Eurídice Pacheco, uma mulher de belas curvas e ar elegante, dona de um olhar penetrante e palavras doces jamais imaginou passar por aquela situação assombrosa, estava fraca e impossibilitada de qualquer ação para salvar sua própria vida.
Há alguns meses ela e a filha haviam se mudado para aquela cidadezinha esquecida do interior procurando um lugar seguro para se proteger de pessoas que abominavam sua existência, assim era melhor manter a descrição e continuar em segredo. Mas agora nada disso importava.
A flecha agora cravada em sua carne era a prova de que seu segredo não era mais um segredo, pelo menos para alguns, aquilo fora o resultado de uma luta injusta em que ela fora a caça. Levada à exaustão em horas de uma perseguição doentia ela se viu encurralada apenas com duas opções à sua frente, matar ou morrer, e como boa caçadora ela preferiria a primeira opção. Em um mundo onde sua condição significava ter uma vida envolta em trevas e morte, ela não esperaria pela compaixão de seus caçadores.
Sob a copa das arvores, ela se escondeu a procura de um sinal de seus caçadores. E como uma fera esperando pelo pior, ela se pôs em posição de alerta a procura de uma brecha para cravar as presas afiadas em mais uma de suas poucas vítimas. Alguns minutos se passaram até que algo chamou sua atenção. O ar noturno trouxe a ela um perfume agradável, que ela já conhecia. Como em um déjàvu ela viu um rosto familiar projetado na luz do luar, um rosto que ela não via há 17 anos.
— Isso só pode ser coisa da minha cabeça. — Ela disse a si mesma. — Nós dois prometemos nunca mais nos ver, não é meu querido.
Eurídice se lembrava de suas feições, como se ele nunca tivesse saído do lado dela. Mas para que a vida de seus filhos estivessem a salvo os dois teriam que se separar para sempre.
— Eu sei que você está ai. Criatura da noite! Apareça.
A sua frente, um homem encapuzado apontava para ela uma besta armada com uma flecha prateada reluzente a luz da lua, pronta para disparar ao menor movimento seu. Ou era ela… Ou ele.
Apenas um deles sairia dali com vida e Eurídice não se entregariam sem lutar. Uma batalha de vida ou morte para os dois.
— Parece que chegamos a um impasse minha bela dama. — Disse o homem retirando o capuz que encobria seu rosto.
Era um homem bonito, ela não podia negar. Tinha na faixa de uns 50 anos, talvez um pouco menos, na face às marcas do tempo já se faziam presentes, ele tinha o olhar duro, marcado por noites mal dormidas, — talvez pelas inúmeras tocaias que ele tenha feito na casa dela em busca de algum vestígio que os levasse aquele momento, — os cabelos longos até a altura do ombro já apresentavam algumas mexas grisalhas, dando a ele um ar de sabedoria e mistério.
— Onde estão os teus companheiros? — Ela perguntou olhando em volta.
Eurídice sabia que ele, sendo tão experiente quanto ela julgava, não a atacaria sozinho em meio a uma noite escura. Era improvável que estivesse sozinho.
— Vejo que você sabe muito sobre nós ser das trevas… Então vai nos poupar o trabalho de apresentações formais. — Respondeu o homem com um sorriso nos lábios.
— Se não me falha a memória vocês nunca trabalham sozinhos. Estão sempre em grupos de três caçadores, estou certa? — Disse ela tentando distraí-lo. — Me atacar sozinho é ter a certeza de que você está cavando sua própria sepultura.
O homem deu um leve sorriso em resposta.
— Eu vivi fugindo de grupos como o seu desde que me transformei. — Disse ela secamente. — E nem mesmo o herdeiro dos poderes de Deus soube de minha existência.
O homem agora assumia um ar de surpresa, aquela afirmação o deixara sem resposta. Uma vampira vinda da Romênia numa cidadezinha como aquela, parecia impossível. Pelo que ele sabia o grande Adrian — O herdeiro de Deus havia expurgando os vampiros daquele lugar com a ajuda do avô e de um dos condes que há vários anos havia se passado para o lado dos caçadores.
— Então eu estou diante de uma vampira que sobreviveu ao ataque do grande Adrian Uter a corja do conde Aldern em Alexandria… Impressionante. — Ele disse tentando esconder a surpresa para arrancar mais algumas informações, antes de dar cabo de sua vida. — Mas isso já faz muito tempo, ele nos incumbiu de não deixar que seu legado morra.
— Aqueles homens não deixaram um legado. Assim como vocês não deixarão depois dessa noite. — Ela ameaçou, sem muita certeza do que estava dizendo. — Só me diga uma coisa, antes que tudo isso termine. A quem eu terei a honra de matar?
Ela tinha um brilho diferente no olhar, de alguma forma ela sabia que algo bom aconteceria depois daquele encontro. Pondo-se em posição de ataque, ela lhe mostrou as presas afiadas à espera da resposta.
— Zacarias Bartolomeu, ao seu dispor. — Disse ele também sorrindo. — Isso é…. Se você conseguir, minha senhora.
Ele parecia estudá-la de longe. Seus olhos percorriam todo o campo de batalha em busca de meios eficientes de extermínio.
“— Use tudo a seu favor… todo o campo de batalha se for possível.” — Disse ele a si mesmo.
Zacarias era um homem experiente tanto em sabedoria quanto em batalhas, passara a vida toda estudando sobre aquela maldita raça, treinando suas habilidades jurando um dia acabar com toda aquela escoria. Ele fez o sinal da cruz com o polegar junto com uma oração em latim pedindo permissão e proteção da igreja para aquele fim.
O mal ainda espreita,
Lacaios da noite perecerão ao nosso poder.
Mágica adhuc vivit.
Aquele era o sinal, um mantra que anunciava a morte para aqueles que tinham a mesma sorte que ela. Nada o que fizesse seria suficiente. E para ela, seria apenas o começo.
Com um estalar de seus dedos dois homens apareceram trajando roupas iguais às de Zacarias, uma calças bege, camisa de botões e um casaco de manga cumprida por cima além de um, sobretudo escuro com capuz para lhes esconder a face.
— Apresento a você, a secular ordem dos templários de prata. — Disse ele enquanto os outros dois homens despiam os capuzes de suas cabeças.
O homem da direita era um completo estranho para ela, já o da esquerda prometeu deixa-la fugir uma vez, desde que eles nunca mais voltassem a se ver. Ele era o amor de sua vida, e estava ali para matá-la.
Dessa vez ele não teria piedade, mesmo sabendo do segredo que ambos escondiam. Eurídice estava coberta de razão, aquela era uma emboscada e ela seria o prato principal.
Depois de vários dias de tocaia finalmente veio à confirmação que lhes faltava, naquela cidadezinha abandonada à própria sorte, escondiam-se realmente um casal de vampiros, à espera do momento certo para dizimar uma cidade inteira. Isso se fossem apenas um casal de vampiros, e não uma horda completa, o que era mais comum, calculava-se entre 100 e 150 vampiros para uma cidade como aquela.
Foi muita sorte deles aquela vampira estar sozinha naquele exato momento, afinal não era um trabalho facial caçar um vampiro, e mesmo sozinho ele poderia causar um tremendo estrago aos três se tudo não fosse muito bem planejado.
Baltazar havia perdido ao tirar a sorte com seus companheiros de longa data e agora tinha como missão vigiar aquele ser asqueroso ao qual vinham caçando há alguns meses.
Ele era um homem baixinho, corpulento, exibia em suas feições um ar maltratado, um claro sinal de que aquela não era a melhor situação que vivia há semanas. Seus olhos castanhos escuros exibiam olheiras gigantes, se comparadas as de uma pessoa normal que havia passado uma péssima noite de sono.
Também pudera ele havia perdido uma simples aposta e teria de ficar de vigia enquanto seus dois companheiros buscavam informações na cidade sobre os possíveis ataques de vampiros. Aqueles homens haviam recebido uma denúncia anônima de que aquelas criaturas estariam vivendo escondidas ali há dois anos, se passando por pessoas normais, vivendo como seres humanos.
Ela havia acordado e estava na hora do interrogatório.
Ainda desnorteada pelo choque que recebeu ela abriu os olhos. A total falta de luz favorecia seus sentidos aguçados, ela era capaz de enxergar tudo ao seu redor com uma exatidão fantástica. Como um morcego guiado por seu sonar, tinha uma perfeita noção de espaço, o que fazia seu cérebro trabalhar contra o tempo, levando seu instinto de sobrevivência a buscar de alguma forma uma possível rota de fuga.
Ela queria sair dali, mas o corpo teimava em não obedecer a suas vontades. Estava esgotada e sem forças.
Impedindo a cicatrização do ferimento aquele objeto de prata maciça fazia-a sangrar provocando uma dor aguda em seu peito, lembrando a ela dá infeliz escolha que fizera há alguns anos. “Nunca machucar os humanos.” — A não ser é claro, que eles procurassem por isso.
“— Aquela era uma cidade segura. Ninguém sequer saberia de sua existência.” — Esse foi um pensamento infeliz de sua parte.
Ela estava enganada, e acabara pagando um alto preço por esse engano lamentável. Presa a uma promessa do passado, Eurídice se permitiu lembrar-se dos momentos felizes de sua vida.
Não sabia muito bem o porquê, mas reviver o seu tempo de garçonete de uma taberna, ou o momento em que conheceu Orfeu, não eram tão interessantes assim, porem reviver o nascimento de seus filhos mais uma vez, e ter que escolher entre a vida ou a morte de ambos fez com que ela sofresse mesmo inconsciente.
Quanto tempo ela havia passado desacordada?
Era difícil dizer, pois o lugar não apresentava nenhum sinal de mudança de tempo, ela não sabia se era dia ou noite, não havia relógio ou janela pela qual se pudesse medir a passagem do tempo. Era apenas uma sala escura, fria e aparentemente vazia, a não ser pela sensação de estar sendo constantemente observada.
Sozinha, ela começou a sentir uma certa dormência nas mãos e pés, o peso daquelas correntes incomodavam, corroendo sua carne como ácido, provocando nela uma dor quase insuportável. O cheiro da carne queimada se misturava ao saboroso odor de sangue recém-colhido, esperando para ser degustado por ela.
Em todo aquele breu, o único som audível até então mantinha sua mente focada. Ela era capaz de ouvir fracas gotas daquele saboroso néctar caindo em uma bacia de prata.
***
— Ha quanto tempo ela está acordada? — Perguntou Zacarias ao chegar o monitor de luz noturna ligado no quarto ao lado.
Ao entrar naquele mine apartamento que mal parecia um quarto de hotel com apenas dois cômodos e um banheiro coletivo no fim de um corredor. Ele se deu conta pela enésima vez do tipo de trabalho que eram forçados a fazer para cumprir um juramento feito há milênios a um padre que há muito tempo não estava mais entre os vivos.
“— Ninguém saberá da existência de vocês.” — Essas foram às palavras dele. E tem sido assim desde então.
Os três tem vivido no submundo, onde ninguém os conhece, praticando atos ilícitos para sobreviver e dar conta de um trabalho em que eles se quer eram pagos para isso: O extermínio de vampiros.
Zacarias puxou uma cadeira e esperou por uma reação de seus companheiros.
— A cerca de 30 minutos. — Disse Baltazar mordendo o sanduíche trazido pelo amigo.
— E ainda não tentou se libertar ou se alimentar? — Zacarias perguntou preocupado.
— Ainda não, pelo menos não que eu tenha visto. — Respondeu Baltazar dando mais uma mordida.
— O que você acha que é? — Disse Zacarias checando mais uma vez o monitor.
— Ela está protegendo alguém. — Disse Orfeu entrando na saleta e fechando a porta.
— Nosso ilustre convidado resolveu aparecer. — Disse Zacarias levantando-se da cadeira.
— É bom te ver de novo meu amigo. — Disse o outro.
— Parem com essa besteira. — Ele retrucou severo. — Estou nessa caçada assim como vocês. Eu apenas tenho uma vida paralela, com trabalho e um filho para dar conta.
Ela ouviu uma porta ranger a sua frente, passos apressados passearam por todo o lugar antes dela ouvir o barulho de cortinas sendo abertas. No fim ela sentiu sua pele queimar acompanhada de uma dor insuportável.
Tira a venda de seus olhos Zacarias sorriu, mostrando a ela um cálice de sangue fresco que a fez salivar. Ela precisava se alimentar o quanto antes.
— Quantos vocês são? — Ele perguntou aproximando o cálice de sua boca.
Ela sentiu o enorme desejo de beber de uma única vez o conteúdo daquele cálice, mas se conteve. Todo aquele jogo fazia parte de um plano ainda maior.
— Do que você tá falando, seu porco imundo. — Vociferou ela cuspindo sangue em seu rosto.
— Não pense que eu sou idiota mulher, eu sei que você não está sozinha nessa cidade. — Disse ele dando-lhe um tapa em sua face.
— Guarde minhas palavras, você é um homem morto. — Ela disse com as presas a mostra.
— A bela dama resolveu mostrar as garras pra mim. Vamos ver se depois da nossa conversinha ela vai continuar desse jeito.
— Vá se ferrar. Seu caçador de meia tigela!
— Essa é a hora em que a bela dama perde os modos, e mostra sua verdadeira natureza. — Disse ele bebendo um gole da taça que segurava.
***
Haviam se passado dias, desde a última vez que ela havia visto a luz do luar. Hoje em especial a lua estava cheia, o céu sem nuvens reforçava ainda mais o brilho das estrelas.
Eurídice seguia acorrentada no meio da formação guiada por Baltazar, que a puxava de tempos em tempos para mostrar quem mandava ali, logo atrás vinha Zacarias empunhando uma besta armada com uma estaca de madeira apontada para o seu coração, Orfeu e Belchior vinham um de cada lado armados com revolveres de prata.
— Já se passaram 17 anos, como ele está? — Orfeu foi capaz de ouvir a voz dela em seus pensamentos.
— Ele é um menino formidável. — Ele respondeu mentalmente, virando-se ver seu rosto.
Eurídice sorri
— Ele tem o seu sorriso, não há um só dia em que ele não me faça lembrar de você.
— O mesmo vale para mim, meu querido. — Ela voltou seus olhos novamente para o luar. — Alice é a única coisa que me liga ao nosso passado juntos.
— Onde ela está? — Ele pergunta, agora admirando a lua.
— Ela está perdida há dias, temo que já esteja morta.
— Isso é impossível, eu passei anos cobrindo o rastro de vocês, fizemos tudo para eles não saberem da existência um do outro.
— E eu tenho que dizer que nos dois falhamos. — Ela diz com a voz embargada. — O elo empático entre eles é muito forte, quanto mais próximos eles estão, mais fortes eles são.
— Pela primeira vez em anos ele conseguiu usar a magia dos antigos. — agora ele sorria.
— Cuide dela quando eu deixar este mundo. Proteja-os de tudo e de todos que queiram fazer mal aos nossos filhos. Prometa-me isso Orfeu.
— Eu prometo.
A rua continuava deserta, pelo adiantado da hora. Apesar de já passar da meia noite a porta da igreja ainda estava aberta, a luz de uma vela ainda crepitava lá dentro. Ainda em formação os quatro homens se ajoelharam perante a porta e fizeram o sinal da cruz antes de entrarem.
— É repugnante o que vocês fazem em nome dele. — Ela disse em alto e bom tom.
— Cale-se mulher. — Retrucou Zacarias ainda fazendo suas preces. — se é que você pode ser chamada assim.
— Vocês quatro são tão aberrações quanto eu. — Ela retrucou. — Se bem me lembro vocês nasceram na mesma época que eu, bem antes da santa inquisição.
— Quais são as suas últimas palavras?
Zacarias retirou a espada de prata do suporte e a apontou para a garganta da moça enquanto sorria.
— Ora, não seja tolo, você sabe muito bem que isso não pode me matar.
— Ajoelhe-se. — Ele ordenou.
Eurídice obedeceu à ordem sem questionar. Ela já esperava por isso há muito tempo.
— Eurídice Pacheco… — Iniciou Belchior tirando das vestes um pergaminho. — Em nome da Secular Ordem dos Templários de Prata eu a sentencio a morte por seus crimes perante Deus e a Igreja.
Zacarias fez mais uma vez o sinal da cruz antes de levantar a espada para proferir o golpe letal.
— Está na hora de confessar seus pecados, para receber o perdão. — iniciou Zacarias numa última tentativa.
— Se com confessar os meus pecados você diz entregar um dos meus esqueça. — Disse ela de cabeça baixa.
— Eu faço isso. — Orfeu o interrompeu. — É meu dever.
— Já que você quer tanto assim. — Disse Zacarias lhe entregando a espada.
— Perdoe-me meu amor. — Disse Orfeu preferindo-lhe o golpe de misericórdia.
-” ”>-‘.’ ”>