É tudo preto no branco!
Não tem época certa. Amores não veem raça; olham o que tem por dentro.
A aura é o que importa, o que vale é o sentimento.
A opinião alheia nos afronta, machuca-nos por dentro, mas nos tornamos fortes quando sabemos o que somos.
Seu veneno não nos envenena, quando sabemos o que há por dentro.

(Ellen dos Santos)

 

Cidade do Cabo – 1858

 

— Força, Aniek. Só mais um pouquinho, meu amor. Você consegue!

Akin seca o suor que escorre pelo rosto de sua amada. Os longos cabelos loiros estão espalhados pelo ombro e pelo ventre rijo, enorme, em trabalho de parto há mais de dez horas.

— Ahhhhhhhh — ela se joga para trás em mais um urro de dor. — Não aguento mais, Akin. Não aguento… — A pele muito alva de Aniek está recoberta de sangue, não há mais tecido limpo, nem água para lavar o vermelho que se mistura ao líquido viscoso que jorra de seu corpo.

— Tô vendo a criança, não desiste agora, a gente consegue.

Ele incentiva sua mulher, a cabeça da criança já desponta, mas trava e não emerge para a luz do mundo. Akin limpa o próprio suor e clama aos orixás para que seu filho nasça logo, cessando o sofrimento da jovem. Mas o impiedoso tempo vai passando e, entre um espasmo de dor e outro, Aniek começa a desfalecer numa palidez ameaçadora; seus olhos azuis, injetados de sangue, começam a perder o brilho. Talvez fosse melhor não se amarem tanto, talvez fosse melhor respeitar a tradição e ele, um preto nativo da África, não ter se apaixonado por uma branca holandesa.

Enquanto pensa numa forma de resolver a situação, Akin sente-se mal por vê-la ali, ensanguentada e cansada, estirada sobre a manta colorida feita por sua avó, no chão da cabana improvisada. Desesperado, pensa nas vezes em que espionou a mãe e as outras mulheres de sua tribo dando à luz, considerava um momento mágico. Por vezes pensou em como poderia participar, aprender as técnicas, ajudar as crianças a virem ao mundo, mas não era comum os homens participarem deste momento, até as pessoas brancas invadirem sua amada África e trazerem os homens vestidos de branco, a quem chamam de médicos. Apesar de nunca ter tido contato direto com estes profissionais, os admirava de longe.

Seus pensamentos são interrompidos por um grito que rompe a madrugada fria. Lá fora os primeiros raios de sol logo começarão a surgir. Aniek ajeita as pernas enquanto olha firme nos olhos de seu amado, como se procurasse alento.

— Vamos, força! Esta vai ser a última, vamos! — Ele a encoraja.

E sob um potente e último urro, Aniek resgata do seu íntimo uma força descomunal, enquanto a criança rasga seu ventre e ganha o mundo num choro fugaz. As mãos fortes de Akin acolhem o bebê, e seus olhos, tomado pelas lágrimas, não conseguem acreditar no que veem: uma menina, a mais linda que já viu em sua existência; fruto do amor que sente pela mulher guerreira que agora respira sôfrega, depois de lutar bravamente e tanto sofrer.

Voltando do torpor, Akin corta rapidamente o cordão umbilical e limpa com destreza a filha. Utiliza um tecido de fina seda, improvisado do vestido de festa de sua mulher e reservado com todo cuidado para este momento. A pele do bebê começa a se mostrar, em perfeito contraste com a tez negra de suas mãos. A criança berra para o mundo e Aniek estica os braços, implorando para vê-la.

— Akin, como é…? Me dá, eu quero ver.

— Uma menina. Uma deusa, meu amor, uma deusa!

Ele entrega a criança para a mãe, enquanto termina os cuidados com o corpo dolorido de Aniek, depois do trabalho de parto sofrido. Contempla a jovem mãe de apenas dezesseis anos, que se transformou numa bela mulher, forte, valente e guerreira. Akin, agora, agradece aos orixás pela rebeldia de ter espionado tantas vezes as mulheres que sua mãe ajudava a parir, sem medo e sem pudor. Seu coração vibrava em ver momento tão único e, agora, fez brotar do seu íntimo a coragem necessária para manejar com sabedoria e orgulho, no auge de seus dezenove anos, o nascimento de sua própria filha.

Horas depois, a criança que se chama Thea — presente de Deus — repousa, de barriga cheia, no peito da mãe. O sol brilha no horizonte e Akin prepara o pap com o biltong, reservados há dias para este momento. Aniek, faminta, se esbalda no pequeno prato que lhe é servido por seu amado. Já Akin come pouco, sabe que por um tempo não poderá sair para encontrar comida, não deixará suas princesas sozinhas enquanto Aniek não estiver forte o bastante para conseguir defendê-las, se for necessário.

O tempo passa ligeiro. Dois meses depois, Aniek já está totalmente recuperada do parto. O orgulho em ver a filha crescer e a esperança de salvar sua família, lhe fortalecem a cada dia. A pequena Thea cresce e adquire cada vez mais a semelhança da mãe; sua pele que mistura o ébano e o alabastro, reluz sob as manhãs de sol e eles, finalmente, regozijam-se em dias de liberdade e alegria.

O inverno castiga e a ansiedade começa a avizinhar o pequeno abrigo da família, lembrando que em breve chegará a hora de partirem. Duas luas depois preparam as malas com os poucos pertencentes que possuem. O vento faz barulho lá fora e as ondas do mar batem com força nas rochas. Aniek acerta as bolsas para que não comprometam a jornada da longa caminhada; prepara com cuidado as provisões de alimentos que Akin conseguiu fazendo pequenos serviços na construção do farol, no topo do promontório de Cape Point.

Quando tudo está pronto, eles cobrem a pequena Thea para que durma tranquila e aquecida, prezam por seu descanso. Quando Akin se deita ao lado de Aniek, imediatamente seus corpos se acendem. Trocam beijos molhados, se fundem em desejo louco e prazer insano. O brilho das estrelas, que atravessa os furos do teto da pequena cabana, iluminam as camas improvisadas no chão, enaltecendo o bailado em preto e branco que rompe a madrugada. Suas peles se fortalecem no encontro de almas. Saciados, ela sussurra baixinho:

— Eu conheço meus pais e meus irmãos, meu amor — se ajeita recostada no peito de Akin. — Eles devem estar nos caçando. Vão farejar nosso paradeiro e nunca vão nos perdoar. Ainda bem que amanhã prosseguiremos com nosso plano.

— Aniek. — Ele segura o rosto dela entre as mãos para que olhe em seus olhos — tenho tanto medo de algo acontecer com vocês, às vezes eu me pergunto se deveria ter lhe trazido para cá, ter lhe tirado do conforto…

— Nunca diga isso, nunca! — Olha para o amado com reprovação. — Eu estou aqui porque quero. Minha família não sabe amar, mas eu sei. Eu amo você, Akin! — Percorre o rosto do companheiro com as pontas dos dedos.

— E eu te amo desde o primeiro momento em que te vi, mas nós burlamos as regras, um preto pobre não pode se apaixonar pela donzela branca… — O coração de Akin bate ainda mais forte com a dor da insegurança.

— Não fale mais isso. — Tapa os lábios do amado com a palma das mãos. — O importante não é a sua cor ou a minha, ou o dinheiro que você tem. O importante é saber amar, como nós sabemos. — Mergulha a narina no peito de Akin para sentir o cheiro da pele de seu homem. — Dará tudo certo, não dará?

— Sim, minha amada. Dará certo de um jeito ou de outro… — Ele afaga seus cabelos.

Abraçados, dormem o sono dos justos, descansam profundamente, até partirem na alvorada fria rumo a um novo futuro, em algum navio que os levará para longe dali. O cheiro de fumaça do fogo ateado à pequena cabana já não incomoda. Aos poucos o fogaréu vai deixando de iluminar o caminho, para dar lugar à luz do sol de um novo dia. Akin e Aniek partem esperançosos, sem olhar para trás.

O entardecer chega rapidamente e a caminhada rende bastante. O casal, exausto depois de desbravar encostas de um terreno rochoso, permeado pela vegetação de Cape Point, decide descansar sob a rocha de uma encosta que ladeia o mar. A visão do gigante azul ajuda a tornar a caminhada mais fácil, motivo de planos que agora começam a se realizar.

Akin sorri; sabe que em breve alcançarão o porto e que seu amigo Daren estará à espera para embarcá-los no primeiro destino que conseguir. Pensa no quanto serão felizes em terras novas, talvez na Índia ou no Brasil. Para eles não importa o local, pois sabem que qualquer destino será melhor que a perseguição da família de Aniek, que nunca aceitou a relação dos dois. Akin deixar seus pais e irmãs também não está sendo fácil, mas eles foram mais tolerantes e entregaram aos orixás a felicidade do casal.

Já Aniek pensa no quanto estará feliz e protegida por seu amado, livre das garras e da tortura de sua família. Quando sua mãe descobriu a relação com o rapaz negro, a vida de Aniek virou um inferno. Foi proibida de sair de casa, de ir aos chás nas casas das amigas, ficou dias e dias trancada em seu quarto. Foi xingada e humilhada por seus irmãos, mas resoluta em defender seu amor pelo rapaz, fugiu antes que eles percebessem sua gravidez já aparente. A tia de Akin, cozinheira da casa, deu suporte para a fuga e, durante os meses de gestação, eles se abrigaram nas montanhas à beira mar, bem longe do casario suntuoso e dos vinhedos de sua família.

Antes que o sol descanse no poente, Akin sai para pegar algumas toras para fazer uma fogueira que os aqueça durante a noite, enquanto Aniek embala Thea que acaba de se alimentar em seu peito. Ela contempla o azul do mar, avistando o porto logo à frente. Vários navios estão atracados e ela tenta descobrir em qual serão embarcados como fugitivos errantes, mas dignos de um novo lar. A brisa fria sopra seus longos cabelos, e ela aninha ainda mais a filha, para que não sinta o mesmo arrepio de frio que acaba de sentir.

Pouco tempo depois, ela ouve vozes masculinas e, com o coração disparado, anseia voltar ao abrigo, porém avista cavalos e um homem sendo arrastado por eles. Aniek não consegue se distanciar do desfiladeiro, seus pés travam fincados no solo de pedregulhos ao reconhecer Akin, que está todo ensanguentado sendo arrastado pelo chão. Ela agarra sua filha e pede aos céus para que a pequenina não chore, enquanto são cercadas pelos três cavalos e seus cavaleiros.

— Ora, ora… — O primeiro a apear é Coen, seu pai, seguido de seus irmãos. — Finalmente encontramos os dois pombinhos…

— Nossa irmã tá se vestindo de homem, agora — gargalha Hein, seu irmão caçula. Onde já se viu uma dama com estas vestes? Cadê seus vestidos de gala?

Ela sabe que eles jamais aprovariam o fato dela adotar calças e botinas, pelo conforto e pela praticidade na fuga. Eles também não sabem que a menina frágil e fútil, que só se preocupava com vestidos de baile, não existe mais. Também não conhecem a mulher forte que nasceu junto com sua filha, disposta a tudo para protegê-la.

— Mas ela é uma dama? Não foi ela que abandonou a família pra virar vagabunda de nego? — Berg, seu irmão mais velho desfere um chute nas costas de Akin que está imobilizado, com as mãos, os pés e a boca amarrados. Ele urra de dor e se contorce, enquanto o coração de Aniek parte ao meio.

— Vão embora daqui, nos deixem em paz. Esqueçam que eu existo! — Ela grita ensandecida, olhando para os homens que agora estão bem próximos dela.

— Esquecer? — Berg, o mais revoltado, abandona as rédeas do cavalo. — Esquecer que viramos piada na sociedade, irmãzinha? Esquecer que você manchou de preto a honra branca da nossa família? — Ele segura o chapéu caminhando em sua direção, enquanto um vento forte sopra do oceano e a tarde começa a partir.

— Foi amor. Como vocês não conseguem entender que é só amor? — Aniek grita tentando convencê-los, abraçada a Thea. — O amor não tem cor, meus irmãos. Por favor, nos deixem em paz, por favor! — Implora e começa a chorar.

— Cala a boca — Coen solta a mão com força na face de Aniek que sente o rosto arder — e por que você não amou sua família de sangue? Por que não amou seu pretendente a marido, que ofertou um ótimo dote? Não, você largou tudo por este animal, por este ensaio de gente. — Cospe em Akin que está de joelhos.

Nisso Berg e Hein seguram o destruído Akin e o fazem ficar de pé. Aos poucos tiram suas amarras, seu nariz está estourado, as roupas viraram farrapos e mesmo banhado no próprio sangue, se mantém altivo com a força que ainda lhe resta, olhando fixo para sua amada Aniek.

— Não bata em minha mulher! — exige.

— Sua mulher? — gargalham. — Quer dizer que o preto acha que tem direito a uma mulher branca? O que você merece por mexer com minha filha é isso aqui, maldito! — Coen soca o estômago de Akin que cai de joelhos, mas logo é levantado por Hein. — Levante para morrer como o animal que você é.

Desesperada, Aniek tenta correr até seu amado, mas neste exato momento Thea começa a chorar. Eles interrompem a violência contra Akin e se voltam para ela, que agarra a filha e encosta firme em seu peito.

— De onde vem este choro? — Coen começa a caminhar em sua direção. Seus olhares se cruzam e ela sente o ódio que exala daquele que um dia foi seu herói. Ele se aproxima e retira com brutalidade a pequena manta que aquece Thea, a toma e a ergue com a duas mãos.

— O que significa isso? — Ele se volta para Aniek. — Quem é essa criança?

— Me dá, papai, me devolva!

— Não me chame de pai — a empurra com tamanha força que Aniek cai de costas no chão. Enquanto isso seus irmãos se aproximam da pequena criança, levantada para o alto, sendo avaliada pelo avô que não a ama. Os últimos raios de sol iluminam seu corpinho, mas o vento frio da tarde a faz chorar ainda mais, exibindo sua nudez ao vento.

— Me dê, é minha, é minha! — Aniek se levanta rapidamente e corre até o trio, pula tentando alcançar e retomar Thea. — É minha filha, papai, sua neta! Sobrinha de vocês, seus ingratos. Devolvam minha criança.

O pai, incrédulo, avalia um pouco mais a bebê e depois a joga com rispidez nos braços de sua filha. Seu olhar é de nojo e ódio. Ele cospe no chão e limpa as mãos em seu longo casaco, como se a criança as tivesse sujado. Seus irmãos também cospem.

— Eu não tenho filha, muito menos uma neta macaca. Se eu soubesse que você me daria tanta decepção, não teria comemorado seu nascimento, Aniek. Eu te matava no ninho, maldita!

O velho Coen começa a tossir sem parar levando as mãos ao peito, logo Hein lhe oferece água e o ajuda a se sentar no chão. Berg domina os cavalos que estão desacomodados em meio à cena. Neste momento, Akin se levanta e sai correndo ao encontro de Aniek. Eles se abraçam e se olham no mais profundo olhar que já trocaram.

— O combinado, o combinado, você vem?

— Sim, meu amor, o combinado.

Eles correm desesperados da forma que é possível. Akin praticamente se arrasta, enquanto Aniek segue à frente segurando firme a pequena Thea. Quando chegam ao caminho com poucas pedras à beira do precipício, um tiro os faz parar. Eles se viram, Coen está se aproximando com sua velha arma em punho.

— Parem, parem agora. — Akin puxa Aniek para si e toma Thea de seus braços, segurando a criança com força.

— Nos deixe, Sr. Coen. Nós vamos embora deste país, nunca mais vocês saberão de nós. Só nos deixem sair agora, não temos nada além de nós três.

— Por favor, pai! Por favor eu te imploro, nos deixe sumir daqui…

Ela observa que seus irmãos aparentam uma calma ensaiada. Um acendeu um cigarro enquanto o outro enrola um arbusto no dedo. Ela não consegue enxergar os olhos de seus familiares, cobertos por imensos chapéus. O sol é apenas um pequeno clarão, já se põe do outro lado do mar, no lugar onde ela e seu amor sonharam em ser felizes.

Aniek sente um frio gélido percorrer todo seu corpo quando encontra os olhos de Akin. Eles estão firmes e resolutos, logo se dão as mãos num gesto firme de confiança. Devagar vão afastando os pés, de costas para o mar, enquanto o trio caminha na direção deles. Thea já não chora, seus olhinhos negros estão abertos, mas tranquilos, enquanto sua cabecinha se abriga no peito do pai.

— Nem mais um passo ou eu atiro!

Mas Akin e Aniek já não se importam com as ordens do velho Coen. Já decidiram e cumprirão o combinado. Ele sorri para ela:

— Eu te amo, Aniek, sempre e para sempre.

— Eu te amo mais, Akin. Até breve.

Eles sabem que o velho desfiladeiro está mais próximo do que nunca. Mais alguns passos são dados, até sentirem que não há mais espaço de segurança. Outro tiro ecoa no ar e Aniek é atingida no ombro. Seu corpo magro reage sob o forte impacto e ela titubeia, mas é segura pelas mãos fortes de Akin.

— Agora!

E, de mãos dadas, o casal e sua filha se entregam às pedras e à força do mar que os leva, finalmente, para a paz infinita.

 

***************************

Rio de Janeiro – 2017

 

— Vai sair por aí beber todas, Doutor André? Afinal, sextou! — Doutora Daniela fala enquanto vai tirando as luvas de borracha.

— Ah, minha amiga, depois de 16 horas de plantão, eu quero é cama. Foi pesado demais. — André tira a touca que protegia seus cabelos loiros encaracolados.

— Eu sei, tô sabendo que perderam uma né?

— Pois é, você sabe como isso me destrói… — Eles conversam e se olham pelo espelho enquanto lavam as mãos cumprindo o protocolo de assepsia.

— Mas pense em todas as outras mulheres que você conseguiu salvar hoje, nas crianças que você trouxe a este mundão.

— Sim, foram oito. Quatro meninas por quatro guris, assim quando crescerem não faltarão pares. — Os dentes alvos do doutor atravessam seus lábios num amplo sorriso.

— Como se para você faltasse algum par, né? Com estes olhos azuis que fazem o mulherio se atirar aos seus pés. — Daniela sorri para o amigo. Eles terminaram de fazer uma cesariana e partem para a área de repouso.

— Tô tranquilo, Daniela. O mulherio já me deu muita dor de cabeça. Chega de decepções. — Olha para o adiantado da hora no celular e vê que existem várias mensagens. — Bora, bom plantão. — Despedem-se com um beijo no rosto.

Doutor André, exausto, embarca no elevador lotado, que para no quinto andar e permanece quebrado. “Ah, não, esta sucata quebrou de novo… Pra quem só queria uma cama e ar condicionado para dormir…”

Seu corpo atlético não se incomoda em descer os degraus, apesar de ele detestar passar em frente à emergência do hospital público em que trabalha, pois o faz se lembrar da residência médica, enquanto ainda não optara em ser ginecologista e especialista em obstetrícia.

Já quase atingindo a saída se depara com os horrores do dia a dia num hospital público, em plena cidade maravilhosa. Há macas espalhadas até pelos corredores por causa da falta de leitos; o barulho do entra e sai de médicos e familiares incomoda. O cheiro de remédio se mistura ao de sangue e ao de corpos necessitados de um banho, mas assim que tenta cruzar a porta, André se depara com uma ambulância e sua equipe aflita, que traz um paciente. Ele enfia as mãos nos bolsos e se afasta liberando espaço no corredor para que corram com a maca, mas sua curiosidade de médico não consegue evitar que observe o traslado.

E, assim, a vítima passa por ele; não sabe se está lúcida, mas os olhos se mantêm abertos e, numa fração de segundo, seus olhares se encontram. Uma estranha centelha de reconhecimento parece invocar seus mais profundos sentidos. Um arrepio corre por suas veias e ele chacoalha a cabeça tentando afastar a estranha sensação. Olha para os paramédicos que correm com a maca e tenta continuar seu caminho, mas algo mais forte o atrai e, num ímpeto incontrolável, segura sua mochila com força e acelera os passos em direção à paciente.

— Uma grávida aqui, baleada. — O paramédico começa a passar as informações para o plantonista que André reconhece de pronto, é seu amigo Lúcio Cohen. — Sinais vitais estabilizados, nível de consciência oscilante, perda drástica de sangue.

André cumprimenta o amigo que, visivelmente, está exausto.

— A segunda hoje meu amigo, as balas estão atingindo sem pudor nossas mulheres e crianças.

— Eu sei, Cohen. Meu plantão foi difícil também, mas ainda dá para ajudar mais uma.

— E será bem vindo, ainda mais você que é o melhor especialista em partos de risco que conheço.

André observa a transferência da paciente para a maca hospitalar e as enfermeiras que se aproximam para executar o acolhimento. Automaticamente abandona sua mochila no balcão e lava as mãos e braços, logo calça as luvas. Ele se aproxima da maca e se depara com uma bela jovem, com a barriga já bem avantajada, agora de olhos fechados. Há muito sangue que mancha sua pele negra e se mistura ao enorme cabelo afro que exala um aroma de baunilha.

Junto com Cohen começa a checar as condições da paciente que abre os olhos e o encara. Novamente aquele momento estranho do corredor se repete. André se enxerga na negritude daquela íris e, para seu espanto, a jovem esboça um movimento, se mostra empertigada, mas logo desmaia; não há tempo a perder. Após as avaliações primordiais, os médicos convergem à ideia de que o parto se faz necessário e, horas depois, vem à luz uma linda menina cor de ébano, que grita para o mundo ouvir que se faz presente. André, tão acostumado a trazer meninas ao mundo, se encanta de um jeito especial por aquele choro, e o Dr. Cohen se emociona dizendo:

— Mais duas peles negras, como a minha, salvas. Obrigado meu amigo! — Eles se abraçam enquanto se despedem na área de descanso.

Oito dias depois, a jovem mãe é visitada todos os dias pelo doutor André na UTI. Foram necessárias várias cirurgias e transfusão de sangue para salvá-la, além de conterem uma infecção de difícil cura. A história repercutiu em toda mídia: “Jovem designer de joias sofre assalto e quase morre com um tiro no peito, no oitavo mês de gravidez”.

A criança já recebeu alta hospitalar e está na companhia dos avós maternos, que se apegaram ao jovem médico, depois de saberem da dedicação para salvar sua filha e neta. André percebe que em nenhum momento tocam na figura paterna, mas ele contém a curiosidade e não pergunta.

Na noite do nono dia, numa pequena folga em seu plantão, ele não resiste e vai à UTI fazer sua habitual visita à jovem. Cada dia sua curiosidade por ela aumenta, assim como a sensação de que a conhece e isso o incomoda bastante — “Tá ficando maluco de tanto ficar em hospital, André”.

Ele sente vergonha em apreciar a beleza da jovem que se destaca sobre os lençóis, mesmo numa situação de extrema fragilidade. Observa os aparelhos ligados e todos mostram que os sinais vitais estão ótimos, mas Aniele — como já se sabe o nome — não acorda. Num ímpeto, André toca os dedos da moça, cochichando bem baixinho…

— Acorde, por favor, acorde!

E, para sua surpresa, os mecanismos de checagem de sinais vitais se descontrolam. Rapidamente ele pega a mão da moça para conferir a pulsação, mas é surpreendido por grandes olhos que se abrem e o encaram. Por alguns segundos ambos permanecem assim, mergulhados em seus olhares. Ele tenta tirar a mão, mas ela a segura com força. Então a enfermeira chefe se aproxima e surpreende a cena.

— Doutor — diz sorridente.

— Shhhh, deixe-a reconhecer o local. Está acordando — sorri satisfeito para a enfermeira que rapidamente se retira. Um longo silêncio depois, ainda de mãos dadas, André arrisca a primeira palavra.

— Oi.

— Oi.

— Que bom que voltou, Aniele. Você sabe onde está?

— Não, está tudo tão estranho. — Ela olha ao redor.

— Você está no hospital, mas já está tudo bem.

— No hospital? Eu te conheço de algum lugar? — Ela pergunta assustada.

— Ah, creio que sim… Sou um dos médicos que fizeram o seu parto, não se lembra?

Ela balança a cabeça em negativa.

— Meu parto? Quer dizer que minha filha nasceu? Onde está minha menina?

— Calma, calma… Ela está ótima, é uma criança linda. Temos todo o tempo do mundo para contarmos, um ao outro, o que aconteceu até nos encontrarmos neste hospital…

 

***************************

Rio de Janeiro – 2019

 

Faz uma madrugada quente, e o mar de Copacabana continua seu bailado na areia branca da praia. O jovem médico segura sua xícara de chá enquanto aprecia o horizonte, que em breve terá o sol por companhia. Sempre foi assim. André, filho mais velho de quatro irmãs, possui desde criança um amor inexplicável pelo mar. Amor esse que só não é maior ao que sente pela mulher que acaba de lhe abraçar.

— Hei, vem pra cama, amor. Ainda está cedo para levantar!

Eles ainda estão cansados da noite de amor que passaram juntos. A vida de ambos se transformou depois que se conheceram no hospital. De lá para cá nunca mais se desgrudaram. Se casaram na noite anterior, apesar de já morarem juntos desde o quinto mês da alta de Aniele.

— Hum… Como é que recuso este convite?

Cinco minutos depois ambos estão nus na enorme cama de casal. Fazem amor mais uma vez, no reconhecimento de seus corpos que se encaixam com perfeição. Aniele não se cansa de olhar para o marido que tanto ama, e André não contém a felicidade de estar ao lado dela. Eles ainda insistem na ideia que já se conheceram em algum lugar, talvez numa balada, talvez na praia ou num cinema, mas nunca chegam a uma conclusão.

A pequena Thaís cresce com saúde e é amada demais por seu pai de coração, já que o biológico ela nunca saberá quem é. Foi gerada em um banco de sêmen, pois sua mãe não acreditava em relacionamentos. As famílias de ambos demoraram um pouco para entender este amor tão repentino, mas acabaram aceitando a felicidade dos jovens. Tempos depois, abraçados um ao outro, Aniele começa a rir.

— Você viu, amor? A cara das suas primas do interior ao verem um loirão desses casar com uma preta de cabelão crioulo?

— Eu? Não! Você acha que me importo com isso? O preconceito é delas… — Puxa mais sua amada para si.

— Eu observei, eu sei que ainda existe esta bobagem de cores entre as pessoas. Ainda bem que pelo menos não vão dizer que quero seu dinheiro, não é? — Ela o observa com carinho.

— Meu amor, deixe isso para lá… — Puxa seu rosto e beija sua face. — Isso não nos pertence, isso é bobagem da cabeça delas. Não fale mais isso. O importante não é a sua cor ou a minha, ou o dinheiro que você tem. O importante é saber amar, como nós sabemos.

— Dará tudo certo, não dará? — Aniele mergulha a narina no peito de André para sentir o cheiro da pele de seu homem.

— Estranho, parece que já ouvi isso antes — gargalham e André continua —, já deu certo. O amor atravessa o tempo, transforma destinos, liberta almas. O amor não tem cor, raça, credo… O amor é o que sentimos um pelo outro, e isso nos basta. Amor é vida!

 

FIM

 

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  • Neka Martins o conto com essa história de
    Amor linda me fez ouvir até sua voz contando impolgada o amor de Aniek e Akin, os olhinhos negros da filhinha Thea…Neka lindo vivi o conto viajei .. parabéns amiga…amei bjs

  • Fiquei com dor no coração por causa do Akin e da Aniek. rsrs Mas adorei o conto. Muito lindo. O amor verdadeiro não leva em consideração a cor. Parabéns.

  • Neka Martins o conto com essa história de
    Amor linda me fez ouvir até sua voz contando impolgada o amor de Aniek e Akin, os olhinhos negros da filhinha Thea…Neka lindo vivi o conto viajei .. parabéns amiga…amei bjs

  • Fiquei com dor no coração por causa do Akin e da Aniek. rsrs Mas adorei o conto. Muito lindo. O amor verdadeiro não leva em consideração a cor. Parabéns.

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