Conto: Apesar de Tudo
Autor:
Alberto Sant’Anna

 

 

Apesar de tudo

Depois de tanta dor, tanto choro por aquele que foi, ao mesmo tempo, um grande amor e excelente pai.
Apenas aquelas duas.
Aquela que, apesar dos pesares, cuidou da jovem que não gerou em seu ventre, mas sim em seu coração. E aquela outra que se escondia do mundo, mas, no fundo, desejava ter aquela mãe.
Envoltas na mesma dor, superando cada uma de sua forma, o destino as enlaçou, formando nova história.
Filha e mãe ali se formaram, e bela família se tornou agora.

Ellen dos Santos

 

Eram dias difíceis para Catarina e Alice. Madrasta e enteada viviam uma em cada lado, a poucos passos de ultrapassarem a linha tênue que as separava. A dor pela perda do marido e do pai ainda permanecia em seus corações e Catarina sabia que deveria ser o melhor que pudesse ser para aquela garota, mas a adolescente estava arredia e não aceitava a ideia de que aquela professora aposentada, que fora casada 20 anos com seu falecido pai, pudesse ser sua nova mãe. Catarina nunca pôde dar um filho a Fernando, e como ela desejava ser mãe! Ela teve todos os motivos para ser uma mulher amargurada, Catarina foi o assunto por vários meses na vizinhança, na família e até no colégio onde trabalhava, ora, não é fácil e nem é todo dia que você descobre que o homem com quem você casou tem uma segunda família. Apesar de tudo, Catarina amava aquele homem e, mesmo tendo pedido o divórcio, ainda nutria esperanças de que Fernando pedisse pra voltar.
O destino brinca de tais formas que não conseguimos entender, um trágico acidente levou o pai e a mãe de Alice, e o ex-marido e grande amor de Catarina. O desejo da professora aposentada em ser mãe era tão grande que ela não hesitou em se responsabilizar pela adolescente. Aquela garota que era a única memória viva de Fernando. Embora Alice não tivesse saído dela, corria o amor cultivado por 20 anos por aquele homem nas veias de Catarina, e isso fazia com que ela se apegasse ainda mais à garota.

***

Alice passava o dia no quarto e saía somente para o colégio, ao retornar se trancava em seu refúgio. Apesar da pouca idade, a garota parecia sempre forte e o fato de estar isolada era pra evitar o contato direto com a madrasta mesmo. Um dia, Catarina entrou no quarto da garota, que esquecera a porta aberta. Foi uma cena digna daqueles filmes de faroeste, onde parecia que as duas iriam sacar suas armas e atirar a qualquer momento. Alice ficou sem ação e só encarava Catarina, a professora aposentada fazia o mesmo, mas com um olhar de ternura, e de repente decidiu quebrar o gelo.
— Você tem os olhos dele — comentou Catarina.
A adolescente se espantou um pouco e em seguida quebrou o silêncio em tom de deboche.
— É sério isso?
Os diálogos entre as duas eram sempre monossílabos, secos, seguiam no mesmo tom ao passar dos dias.

***

Um belo dia, Catarina resolveu evitar suas investidas e respeitar o espaço da adolescente, mas continuava com sua rotina normal de boa dona de casa e aspirante à mãe; a comida sempre impecável, as roupas sempre limpas e a casa tinindo também. Todos os dias Catarina saía para caminhar com a vizinha, a dona Matilde. Com o passar das semanas, Alice foi ficando curiosa em saber o porquê da madrasta não lhe render mais todas as atenções. Catarina ia para sua caminhada matinal e a adolescente ficava na janela a observando; se Catarina estava cozinhando, Alice estava ali pela brecha da porta espiando também. Parecia que aos poucos a garota ia se dando conta de todo o esforço que a madrasta estava fazendo. Ao contrário do que se pudesse imaginar, a jovem Alice era uma menina doce, gostava de escrever e até tocava piano, algo de que ela se orgulhava bastante, pois fora seu falecido pai quem a ensinara.
Uma manhã, Catarina esqueceu sobre o sofá da sala um álbum de fotografias e Alice curiosamente o pegou quando estava saindo para a escola. Na hora do intervalo, a adolescente foi até a biblioteca e começou a ver as recordações da madrasta. Foram tantos momentos, tinha fotos de Catarina na infância, adolescência, fotos com Fernando no natal, no aniversário e nas festinhas de final de semana que o falecido adorava dar. Naquele dia, olhando aquelas fotos, Alice sentia algo diferente, parecia que o sentimento de revolta pela perda dos pais estava se transformando em condescendência pelos esforços de Catarina, que apesar da dor, fazia de tudo para a adolescente se sentir confortável.

***

Todos os dias quando queria dizer algo para Alice, Catarina deixava bilhetes fixados por ímãs na porta da geladeira. Se a adolescente lia, Catarina não tinha certeza, mas um belo dia ao acordar, a professora ficou duplamente surpresa com o que viu na cozinha e na porta da geladeira. Acontece que Alice saíra mais cedo para a escola, havia preparado o café e deixado um bilhetinho de resposta para a madrasta, que dizia: –“Eu não sei fritar ovos, o café deve tá muito doce e, sim, você acertou na lasanha de carne ontem, é a minha preferida! Ah e hoje eu vou naquele cinema ao lado do colégio com minha melhor amiga, que se chama Mirella, e a mãe dela. Qualquer coisa o telefone delas tá aqui embaixo. Fui!’’
Catarina ainda não conseguia acreditar no que lia, Alice respondendo seus bilhetinhos de geladeira? Fazendo café da manhã e dando satisfações? A professora aposentada se sentiu como uma mãe pela primeira vez em sua vida. Catarina tratou de ir ao mercado fazer as compras do mês e preparar tudo para a garota jantar quando chegasse, infelizmente naquela noite ela não poderia ficar para jantar com Alice, pois tinha um encontro. Sim, um encontro! Ela e o marido se divorciaram há quase 5 anos e quase um ano depois da morte de dele, já estava na hora sim dela conhecer alguém. Claro que Catarina contou com a ajuda de dona Matilde, a vizinha, para fazer uma maquiagem bacana e escolher uma roupa legal para o encontro. No final da tarde Catarina não parava de se olhar no espelho, estava muito insegura, não sabia mais como funcionava tudo aquilo.
— É como andar de bicicleta mulher, você tá maluca? — indagou dona Matilde.
— Eu sei lá, Matilde, não sei nem porque fui inventar de entrar nesse aplicativo aí. E se esse homem quiser me sequestrar pra roubar meus órgãos? — brincou a professora.
Aproximava-se das 18h30 e o táxi de Catarina havia chegado. E lá foi ela, uma mulher de meia idade, que nunca tivera outro homem a não ser seu primeiro e único Fernando. Catarina caminhava em direção ao carro, preocupada, queria voltar dali mesmo para dentro de casa. Olhava para trás e via Matilde acenando para ela, não teve coragem de fazer a desfeita com a amiga também, que passara a tarde cuidando dela. Catarina entrou no carro e seguiu para seu encontro, só pensando no desastre que poderia ser.
O dia havia passado rápido demais e já era noite quando Alice chegou em casa. A adolescente leu o bilhete de Catarina na geladeira, que agradecia pela gentileza do café da manhã e também informava o menu do jantar. A garota foi para o quarto, pôs um chinelo, tomou um banho e em seguida foi jantar sozinha. Sim, ela tinha esperanças de se acertar com a madrasta na hora do jantar.

***

O relógio marcava quase 20h30 quando Catarina entrou em casa com um ar não muito contente, batendo as portas e seguindo para o seu quarto. Neste momento, Alice escutava música nos fones de ouvido, mas conseguiu ouvir a movimentação em casa e levantou para ver o que era. No corredor, a garota pisou leve feito uma pluma e andou em direção ao quarto da madrasta, de onde se ouvia pequenos soluços e a voz de Catarina resmungando sozinha. Alice parou um instante e se pôs a ouvir através da porta o que ela dizia:
— Eu só posso ter perdido a razão! Isso é o que dá ficar ouvindo os conselhos da Matilde, olha isso, gente! Parece que eu saí de um daqueles filmes dos anos 80, essa maquiagem, esse cabelo. Nunca levei um bolo desses nem do Fernando! Eu não devia ter ido a encontro nenhum.
Alice ficou bem surpresa com tudo que ouviu, mas em nenhum momento ela julgou a atitude da madrasta em querer conhecer alguém. Rapidamente a garota decidiu que era o momento de agir e se aproximar de Catarina. Alice se afastou um pouco da porta do quarto e chamou a madrasta pelo nome duas vezes. Neste momento, o barulho no quarto silenciou e a adolescente parecia tão nervosa quanto Catarina antes de sair para o encontro mais cedo. O trinco mexeu e a porta se abriu, mas a madrasta não apareceu e Alice continuava a ouvir apenas sua voz, desta vez mais próxima.
— Alice eu não posso falar agora, está tudo bem com você?
A adolescente respondeu e também lhe fez outra pergunta.
— Estou sim, e você, Catarina? Está bem?
Mais uma pausa de silêncio e Catarina respondeu.
— Tá tudo bem, minha querida. Vai pro seu quarto, eu só quero ficar sozinha.
Alice parecia ter desistido de tentar ajudar, mas estava inquieta, queria fazer algo pela madrasta.
— Sabe, Catarina, eu aprendi a tocar uma música no piano, você não quer ouvir? — insistiu a garota.
A professora aposentada não poderia estragar tudo o que conseguiu até ali com a garota, mas também não queria sair do seu poço de lamentações naquele momento e tentou ser a mais delicada possível com Alice.
— Eu sinto muito, Alice, estou com uma dor de cabeça horrível, mas vou adorar ouvir a canção que você aprendeu amanhã de manhã.
A jovem Alice recolheu suas armas e caminhou em direção à cozinha para beber um copo de água. Ao passar pela sala, ela percebeu que não havia tentado de tudo ainda para se aproximar de Catarina e poder ajudá-la. Lá estava ele, grande e imponente em um canto da sala, o piano do falecido, que travara uma verdadeira briga para poder comprá-lo na época, pois a então sua esposa Catarina dizia que tomaria muito espaço e não haveria lugar suficiente para as crianças brincarem.
Alice sentou à beira do piano e começou a tocar a música que Fernando adorava. Demorou alguns segundos, Catarina saiu do quarto, se escorou em uma das paredes da sala e seus olhos brilharam à cada nota reproduzida pela garota. A mulher estava vendo a personificação de Fernando ali, tocando uma música para acalmá-la. De repente, a música parou e a adolescente se levantou e se pôs a encarar Catarina, mas não como de costume, havia ternura nos olhos de Alice dessa vez. Em poucos instantes as duas estavam abraçadas como mãe e filha que passaram um longo tempo sem se ver.
— Me desculpa — sussurrou a garota.
— Não tem o que desculpar, a gente tá indo muito bem — respondeu Catarina.
A dor realmente une as pessoas, assim como diversas outras razões neste universo. Quem diria que Alice pouco a pouco aceitaria a ideia de ter uma nova mãe, e aquela mãe especificamente? Quem poderia sequer imaginar que Catarina realizaria o sonho de uma vida inteira, o de ser mãe, e ter um pedaço do seu Fernando ali, sempre perto? Desde aquela noite, madrasta e enteada estreitavam cada vez mais seus laços e agora duas peças soltas nesse quebra cabeça chamado vida, se uniam para formar uma nova família. Talvez fosse o momento do amor para Catarina, mas não o tipo de amor que ela fora buscar, e sim o amor de mãe, que para ela era novo, tinha cheiro de um presente recém desembrulhado. Para Alice, a adaptação estava sendo incrível, parecia que as duas se conheciam de longa data. A jovem dava dicas de maquiagem, roupas e tudo mais para Catarina, e também ouvia bons conselhos, já tinha ganhado até colo da nova mãe por causa do primeiro namoradinho. A adolescente tinha uma mãe agora, para acompanhá-la ao cinema junto com Mirella e a mãe dela. Alguns meses depois, era lindo de se ver mãe e filha fazendo quase tudo juntas, Matilde ficou até um pouco de lado, mas a amizade continuava. As duas falavam sobre tudo e qualquer coisa abertamente, tudo mesmo. Um dia, quando voltavam do mercado, Alice perguntou à Catarina:
— Você reparou como o dono da padaria olha pra você?
Catarina arregalou os olhos, ela já tinha reparado a mesma coisa, mas fingia que não.
— Que ideia, Alice! Só porque ele tem aqueles olhões verdes, sei lá, você acha?
A adolescente sorriu e respondeu.
— Sim, também por causa dos olhões verdes, que não chegam a ser os do papai porque estes só eu tenho. Mas se eu fosse você, dava uma chance pra ele.
Catarina pensou um pouco, mas discordou de Alice em seguida.
— Não, minha querida, tô muito velha pra isso. Não sei mais nada sobre o amor e nem como isso funciona.
Alice, como sempre perseverante, insistiu com a mãe.
— Sério? Não sabe nada sobre o amor? Pois eu aprendo um pouco todo dia com você.
Nesse momento Catarina olhou para Alice e seus olhos brilharam, sorriram e ela se encheu de coragem e esperança. Deu um beijo no rosto da garota e falou:
— Acho que a gente se esqueceu de comprar aquele sonho que você queria, vou ter que voltar na padaria. Pode ir andando, eu chego já em casa!
Alice sorriu, desejou boa sorte e seguiu para casa. Todo mundo merece uma chance, todo mundo merece o amor e as duas juntas conseguiram descobrir e moldar um amor apesar de tudo.

FIM

 


Não percam o próximo conto, A Promessa, nesta terça.

 

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  • Parabéns Alberto. Tão lindo e delicado. Essa antologia está realmente mexendo com os nossos corações. Muito bem escrito, leve. Obrigada pela experiência.

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