espelho. Achava-se horrível. Pra ajudar, estava ficando careca. E ainda não tinha 30 anos. Imagina se ele tivesse que usar óculos.

Já fazia alguns anos que ele se sentia doente. Não se lembrava de ter sido feliz ou despreocupado algum dia, desde a infância. Na escola não tinha amigos. Não sabia brincar, não sabia contar piadas, era só mais um corpo, misturado à massa enorme de pessoas em volta dele. A sorte é que os grandões o ignoravam. O que seria dele se, além de ser completamente sem amigos, vivesse apanhando dos maiores? Pelo menos disso ele tinha ficado livre.

Com os anos, conseguiu fazer um ou dois amigos, e estudaram juntos até o final do ensino médio. Queria muito que esses anos não acabassem, mas até que passaram bem depressa. Ele nunca trabalhou. Ficava sempre dentro de casa. Com o passar do tempo, percebia que não enxergava mais como antes. Estava ficando cego. Não contava nada pra ninguém; não queria incomodar a mãe, que era solteira, ganhava pouco e ainda tinha que cuidar de dois irmãos e uma irmã. Ele era um sujeito invisível dentro da própria casa. Vivia trancado no quarto. Não tinha coragem de reclamar de nada, tudo pra ele estava ótimo. Sabia que era um peso. Que era um fardo pra família. E os dias se arrastavam.

Pra agradar a mãe, começou a frequentar a pracinha perto de casa. E via a moça. Já sabia que o cachorro se chamava Robert. O nome dela, ele ainda não sabia como era. E era uma distração olhar pra ela todos os dias. Ela era tão diferente dele. Tão cheia de vida. Vivia sorrindo. Corria com Robert. Conversava com os outros frequentadores da praça. Parecia feliz. Ele não sabia o que era isso.

Muitas vezes, mais vezes do que gostaria, sentia o corpo lhe doer. Era uma dor surda, silenciosa, que o incapacitava pra fazer qualquer coisa. Não era uma dor aguda, daquelas que fazem a pessoa rolar de dor, mas doía-lhe, mais como um lembrete. Um lembrete que dizia: Você não é um cara normal. Às vezes, ele imaginava que se fosse ao médico e fizesse algum exame, podia descobrir o que tinha e ser curado. Ou aquela dor podia ser um câncer, que o estava corroendo aos poucos. Ótimo. Ia morrer jovem, não ia dar mais trabalho para a mãe. Ia ser uma boca a menos na casa. Quando pensava nessas coisas, desistia de pedir ajuda. Era melhor deixar tudo como estava.

Thiago via os dias nascerem e morrerem da janela do seu quarto. Via as pessoas trabalhando, namorando, se divertindo, vivendo. E ele era só um espectador passivo, assistindo de camarote à sua própria desgraça. A desgraça de existir.

Mas até que ele se sentia mais vivo, quando estava sentado na pracinha, com a brisa da tarde batendo no seu rosto, vendo os últimos raios de sol acariciando o topo das árvores, espiando a moça brincar com o cachorro. Ele esperava por isso. Era a melhor hora do dia. Nos dias que a moça não aparecia, ele se sentia frustrado. Sentia-se mais abandonado e mais solitário do que nunca. E o mundo voltava a ficar cinza.

 


 

DOIS

Marina observava o moço pelo canto dos olhos. Ele estava sentado num banco perto dela e parecia ler um livro com atenção. Marina não tinha conseguido ler o que estava escrito na capa, mas devia ser um livro muito importante. E o moço parecia ser muito inteligente. Tinha pena dele. Tão moço, tão sozinho, a pele branca de quem nunca vê sol, com o olhar mais triste que ela já tinha visto. Queria falar com ele. Mas não se atrevia. Robert também não lhe dava muito tempo para socializar. Corria pra lá e pra cá, e Marina corria atrás. Robert era muito manso, jamais avançaria em alguém, mas podia se afastar muito da praça e ir parar na rua. Aí podia ser perigoso.

O cachorro não era dela, era da irmã. Só que a irmã trabalhava, e não tinha tempo de sair pra passear com ele. O veterinário tinha dito que Robert precisava de espaço. Precisava correr ao ar livre. Aí, de tardezinha, Marina o levava pra pracinha. Ela também gostava de sair um pouco, quebrar um pouco a rotina. Casa, escola, escola, casa, televisão, internet, era muito monótono. Tinha as amigas. Mas as amigas também eram chatas. Falavam das mesmas coisas. Escola, namorados, roupas.

Marina preferia pensar no moço triste, que todos os dias sentava-se em um banco da pracinha pra ler. Gostaria de conhecê-lo. Saber que livros ele estava lendo. Marina gostava muito de ler. Já tinha lido vários livros na biblioteca da escola. As amigas riam dela. Procura no Google, boba, era o que elas diziam. Mas quando ela lia, vivia em outros mundos. Outras vidas. Era interessante. Melhor que novela. A mãe era noveleira. O pai preferia futebol. E a irmã não saía do cinema. Marina tinha que fazer alguma coisa diferente. Então lia. E o moço da praça também lia. O moço que, quando ela passava, parecia afundar mais ainda a cara no livro. Ou era só impressão dela?

Um dia, Robert estava agitado. Não queria obedecer de jeito nenhum. Cheirava tudo. Devia ter passado algum gato por ali. Até latiu. Marina estranhava. Não é dele, fazer isso, pensava. E farejando o chão e o ar, Robert foi parar justamente nos pés de Thiago. Cheirava tudo com atenção. Pareceu ficar satisfeito com a inspeção, e enfim sentou-se do lado dele, com aquele ar tranquilo de sempre e a língua de fora. Marina se aproximou muito envergonhada. Pelo menos era um motivo pra puxar conversa. Não podia desperdiçar a chance. Via o moço acariciando a cabeça do cão e conversando com ele. E Robert estava gostando. Isso era um bom sinal.

– O cachorro está atrapalhando o senhor?

– Que é isso, menina. Senhor? Eu? Pareço tão velho assim? – Mas estava sorrindo. Marina ficou mais envergonhada ainda.

– Não, não parece, mas é que o senhor parece tão sério. Ah, me desculpa, sen... você. Esse menino atrevido aqui é o Robert! Meu cachorro. O meu nome é Marina – estendia a mão pra ele meio desajeitada. Thiago achou engraçado.

– Sou Thiago. Vejo você sempre aqui, com o Robert. Ele gosta de passear.

– Ah sim, eu saio da escola, ajudo minha mãe e venho pra cá. Ele fica muito inquieto, quando a gente não passeia com ele. Precisa de espaço, cachorro grande, nosso quintal é pequeno.

– Entendo. Eu tenho uma gata.

– Ah, sempre quis ter gato, mas minha mãe diz que gato é traiçoeiro. E como é o nome da sua gata?

– É Lilica.

– Lilica? Que nome engraçado!

Era hora de ir. As árvores e o céu todo tomavam um tom meio alaranjado, anunciando que aquela tarde, como todas as outras antes dela, estava chegando ao fim. Marina e Thiago ficaram tristes. O papo estava interessante. Mas era melhor ir andando. Marina ousou:

– Você vem à pracinha amanhã?

– Sim, Marina, venho todos os dias. Pra ler.

– Sim! Eu percebi! Também gosto muito de ler.

– Ah sim? E que livro você está lendo agora?

– Estou lendo Crepúsculo, disse meio embaraçada. Deveria ter dito que estava lendo outra coisa. Com certeza, Thiago, que era tão inteligente, ia achar ridículo ela lendo um livro bobo daqueles. Que vergonha. Mas as palavras saíram sem ela pensar muito. E o estrago estava feito. Mas ele não pareceu perceber ou se importar com nada.

– Ah, adoro histórias de vampiros. Crepúsculo ainda não li. Mas leio livros de uma escritora… Anne Rice, você conhece? – Marina nunca tinha ouvido falar. – Posso emprestar.

Emprestar? Que maravilha! Marina não queria outra coisa.

– Sim, eu adoraria!

– Então estamos combinados. Amanhã, nós nos encontramos aqui e eu trago o livro da Anne Rice.

– Tá bem. Combinados. Vamos, Robert!

Robert era obediente. Levantou-se e lambeu a mão do novo amigo.

– Ele gostou de você.

– Também gostei dele. Mas não vou lamber a pata de ninguém. – Os dois riram. Marina estava encantada. Ele tinha um sorriso tão bonito. Os olhos ficavam até menos tristes quando ele sorria. Passou a noite inteira pensando nele. Onde morava, o que fazia. Será que tinha namorada? Oras. Ela já tinha dezoito anos. Nunca teve namorado. A irmã dizia que ela era uma criançona. Só faltava brincar de boneca, dizia. Marina não se importava. Os livros lhe ensinaram a sonhar com um príncipe encantado.

 


 

TRÊS

Daquele dia em diante, eles queriam que a tarde chegasse mais depressa. Para se encontrarem. Marina tinha lido o livro. Entrevista com o Vampiro.

– Gostou? Tem o filme. É com o Brad Pitt.

– Sério? Vou procurar pra baixar. Adorei o livro!

– Eu sabia que você ia gostar. – Thiago sorria.

Ele estava sorrindo com muita frequência, agora. A mãe já tinha percebido. E até tinha dito que ele parecia mais coradinho. Lá pelas quatro horas, ela sempre dizia: não vai pra praça hoje? Como se ele precisasse ser lembrado disso.

Conversavam muito. Thiago se divertia com Marina e sua conversa meio infantil. Ela falava da escola. Das amigas. Thiago já sabia até o nome dos professores dela. Da família. Ficava comovido com as pequenas inquietações adolescentes da amiga. Meus pais não gostam de mim, preferem minha irmã. Minha mãe comprou um sapato pra ela e não comprou pra mim.

Ele ansiava por esses encontros. Via a vida pelos olhos inocentes dela. Marina queria parecer inteligente. Comentava as notícias que via na televisão. Não que Thiago se importasse muito com as notícias, mas gostava de ver as coisas pelo ponto de vista da moça. Mas ele nunca ria dela, nunca a corrigia. Prestava muita atenção em tudo que ela falava, e parecia levá-la muito a sério. Marina adorava isso. Sentia-se tão adulta. Mais adulta que a irmã. Tenho certeza que Rebeca não tem um amigo assim, pensava.

Várias vezes, Marina pensou em perguntar se Thiago não tinha Facebook. Ou Whatsapp. Mas não tinha coragem. Parte do encanto estava ali naquela praça, naqueles fins de tarde, naquele silêncio gostoso ao redor deles, enquanto Robert se julgava o detetive, farejando tudo e todos ao seu redor. Robert adorava Thiago. E até tinha ficado mais calmo. Tinha parado de tentar fugir feito louco, nem era mais tão estabanado. Como se fosse um cúmplice, Thiago pensava. Robert deitava-se aos pés deles e ficava acompanhando a dona com o olhar. Via as conversas inocentes e suaves. Os sorrisos e os olhares tímidos. E abanava o rabo, que era a forma que ele tinha para mostrar que estava feliz.

Mas Robert nunca deixava de dar sua contribuição para a beleza do jardim. Afinal, a grama precisa de adubo.

Thiago se sentia tão vivo. E nunca mais tinha se achado doente. Nem tinha sentido mais aquela dor no corpo, como antes. Tudo ao redor dele era brilhante. Ele pensava muito nela. E já sabia, dizia pra si mesmo que estava apaixonado por ela. Marina. É o nome de um anjo. Um anjo que veio pra me salvar, pensava.

Pensava em dizer-lhe o que sentia. Mas Marina era só uma criança. Tinha 18 anos. E ele era um sujeito de quase 30 anos. Ele não trabalhava. Era doente. Ele sabia que tinha depressão. A mãe lhe tinha dito. Andou até falando em levá-lo a um psicólogo. Mas desistiu, pois o dinheiro nunca sobrava pra pagar a consulta. Os olhos lhe falhavam. Muitas vezes só reconhecia Marina quando ela se sentava do lado dele no banco da praça. Ele não tinha nada para oferecer a ela. Só amor. E o que ela faria com o amor dele? Ela era tão comovente, tão romântica. Às vezes os seus olhares se encontravam. E Thiago sentia o coração disparar.

Este seu olhar quando encontra o meu
Fala de umas coisas que eu não posso acreditar
Doce é sonhar, é pensar que você
Gosta de mim como eu de você

Tinham escolhido um banco só pra eles, um banco afastado que ficava atrás de uma árvore. Dali podiam ver tudo que se passava, mas tinham privacidade. Não tinham combinado nada, mas Thiago sempre se sentava nesse banco, e Marina, quando chegava, ia direto pra lá. Robert também. Gostava da sombra.

Marina amava Thiago. Com toda a intensidade do seu coração de menina. Amava seus olhos tristes, o seu sorriso raro, a voz delicada de quem está se recuperando de uma doença. Gostava do jeito com que ele a tratava, como prestava atenção nela e em tudo que ela tinha pra contar, como se isso fosse a coisa mais importante do mundo. Olhava suas mãos longas e bem-feitas, delicadas como as mãos do seu professor de Filosofia. Mas o professor era alto, tinha barba, cabelo comprido e gesticulava muito. Parecia um trovão, quando entrava na sala. As meninas o achavam lindo. Mas Marina tinha medo do professor. Tão diferente do Thiago, pensava.

Thiago era tão doce, tão calmo. Estar com ele era a paz. E ela percebia, sentia que ele tinha alguma coisa diferente. Como se ele tivesse alguma doença. Mas ele nunca tinha comentado nada com ela. Não falava muito de si. Contou que morava com a mãe e os irmãos, falava da gata, dos filmes que tinha visto, das músicas que ouvia, dos livros. Mas nunca disse se tinha tido um amor. Ou se já tinha namorado alguém. Mas Marina não estranhava. Ela também não tinha nada pra contar a respeito.

Thiago não podia mais esconder o que sentia por Marina. E resolveu se declarar. Ele não sabia o que esperar disso. Como ela iria reagir. Talvez fugisse apavorada. Com certeza ela o recusaria. Mas ele percebia, no olhar dela, que alguma coisa ela também sentia por ele. Talvez, com Marina do seu lado, ele se sentisse forte para enfrentar o mundo lá fora. Mataria um dragão por ela. A sua princesa. Bem que ela merecia, pensava. Iria voltar a estudar, fazer faculdade. Procuraria um médico. Usaria óculos. Contaria tudo pra ela. Se ela gostasse dele, talvez lhe entendesse. Talvez aceitasse.

Uma coisa era certa: não podiam ficar como estavam a vida toda. Um dia, resolveu escrever-lhe uma carta. Thiago não era muito bom com cartas de amor. Nunca tinha escrito nenhuma. Mas inspirou-se nos seus mestres. Nos poetas. E naquela tarde, ao se despedirem, a carta ia dentro do livro que Thiago entregou pra ela.

Marina, já na rua, percebeu o envelope dentro do livro. E seu coração disparava. Ao chegar em casa, foi direto pro quarto. E leu emocionada a carta de Thiago.

Marina,
Se eu pudesse por um dia
Esse amor, essa alegria
Eu te juro, te daria
Se pudesse esse amor todo dia
Chega perto, vem sem medo
Chega mais meu coração
EU TE AMO.
Thiago.

Marina não entendeu muito bem tudo que estava escrito na carta. Mas adorou mesmo assim. Era como se a carta tivesse saído de um dos livros que lia. Bem que Thiago parecia um galã de romance, pensava. Mas a carta impunha-lhe uma dificuldade. Ela precisava responder. Nunca, nem que vivesse mil anos, conseguiria escrever palavras tão bonitas. Mas o principal ela sabia dizer: eu te amo.

 


 

QUATRO

Thiago passou a noite em claro, pensando em Marina. E em qual seria a reação dela ao ler a carta. Não conseguiu nem jantar. No outro dia, o estômago lhe doía. E o pior: aquela dor tinha voltado. Talvez tenha sido porque não dormi, pensava. Mas não. A dor estava ali, lhe dizendo que nunca tinha ido embora de verdade.

Thiago passou o dia preocupado e assustado. De tardezinha, sentia tanta dor que mal conseguia andar. Mas tinha que ir até a praça, custasse o que custasse. Precisava saber o que Marina lhe responderia. Sentia que sua vida dependia disso.

Chegou e sentou-se no banco de costume. Nada de Marina. Nada de Robert. E estava ameaçando chover. Ele precisava ir embora. Foi pego no meio do caminho pela chuva. E era bom pra ele que estivesse chovendo, pois assim a mãe não veria as lágrimas que lhe escorriam pelo rosto.

Amigo senhor, saravá, Xangô me mandou lhe dizer
Se é canto de Ossanha, não vá, que muito vai se arrepender
Pergunte pro seu Orixá, o amor só é bom se doer

Marina passou o dia ansiosa. Arrumou-se com cuidado para ir à praça. E naquele dia, ela não ia levar o Robert. Era o momento deles. Talvez se beijassem. Meu primeiro beijo, pensava. Penteava os cabelos, quando a mãe entrou no quarto.

– Filha, eu preciso conversar com você.

– Mas agora, mãe?

– Sim, agora mesmo. Dona Dirce me falou que você está se encontrando com um moço na pracinha. Que história é essa? – Era só o que faltava. Tinha que ser Dona Dirce, aquela fofoqueira. E agora?

– É mãe, eu conheci um rapaz. O nome dele é Thiago, e eu gosto dele. E sei que ele gosta de mim.

– Mas, minha filha, a gente não sabe quem esse moço é. Filho de quem, se trabalha, se estuda. Não é assim, minha querida, que funcionam as coisas. Esse moço tem que intenções com você? Será que ele quer namorar você firme? Vir aqui conversar com o seu pai?

Marina não sabia responder. Ela não pensava nessas coisas. Só sabia que amava. O resto se encaixaria. O mais importante eles já tinham conseguido. Abaixou a cabeça.

– É, minha filha. Seu pai resolveu que não é mais pra você ir lá na praça falar com esse moço. Se ele quiser, ele que venha aqui conversar com a gente. E não me desobedeça, porque eu não quero deixar você de castigo.

Marina olhou pela janela. Estava começando a chover.

 


 

CINCO

Passaram-se alguns meses. Marina tinha conseguido burlar a vigilância dos pais e voltar à praça. Mas nunca mais tinha visto Thiago. Robert também procurava sempre o amigo, farejava o banco e sentava na calçada desconsolado. Olhava para dona com seus olhos curiosos de cachorro. Marina se sentia desolada. Se ela tivesse ido aquele dia na praça, talvez se acertassem. Como ela não foi, Thiago devia ter achado que ela não queria ficar com ele. E resolvido não voltar mais. Quando pensava nisso, Marina nunca conseguia segurar as lágrimas.

Realmente Thiago achava isso. Mas ele estava lutando outras batalhas. Lutava pela vida, que queria escapar pelos seus dedos. Depois daquele dia, e da chuva, ele tinha ficado muito mal. Pegou uma pneumonia. Precisou ficar muito tempo internado. Pelo menos os médicos tinham feito todos os exames, e não, ele não tinha câncer. Mas a pneumonia acabou com ele. A dor no corpo era sintoma da depressão. Já estava em tratamento com um psiquiatra. Nos olhos, ele tinha muitos graus de miopia. Mas não ia ficar cego por causa disso. Era só usar óculos. Ele até achava engraçado. Nada daquilo que sentia era o bicho-papão, a sentença de morte que ele temia. Tudo tinha conserto. Porque ele não tinha pensado nisso antes? Não teria desperdiçado tantos anos de sua vida chorando trancado no quarto.

O tratamento ajudava. Mas não o bastante. Thiago sentia a alma ferida. Pensava muito em Marina. Um dia se abriu com o psicólogo. E o psicólogo convenceu-o a voltar à praça. Mas já se passou tanto tempo, pensava. Ela nem deve mais ir lá. Bonita do jeito que é, deve ter arrumado um namorado. Era tarde demais pra ele. Mas foi na praça mesmo assim. Era uma tarde de outono. As folhas que caíam traziam ao lugar uma beleza triste. E o coração de Thiago estava apertado. Em tudo, ele via o sorriso dela. Via, com os olhos da alma, Robert pulando e brincando naquela alegria de cachorro. Mas ele estava ali sozinho. Ainda se sentia fraco. Sentou-se no banco. No banco deles. Tinha as mãos vazias.

Thiago voltou a frequentar a praça todas as tardes. Quando ouvia um cachorro latir, seu coração disparava. Mas Marina não aparecia. Passaram-se duas semanas. Logo ele não poderia mais voltar lá naquele horário, pois estava mandando currículos. E já tinha ido a duas entrevistas de emprego. A mãe se sentia tão feliz por ele. Ele estava reagindo.

Marina tinha lido e relido a carta. Já tinha entendido que era a letra de uma música. Falando de Amor, do Tom Jobim. Bossa Nova. Sim, era a cara do Thiago. A mesma voz calma, sussurrada. Mas que falava de amor. Um amor que era só dela. E que tinha ido embora, do mesmo jeito calmo que chegou. Quando saía pra passear com Robert, não ia pra praça mais, porque não suportava as lembranças. Ficava andando pelo quarteirão. Mas ia triste. Como era difícil, meu Deus.

Era a última tarde de Thiago na praça. Um domingo. Segunda-feira, ele ia começar a trabalhar. Numa loja. Estava quase animado. Ia conhecer pessoas novas, ia ganhar dinheiro, voltar a estudar, ia entrar na roda-viva do mundo. Mas, sem Marina, suas vitórias eram amargas. Sem ela, tudo perdia o brilho.

Coitado do homem que cai no canto de Ossanha, traidor
Coitado do homem que vai atrás de mandinga de amor

Estava sentado no banco de sempre. Aproveitava o sol e ouvia as crianças brincando no parquinho. Tinha tirado os óculos e estava com os olhos fechados, tentando enxergar o mundo através de uma cortina vermelha. De repente, sentiu algo lamber-lhe a mão. Levou um susto. Era Robert!

E ela vinha atrás. A visão mais linda do mundo. O sol brilhava atrás dela, como se fosse uma moldura. Uma moldura digna de uma deusa. Ah, ele a amava. Do mesmo jeito. Poderiam se passar mil anos. Ele nunca deixaria de sentir o que sentia. Ela chegou meio tímida. E sorria. Estava com o rosto vermelho. Tinha um livro nas mãos; era o último livro que ele tinha emprestado pra ela, ele se lembrava disso. Onde ele tinha deixado a carta. Ela estendeu o livro pra ele, em silêncio. O rosto de Thiago era só expectativa. Mas também não disse nada. Pegou o livro com um ar sério.

– Vem, Robert.

E lá se foram os dois, uma visão fugidia do paraíso. As folhas rodopiavam no chão, em uma dança desajeitada. Thiago sentou no banco. Precisava se recuperar do baque. Folheou o livro meio distraído. E algo caiu no chão. Era uma carta. Thiago sentiu o coração parar de bater. Abriu o envelope com cuidado. E via, em uma letra redondinha e caprichada, um endereço de e-mail e um número de telefone. Mas tinha algo mais. A carta dizia:

Thiago,
Eu quero ficar com você. Com mais ninguém. Eu amo você de um jeito que nunca amei ninguém antes. E eu acredito que nós vamos ser muito felizes. Tenho fé nisso.
Não desiste de nós. Nós ainda vamos fazer muitas coisas juntos. Vamos escrever a mais linda canção do mundo. Fica comigo amor, fica. Por favor.
Eu seria capaz de pedir de joelhos. Sem você nada vale a pena. Nada tem valor. O mundo só é bonito quando você está nele.
Eu estou morrendo de saudade de você. Rezo pra que você esteja bem.
Eu te amo e te espero. Eu prometo. Vou ficar do seu lado.
Marina

Thiago saiu da praça sorrindo. Levava no coração a alegria secreta do homem que se sente amado. E sim, quando chegasse em casa, ele iria ligar pra ela. A vida dele tinha sido um longo inverno. Mas Marina era a primavera. Agora ele também sabia o que era a felicidade.

FIM

 

 

As cartas de Thiago foram colhidas das letras das seguintes músicas:

Este Seu Olhar – de Antônio Carlos Jobim;
Falando de Amor – de Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes;

Canto de Ossanha – de Baden Powell e Vinícius de Moraes.

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