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Um Novo Amanhecer

O fato de não poder ser pai não o impediu de ser um homem de família.
Um amor crescente, que surgiu depois de muita angústia e dor.
Uma linda mulher e sua encantadora filhinha, foram ganhando seu coração solitário, e aquele homem sozinho novamente foi amado.
Pai ele se tornou, e soube o que é amor incondicional. Uma companheira do seu lado preservou e curou-se de todos os males.
Família ele formou, um amor surreal; para um novo sonho se preparou, em um novo amanhecer desabrochou.

– Ellen dos Santos –

 

João olhava pela janela do seu quarto. A paisagem era mesmo linda naquela época do ano. O pasto verde depois de um longo período de estiagem, os animais tranquilos, o sol começava a se pôr no horizonte. Logo ela estaria ali, com seus longos cabelos dourados e o perfume adocicado inebriante. Recolocou a camisa antes de sair em busca de algo para comer. O jantar seria servido em duas horas, mas a lida com os animais lhe dava fome.

– Que cheiroso, filho! Fizemos umas broas. Senta aqui pra comer – a mãe lhe sorriu. Ele sempre achara lindo o cuidado dela com os três filhos.

Saboreava a broa ainda quente com uma xícara de café fresco que Maria José colocou na sua frente. “Come mais, menino” ela sempre lhe dizia. Ela já devia estar aposentada, seus pais por vezes tentaram dispensá-la, mas a senhora se chateava por não ser mais útil na casa.

O barulho do carro o fez prestar atenção à porta. Ainda era cedo, Silvia deveria chegar para o jantar. Levantou-se da mesa para recebê-la, contava as horas para não mais precisarem se despedir no fim do dia. Faltava pouco, apenas três semanas para o casamento. O som dos seus soluços o alcançaram antes que ele a visse. O rosto branco estava avermelhado e marcado por lágrimas; uma angústia tomou conta de seu peito quando ela lhe abraçou forte.

Com a cabeça apoiada no ombro de João ela chorou; chorou toda a sua dor e frustração. Chorou por saber que não poderia seguir adiante, não depois do que havia descoberto. Não era culpa dele, ela sabia. Um defeito de nascença, lhe dissera o médico quando ligou desesperada, horas mais cedo. E mesmo sentindo seu coração se despedaçar não havia possibilidade de se casar.

Ela queria ser mãe, gestar uma criança, sentir seus movimentos, ver o corpo se modificar e a barriga crescer. Queria sentir tudo o que as amigas relatavam com tanto brilho nos olhos. Por mais que o amasse, ela não poderia abrir mão disso. Com o tempo, isso iria pesar entre os dois. Talvez ela o culpasse por não poder realizar seu maior sonho.

Depois de minutos abraçada a ele, tentando aproveitar ao máximo o tempo que ainda tinham juntos, ela o soltou. João acariciou o rosto bonito, limpou com delicadeza as lágrimas que ainda escorriam pelas bochechas.

– Mais calma, meu amor?

Ela não conseguiu responder, outra onda de choro a tomou. Sabendo da sua incapacidade de falar, estendeu a ele os resultados dos exames pré-nupciais que ela insistira tanto para que fizessem. João lia os resultados dela misturados aos seus. Tudo parecia normal, até encontrar seu teste de fertilidade. Sentiu o corpo esfriar e a cabeça rodar. O desespero da noiva fazia sentido agora. AZOOMERPIA: a palavra sozinha não lhe dizia nada, mas o quadro com os números referenciais era autoexplicativo, a quantidade de espermatozoides de um homem saudável seria de 15 milhões por ml, a dele era simplesmente zero.

– Não dá, amor. Não dá.

– Vamos falar com um médico. Deve ter alguma coisa que eu possa fazer.

– Não tem. Já liguei para várias clínicas em BH, passei o exame por fax, os médicos disseram que não há o que fazer – limpou as lágrimas mais uma vez –. É um defeito, uma falha, você nasceu assim. – Nenhum dos dois tinha condições de dizer mais nada, apenas se olharam de mãos dadas por um longo tempo. Sabiam o que aconteceria a seguir.

Na cozinha, Augusta Pontes chorava em silêncio o infortúnio do filho. Seu caçula sofreria duas vezes. Pela notícia da infertilidade e pelo abandono da noiva. Todos percebiam que Silvia estava desesperada para ter um filho; nos últimos meses não falava sobre outra coisa que não fosse o casamento ou a gravidez, que tentaria tão logo o padre os declarasse casados.

João depositou um beijo na mão da noiva, ela lhe acariciou o rosto. Nenhuma outra palavra foi dita. Eles trocaram um último abraço, e ela partiu, levando consigo o coração do jovem Pontes.

As semanas seguintes se arrastaram. Os pais o ajudaram a enviar cartas a todos os convidados do casamento comunicando o cancelamento. Coronel João Pontes não saiu da fazenda por muitos dias. A história espalhou-se pela pequena cidade de São João dos Milagres, e ele não tinha coragem de encarar aqueles que um dia foram seus eleitores. Não podia acreditar que o filho tinha sido abandonado às vésperas do casamento, que vergonha. Parecia que a desgraça havia se instalado em sua casa.

Com o tempo a dor se acomodou, lembrar de Silvia não doía tanto quanto lembrar da infelicidade de não poder ter um filho. Seus pais insistiam que ele deveria dar outra chance para o seu coração, mas romântico como sempre foi, nunca achou que encontraria o amor, tinha plena convicção que seria encontrado por ele.

Três anos se passaram, e uma rotina pacata se instalou na fazenda, sendo quebrada apenas quando seu pai decidiu voltar ao cenário político da região. A corrida eleitoral de São João dos Milagres voltava à violência do passado. Via a mãe rezando diariamente, pedindo proteção aos céus para o marido. Agora sozinha, tentava ocupar a maior parte do seu tempo nos cuidados com a casa. Sentia saudades de ter Maria José por perto; pelo menos teria alguém para conversar e, se não fosse possível esquecer os perigosos que enfrentavam lá fora, tinha alguém para rezar a seu lado.

Quando o telefone tocou na hora do almoço de uma terça-feira, ele sentiu que não era coisa boa. Jamais se esqueceria a voz trêmula da mãe anunciando o acidente do pai. Foram semanas até que ele se recuperasse das inúmeras lesões. Seu irmão apenas fraturou a perna, mas o Coronel jamais voltaria a ser o mesmo, preso a uma cadeira de rodas, era um arremedo de pessoa.

Duas semanas depois da volta do Coronel pra casa, a mãe estava esgotada. Sozinha, não era capaz de cuidar da casa e atender às necessidades do marido, que se recusava a sair do quarto e permanecia mal humorado.

Naquela quarta-feira eles tinham ido ao mercado na cidade, enquanto o irmão Toni permanecia fazendo companhia ao pai. Dona Augusta parecia aliviada, pôde sorrir por algumas vezes no caminho de volta para a fazenda. Depois de muito procurar, conseguira encontrar alguém para lhe ajudar na casa.

João pretendia conferir o gado quando escutou o som de um carro velho entrando pela viela de pedras que dava acesso à garagem. A curiosidade para conhecer a estranha que passaria a maior parte do dia em sua casa o fez enrolar alguns minutos na sala.

Viu a mãe abaixar-se e conversar com uma criança que segurava firmemente a mão da moça. Ele não esperava que fosse tão jovem, nem que fosse tão bonita. Mas isso não faria diferença. Desde que ajudasse sua mãe e não se importasse com o mau humor rotineiro do pai, ele estaria contente.

– Filho, esta é Raquel, a moça que eu disse que viria me ajudar com seu pai. E a pequena encantadora é Fernanda.

Ele sorriu para a menina que parecia estar um pouco assustada com o novo ambiente. Agachou-se para ficar na sua altura.

– Olá. Meu nome é João Júnior. Você é a Fernanda? – ela confirmou com a cabeça, o dedinho indicador da mão direita na boca – sabe, Fernanda, esse nome é mesmo muito bonito. Quantos anos você tem?

A garotinha olhou para a mãe, como que esperando autorização para conversar com o estranho. Raquel a incentivou, e ainda tímida mostrou os cinco dedinhos.

– Então você já é quase uma moça – brincou João – Gosta de cavalos? – novamente ela confirmou com a cabeça – Qualquer dia desses vou te levar para andar a cavalo. Se sua mãe deixar, claro – emendou rapidamente. – Prazer, Raquel, seja bem-vinda. – Levantando, cumprimentou também a mãe que havia ficado esquecida enquanto ele se derretia pela pequena menina de olhos pretos e brilhantes.

Ela apertou a mão que ele estendia com força e esboçou um pequeno sorriso. João sentiu os calos, provavelmente do serviço pesado. Realmente linda, pensou; forçou-se a se afastar dela, mas aqueles olhos o perseguiriam por todo o dia.

– Vou deixar vocês conhecerem a casa. Se precisar de alguma coisa estarei no curral, mamãe.

Dona Augusta sorriu para o filho e alisou os cabelos da menina. Explicou à jovem como dividiriam o serviço da casa, deixando-a a par da situação de seu marido e da pouca amabilidade do mesmo.

Raquel estava temerosa. Precisava tanto do emprego, não lhe restava muitas alternativas, a pequena cidade não ofertava muitas opções. Voltar para Belo Horizonte estava fora de cogitação. Já viera para a casa do pai no interior porque mal tinham o que comer. Tinha medo que a presença da menina no trabalho a prejudicasse de alguma forma, mesmo que a patroa garantisse que não. O estado do patrão também era assustador, a pouca amabilidade do Coronel era conhecida na cidade. Não queria que a presença de Fernanda fosse um problema, mas no fim não seria a primeira vez que perdia o emprego por não ter onde deixar a filha.

Durante o resto do dia, Raquel a auxiliou nos cuidados com a casa. Deixaram o jantar pronto e a cozinha limpa; a jovem conseguiu sorrir algumas vezes. A esposa do coronel era uma mulher espirituosa e gostava de falar. Em pouco tempo Raquel já conhecia toda a família Pontes através dos relatos da matriarca.

O momento mais tenso do dia foi quando o coronel foi trazido a contragosto para o jantar. Ela queria ir para casa com a filha, mas insistiram que elas ficassem mais um pouco. O coronel mal disse boa noite às duas. A refeição foi feita sem conversas, e se perguntava se sempre fora assim ou se o acidente era o responsável por tanta quietude. Fernanda parecia querer se esconder atrás dela. A filha sempre foi tímida e perder o pai tão pequena a havia quebrado. Por mais que tentasse, a menina jamais fora a mesma.

Lembrava-se dos difíceis dias que passaram na capital. Na busca incessante por um emprego, Raquel encontrou alguns, mas Fernanda não se adaptava na creche. Sofria, tinha febres altíssimas, chegou a convulsionar algumas vezes. Não havia infecção, nem qualquer sinal de doença. A febre era puramente emocional, e a mãe não tinha o que fazer, não podia ressuscitar o marido. Se pudesse voltar no tempo, teria o impedido de sair naquela noite; a pequena poderia esperar até o outro dia para comer seu chocolate em forma de tartaruga. Mas Rogério odiava ver a filha chorar, pegou o carro e foi em busca de um mercado que estivesse aberto.

Jamais voltou para casa. Os meninos, ainda adolescentes, o abordaram no estacionamento do supermercado. Ouviu-se de testemunhas que ele não reagiu; pelo contrário tentou acalmar os dois garotos e lhes ofereceu a chave do carro. Mesmo assim eles atiraram. O mundo de Raquel desabou. A filha passara os primeiros meses chamando o pai constantemente, em sonhos ou acordada. E mesmo agora, dois anos depois, ainda acordava muitas noites em desespero clamando por ele.

Olhar aquela família lhe fazia desejar ter de novo a mãe a seu lado. Dona Augusta era tão amorosa, João olhava com tanto carinho para os pais. Ela desejava isso para si mesma e principalmente para sua filha. Queria reconstruir a vida, dar à Fernanda o sentido de lar. Mas por ora sua maior preocupação era ter comida para lhe oferecer. O velho pai a acolhera quando decidiu voltar, mas o conserto de sapatos não rendia muito dinheiro; sozinho ele vivia com dificuldades, não podia lançar mais essa responsabilidade em seus ombros.

Após o jantar, agradeceu à família Pontes, prometendo estar de volta na manhã seguinte. Pegou a sonolenta filha nos braços e foi até o carro. Acomodou-a no banco de trás e deu a partida. O carro não pegou. Tentou mais uma, duas, três vezes, e nada. Sentia os olhos marejarem; “por favor”, suplicava. Estava cansada. Até a cidade eram muitos quilômetros de estrada. A filha dormindo, teria que carregá-la. Olhou para seu pequeno anjo, tão assustado. Pode sorrir, sua pequena parcela de felicidade em meio à dor e o desespero dos últimos anos.

Dentro da casa, João ajudava a mãe a colocar o pai na cama. Deu um beijo em na testa dele e recebeu um olhar enviesado. O coronel não costumava aceitar demonstrações de carinho dos filhos; ainda assim a mãe sempre os incentivava, e agora que não podia fugir, João aproveitava para irritá-lo.

– Acho que a Raquel está com problemas com o carro, filho.

– Vai levar a moça em casa, Júnior. Onde já se viu, ela ir dirigindo sozinha pra cidade a essa hora.

– Ela me parece uma mulher muito independente, papai.

– Essas modernidades – o coronel continuou ratiando.

João riu, depositou um beijo na cabeça da mãe e foi ajudar as duas no carro. Quando se aproximou, percebeu que ele já estava trancado e não havia sinal delas. “Ela foi a pé? Que louca!” pensava. Correu até a garagem. Elas não deveriam estar longe, não fazia cinco minutos que a ouvira tentando dar partida.

Como esperado, as duas não haviam chegado à porteira da fazenda quando as alcançou. Raquel tentou recusar a carona, mesmo sabendo que dificilmente conseguiria voltar ao trabalho na manhã seguinte se andasse tantos quilômetros com a filha nos braços.

Assim que João as alcançou, ele e Raquel trocaram poucas palavras pelo caminho. Os minutos se arrastavam, e os dois pareciam desconfortáveis com a situação. Tão logo entraram na cidade, Raquel lhe indicou a direção de sua casa.

– Eu venho te pegar amanhã às 7. Não dá pra ir andando com ela até lá. Se quiser posso conversar com um mecânico, meu amigo de infância. Ele dá um jeito no seu carro.

Ela agradeceu e levou a filha pra casa. João continuou parado enquanto ela abria o portão ao lado da lojinha do pai. A pequena lhe acenou, ele respondeu sorrindo. Não sabia se ela estava realmente acordada, mas devolveu o cumprimento. Na volta, ele estranhamente desejou ainda ter a companhia silenciosa das duas.

No dia seguinte, antes das 6:30 ele estava pronto; queria chegar no horário prometido. Sentiu o cheiro de café fresco vindo da cozinha, ao mesmo tempo que a risada de sua mãe chegou a seus ouvidos. Correu até lá e as encontrou conversando.

– Raquel? O que faz aqui tão cedo?

– Consegui uma carona – sorriu –, mas agradeço se puder me ajudar com o mecânico.

Ele confirmou e devolveu o sorriso. Acabou passando o dia fora; voltou para casa quando o sol já começava a se pôr. A pequena garotinha estava sentada no sofá da sala entretida com suas bonecas. Ele decidiu ficar com ela; Fernanda parecia sempre tão tímida, triste, lhe cortava o coração.

Alguns minutos e um pouco de atenção foi o suficiente para que ela se soltasse, e os dois logo estavam brincando como se tivessem a mesma idade. Em poucos dias era esperado para o almoço com ansiedade e passou a dedicar a ela alguns minutos no fim da tarde. Sempre gostara de crianças, os sobrinhos eram loucos por ele. Em todos os dias os olhos marejados de Raquel demonstravam como se sentia com a relação que criavam.

Seu coração de mãe se contorcia com a possibilidade de a filha estar transferindo para ele o amor que dedicava ao pai. Não queria impedir a aproximação dos dois. Fernanda estava mais feliz; ao mesmo tempo, Raquel não queria que a filha se apegasse a um estranho que poderia partir de suas vidas a qualquer momento.

– Posso levá-la pra cavalgar amanhã à tarde? – Perguntou baixinho, enquanto a menina estava distraída com suas panelas.

– Não sei.

– Prometo que cuido dela, ela gosta tanto. Já viu como os olhinhos brilham quando chega ao estábulo?

– Ela realmente gosta. Tudo bem, mas não conta ainda, ela fica ansiosa. – João sorriu concordando e voltou a sentar-se no chão para provar as comidas de mentirinha, feitas no fogão de caixas de papelão.

No dia seguinte Raquel trouxe na bolsa uma calça jeans e um sapato fechado, mas não lhe disse o motivo. Tinha medo de que algo acontecesse e João não pudesse levá-la ao passeio Não queria frustrar a filha sem necessidade. Deixou para contar apenas quando ele chegasse para busca-la.

Por volta de 4 da tarde ele apareceu na cozinha, deu um beijo na mãe e perguntou por sua companheira de montaria. Fernanda ficou tão feliz com a possibilidade de cavalgar, que soltava gritinhos; mesmo o coronel João Pontes riu da felicidade da criança. Raquel nunca tinha visto a filha tão contente em sua vida. Com a ajuda da mãe, rapidamente se trocou e correu ao encontro de João.

– Vamos tomar um café, Fefê. O sol ainda está forte.

Ela sentou ao seu lado, e ele lhe serviu uma xícara de café com leite e um pedaço generoso de bolo.

Os dois saíram de mãos dadas depois de terminarem a refeição. João colocou seu chapéu na cabecinha de Fernanda para protegê-la do sol, e mesmo longe suas vozes ainda podiam ser ouvidas. Raquel encostada no batente da porta observava aquele homem tão bonito e inteligente e ao mesmo tempo tão simples levar a filha para um passeio. E só podia agradecer a Deus por ter colocado aquelas pessoas em seu caminho.

João tentou caminhar devagar, no passo da menina, mas suas perninhas curtas impunham uma velocidade baixa demais, naquele ritmo chegariam ao estábulo com a noite alta. Decidiu carregá-la; nunca tinha pego Fernanda nos braços. Sempre brincavam de bonecas, ou ela lhe servia chá e bolos de mentira. Por vezes tivera que comer farelos de biscoito e elogiar a cozinheira.

– Que acha de eu te levar no colo até lá?

– A mamãe diz que já sou grande e que preciso andar, Júnior.

– Eu sei, pequena, mas acho que te carregar um pouco não tem problema, assim chegamos mais depressa.

– Então pode ser – concordou já erguendo os bracinhos finos.

Ele a ergueu nos braços como fazia com os sobrinhos quando eram menores, mas o que sentiu não foi nem de longe parecido. Quando a menina enlaçou seu pescoço e apoiou o queixo em seu ombro, sua vontade foi de protegê-la para sempre.

Ele a ensinou selar o cavalo e a ajudou a subir, montou atrás dela e posicionou as rédeas para que ela segurasse.

– Ele vai devagarzinho, não é?

– Sim, ele é manso, vai bem devagar.

– Você não me deixa sozinha, , Júnior?

– Não, eu não te deixo sozinha – tentava a todo custo não sentir o peso daquelas palavras. Como poderia prometer isso a ela? Mas ele o fez; ainda que Fernanda não entendesse a extensão daquela promessa, ele entendia e tinha plena consciência de que faria tudo o que estivesse a seu alcance para que ela nunca se sentisse só.

Eles passearam por alguns minutos, e logo ela estava tagarelando. Contou sobre a casa do avô onde moravam, falou sobre as bonecas e os ursos. Sobre a casa antiga e as amigas que moravam no prédio. Falou sobre o pai.

– Sabe, Júnior, a mamãe disse que o papai foi pra muito longe, que ele foi para o céu. – Ele sentiu um nó se formando na garganta. – Eu queria me lembrar dele – continuou. – A mamãe tinha muitas fotos do papai, mas ela ficava triste quando eu pedia pra olhar pra ele. Às vezes ela até chorava. – Ele não conseguia dizer nada. Apenas podia imaginar a dor que aquela jovem mulher carregava; perder o marido e precisar cuidar sozinha da filha não devia ser uma tarefa fácil. Depois de um longo período em silêncio, Fernanda voltou a falar – Você já andou de avião?

– Já sim, uma vez, mas faz tempo. – estranhou a drástica mudança de assunto.

– Quando você for de novo, me leva?

– Quer andar de avião?

– Quero ver meu papai. O avião vai lá no céu.

Novamente ele se calou, plantou um beijo no topo da cabecinha e recolocou o chapéu que ela insistia em tirar.

– Júnior – chamou novamente – Se eu tiver um outro papai, será que ele vai ficar triste?

– Acho que não, Fefê. Teu papai quer te ver muito feliz – ele temia os rumos daquela conversa. Sabia exatamente o que a menina queria, assim como sabia que ela não precisaria lhe pedir. Estava disposto a lhe entregar todo o seu amor, e isso o assustava.

Ao fim do passeio, Fernanda voltou falante. Pouco lembrava a garotinha tímida e silenciosa que chegara ali pela primeira vez.

– Obrigada por isso – agradeceu Raquel quando estavam na porta, pronta para elas irem para casa.

– Não foi nada. Ela é uma criança fácil – ele não conseguia desviar seus olhos dos dela; que mulher incrível ela era.

– Já está meio espaçosa demais – os dois riram, ela acenou e se afastou chamando a filha.

Novamente seu carro não funcionou, já era a segunda vez naquela semana. Sentia que em breve não teria conserto. Júnior agradeceu internamente, mais uma oportunidade de tê-la por perto, e como fizera diversas vezes desde que se conheceram, ele se ofereceu para levá-las para casa. Ela aceitou depressa, há dias sentia o coração falhar uma batida quando ele se aproximava. Mais do que o rosto bonito e o corpo definido, ela apreciava a sua gentileza, seu carinho com os pais, a paixão pelos animais. A forma como tratava sua filha também contribuía para que sua admiração por ele aumentasse de forma exponencial.

Se na primeira vez que ele as levou em casa o caminho foi feito em silêncio, dessa vez Fernanda tagarelou em boa parte dele. Até que, cansada demais, ela simplesmente dormiu.

Sozinhos, conversaram sobre amenidades o resto do trajeto. Algumas vezes João olhava a bela mulher ao seu lado. A pele cor de oliva parecia brilhar sob os faróis dos carros que vinham de encontro a eles. Ela era linda, ele já sabia. Percebeu quando pôs os olhos nela, mas naquela noite ela parecia ainda mais bonita. Desde o primeiro momento tentava manter alguma distância, mas parecia mais difícil a cada dia.

– Quer que eu a leve para você? Está pesada.

– Obrigada – sorriu.

Ela entrou na frente e abriu a porta, sendo seguida de perto. Raquel retirou as cobertas da cama, e ele colocou a garotinha com cuidado; a mãe cobriu-a e depositou um beijo em sua testa. João quis fazer o mesmo. Olhando-a assim, dormindo, parecia ser ainda menor, não mais que um bebê. Os cabelos escuros com grandes ondas espalhavam-se pelo travesseiro; as bochechas coradas pelo dia agitado, tão linda.

– Vou passar um café.

– Não precisa se incomodar, eu já vou indo.

– Não é incomodo nenhum, espera só mais um minuto.

– Seu pai não vai se importar?

– Papai se deita com as galinhas, deve estar no quinto sono.

Ele a seguiu até a cozinha pequena. Era uma casa simples, com móveis surrados, mas muito bem cuidada. Tentava imaginar o quanto ela precisava se desdobrar para dar conta de tudo, trabalhar, cuidar da própria casa, da filha. Era mesmo uma mulher de fibra.

Ela colocou a garrafa térmica azul sobre a mesa, junto com duas pequenas xícaras e uma travessa com biscoitos de sal amoníaco, que aprendeu fazer com a mãe. Conversaram por mais de uma hora. Não imaginavam quanto assunto poderiam ter em comum. Ela tentava ignorar seu coração, que descompassava a cada vez que ele lhe olhava com aquela intensidade.

João por sua vez não conseguia parar de olhar a bela mulher à sua frente. Descobriu traços que antes passaram desapercebidos, como uma pequena pintinha redonda sobre a sobrancelha direita e uma minúscula cicatriz no queixo, talvez de alguma aventura na infância. Desde o fim do seu noivado ele não se interessava por uma mulher dessa forma. Raquel lhe atraia de diversas maneiras. Era mais do que a beleza, sua voz trazia calma ao seu coração.

A companhia de João era fácil, estar ao lado dele era reconfortante. Raquel não esperava encontrar outra pessoa em sua vida. Quando perdeu o marido conformou-se com a viuvez e uma vida sozinha. Era mãe acima de qualquer coisa, e sua prioridade era manter a filha segura e feliz, mas sentia falhar a cada vez que via a tristeza em seus olhinhos de criança. Aos poucos essa tristeza parecia se dissipar, talvez por reflexo de si mesma. Não saberia explicar como conviver com aquelas pessoas lhe fazia bem. Mesmo o Coronel, ranzinza e reclamão lhe olhava com doçura, e isso aos poucos curava seu coração.

Em silêncio João a observava, tentando adivinhar o que se passava em sua cabeça. Sabia tão pouco dela, sabia tudo o que importava. Ela fazia seu coração acelerar, trazia luz a sua casa, fazia bem aos seus pais, lhe transmitia paz, e isso era muito mais do que um dia pôde sonhar. Ele aproximou-se e retirou do rosto bonito uma mecha de cabelo que se desprendera do rabo alto que ela usava. A mão pousou em seu rosto e os dois se olharam por um longo momento. Sem palavras, apenas o olhar que tentava mostrar o que nenhum dos dois tinham coragem de dizer.

– Preciso ir. – Ela confirmou com a cabeça. – Mas eu queria ficar.

– Eu queria que ficasse.

– Tudo no seu tempo. – Encostou sua testa da dela. – Espera eu vir te buscar amanhã. Não vai andando, é longe.

Ela corou. Não imaginava que ele soubesse, realmente, que foram andando algumas vezes. Era longe, quase duas horas de caminhada, mas não se sentia confortável em esperá-lo. Daquela vez, porém, ela sabia que esperaria. Queria estar com ele, desfrutar de sua companhia, ainda que por breves momentos.

Ele depositou um beijo em sua bochecha e saiu. Deus sabe como foi difícil se afastar dela. As duas fizeram uma revolução em sua vida, não podia negar. Ele gostava de estar com elas, mãe e filha. Cada uma curava uma parte do seu interior quebrado. Queria fazer o mesmo, queria ser para elas o que precisassem que ele fosse, mas não sabia se podia.

Raquel se banhou demoradamente, pensava em como manter distância. Aquela noite tinha sido um divisor de águas. Descobrir que era correspondida em seus sentimentos lhe deixava feliz, mas também temerosa. Os dois tinham um passado difícil, cicatrizes profundas, porém, sentiam que eram justamente suas partes quebradas que se encaixavam tão perfeitamente. Deu uma última olhada na filha antes de deitar na cama ao seu lado. Dormiu feliz, como há muito tempo não dormia.

No dia seguinte, muito antes do combinado o carro preto estava parado em frente à sua casa. Ela não sabia como se portar diante dessa situação; na noite anterior aconteceu tudo e nada. No mundo fático nada havia mudado, em seu interior tudo estava diferente.

Ele pegou Fernanda nos braços e a apertou contra seu peito, como se estivesse com saudades, mesmo tendo saído há poucas horas. Quando a menina já estava no carro, ele enfim cumprimentou Raquel, lhe acariciou o rosto com cuidado. O que quer que existia entre os dois ainda era recente demais, frágil demais, e ele temia quebrar o encanto.

O primeiro beijo aconteceu duas noites depois, o carro de Raquel estava funcionando, mas ele insistia em trazê-las. As poucas horas que passava com as duas pareciam dar mais cor à sua vida. Fernanda e o avô dormiam profundamente, e eles compartilhavam uma garrafa de café fresco. Se Raquel soubesse a insônia que ele tinha em razão disso, lhe serviria outra coisa. Mas ele jamais recusaria nada que ela lhe oferecesse, que ficasse com sono no dia seguinte, não se importava. Queria apenas desfrutar da companhia dela. Ela ria de algo engraçado que ele havia dito, e era tão bom. João lhe olhava com admiração ainda maior, rejubilava-se por causar seu sorriso.

– Tão linda. – Ela fechou os olhos encabulada – Posso beijar você?

Estranhou o pedido, estava fora dos jogos de conquistas a bastante tempo, mas não se lembrava de alguma vez pedirem permissão para beijá-la. Achou bonito, respeitoso, combinava com ele, com a pessoa que era. Ela confirmou com a cabeça, ainda de olhos fechados. Os rostos se aproximaram; não havia pressa. Ele sentia seu cheiro, delicado como as flores que a mãe plantava na floreira de seu quarto quando era criança. Raquel tinha cheiro de lar, de aconchego.

Segurou o rosto dela entre as mãos e encostou seus lábios nos dela. Sentiu o beijo com a sua alma; foi como encontrar algo que não sabia estar perdido. Como voltar pra casa depois de uma longa viagem. Raquel acariciou o rosto de João com carinho, ele era cuidadoso. Beijá-lo era como caminhar entre as nuvens. Sempre ouvira que o encontro de almas era sublime. Achava que era um pouco de exagero, amou seu primeiro marido, mas o que esse beijo lhe trazia era diferente e profundo, era de fato encontrar-se em outra pessoa. Anos depois ainda sentiria a textura dos lábios dele sobre os seus.

Eles não se afastaram quando o beijo acabou, e nunca mais se afastariam. Não haveria uma vida fácil esperando por eles. Suas imperfeições e defeitos apareceriam em algum momento, desafios surgiriam. Talvez eles pensassem em desistir. Mas naquele instante eles queriam estar juntos, perpetuar os sentimentos daquele beijo pela eternidade. No quarto ao lado, dormia uma garotinha que seria sempre o centro de suas vidas. O ponto de conversão de todo o amor ainda não revelado que sentiam.

O tempo se encarregaria de mostrar quão real era o sentimento que os unia e como estavam profundamente ligados. Entenderiam que tudo o que passaram antes era a preparação para o que viveriam juntos, e que nem sempre o amor e a dor precisam caminhar lado a lado; que, como diria Cazuza, “tiveram a sorte de um amor tranquilo”. Afinal só quem conhece o amargor pode apreciar um doce sabor. Eles aprenderiam um com o outro até o último dia de suas vidas e teriam plena consciência de que enquanto soubessem amar eles estariam bem.

FIM

 

 

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