O LITORAL
Havia se passado uma semana e Dario já se encontrava na divisa entre o sertão e o agreste alagoano. Em um final de tarde ele caminhava pela encosta da rodovia quando de repente viu uma cruz de quase três metros e decidiu sentar ao lado para descansar. Começou a chover e Dario fechou os olhos e adormeceu.
— Cansado? — perguntou uma voz masculina.
— Muito cansado, com fome, com sede e quero Maria Rita.
Um vaqueiro se sentou próximo de Dario.
— Você veio de longe, não foi?
— Foi. Sou de Vila de São Cristóvão. — abriu os olhos.
— Nossa, é muito longe mesmo. — riu.
— Eu quero chegar em Piaçabuçu e ficar com Maria Rita.
— Você ama essa moça?
— Amo, é a mulé que tô deixado tudo por ela.
— Deixando o quê?
— Minha vida de bandido, minha terra e família. Eu não tenho mais meu cavalo e nem Maria Quitéria.
— Sua esposa?
— Não, é o nome da minha arma.
— Ah! tá.
— Deve amar muito essa mulher para desistir de tudo que o fazia bem também o fazia mal.
— Amo por demais. É a mulé que quero que seja a mãe dos meus menino.
— Tem certeza que o que fez você largar a vida do crime foi somente pelo amor de Maria Rita?
— Sim, a amo é por ela que…
— Se ela não existisse ou se por acaso ela não te querer mais?
— Por que está me fazendo essas perguntas toda?
— Voltaria para o crime? Compraria outro cavalo ou outra arma?
Um passarinho voou e posou num galho de uma árvore.
— Não, eu não volto ser o que eu fui antes.
— Um pássaro que conhece a liberdade nunca mais vai querer voltar para a gaiola que o mantinha preso.
— Amo Maria Rita…ela me deu vontade de sair daquela vida. Eu sair da pistolagem porque quis…já não aguentava aquela vida: matando, viver correndo da poliça ou de quem querer se vingar.
— Isso é ótimo saber que existe algo bom dentro de você, Dario. — colocou um litro de leite e um pão ao lado e saiu.
— Espere aí, como sabe o meu nome, caba?
O vaqueiro subiu no cavalo.
— Eu sei. — acenou e uma de suas mãos havia uma chaga, sorriu e sai cavalgando por uma estrada de terra.
Dario despertou do sonho e viu o pão e o litro de leite.
— Obrigado, Senhor Jesus Cristo. — olhou para o alto e começou a comer.
Se passaram dois dias e Dario cruzou o agreste e finalmente chegou em Penedo, um município vizinho de Piaçabuçu, e pela tarde caminhava pelo cais e avistou os Catamarãs, barcos da região, navegando sob o rio São Francisco.
Na divisa das cidades de Penedo e Piaçabuçu, em uma manhã ele andava pelas dunas douradas, o vento soprava seus longos cabelos, sua pele castigada pelo sol refletia aos seus belos olhos castanhos esverdeados, o seu corpo lutava contra o cansaço, a fome e a sede, porém o desejo de reencontrar Maria Rita o fortalecia.
Às vezes Dario não sabia se o que via era delírio ou não e uma dessas aparições ele avistou de longe uma mulher sentada à mesa e digitando num computador, aquela imagem o deixou intrigado e ele decidiu se aproximar.
— Tu é real ou é doidice da minha cabeça?
— Quantos dias e quantas noites sem dormir, sem beber ou comer direito, não é? O que pode ser real ou fruto da nossa imaginação? Tudo depende do nosso ponto de vista.
— Quem é tu? O que faz no meio desse nada?
— Eu me arrisco dizer que sou alguém que de vez em quando me permito escrever tudo que já vi e vejo e transformo os sentimentos e os acontecimentos em palavras pela tela desse computador. E você o que faz aqui?
— Tô atrás da Rita, vou me encontrar com ela. E a dona?
— Eu apenas estou terminando o meu livro, não há um lugar ideal como esse para se está sozinha e sem interrupções.
— Maria Rita é cega e não pode ler. Ela tem uma vontade danada de que alguém leia os livo que tem lá na casa dela. O ruim é que eu não seio ler.
— Nunca é tarde para aprender a ler. Sabia que quando eu era criança tive dificuldade para aprender a ler e a escrever? Quem diria que hoje eu me atreveria a escrever estórias?
— Eu quero fazer a Rita feliz. Vou tentar aprender a ler e a escrever e quem sabe deixo de ser burro? — deu uma risada.
— Você não é burro e acredite que tudo é possível.
— A dona acredita nisso que tudo é possívé[1]?
A escritora ficou em silêncio por alguns instantes.
— Na vida fazemos tantos planos e tantas coisas acontecem em nosso caminho e na maioria das vezes essas interferências nós causam dor e isso é tão inevitável. O que posso dizer a você é que seja o que acontecer se mantenha firme e tente quantas vezes for possível e quem sabe alguém lá de cima sorrir pra você e a sorte baterá na sua porta?
— Qual porta?
— O destino dirá.
— Eu vou ter que ir antes que anoiteça. Tchau, dona.
— Boa sorte, Dario, aconteça o que acontecer o amor vence no final.
— Como sabe meu nome?
A escritora desapareceu e ele olhou para o horizonte o encontro do rio São Francisco e o mar.
— Cheguei! Uh! Uh! Cheguei em Piaçabuçu! Rita! — corria e rolava pelas dunas. — Rita! Rita!
Na praia havia algumas jangadas, Dario caminhava pela beira do mar e se aproximava de uma pescadora que era uma mulher negra que observava o filho colhendo alguns mariscos na areia.
— Elísio, vem pra cá!
O menino saiu rapidamente segurando um balde, passou por Dario, caminhou até a mãe e a deu a mão.
Havia alguns pescadores sentados nas jangadas atracadas na areia e Dario correu em direção ao mar e deu um mergulho.
Numa casa de madeira de frente para o mar estava Maria Rita na varanda e Dario a viu de longe.
— Rita, é ela. — correu. — Rita! Rita!
— Dario, onde você está? É a sua voz mesmo?
Ele correu, a abraçou e a tomou com um beijo.
— Minha Rita, minha ceguinha. Nem acredito que tô aqui vendo você.
— Dario, não me diga que tudo isso seja um sonho? — aproximava as mãos no rosto dele.
Ele pegou as mãos dela e as beijou.
— Não é sonho, Rita, eu estou com uma saudade danada de você. — a beija.
O casal entrou na casa aos beijos, adentrou no quarto e se amou consumindo o desejo do reencontro. Os raios do sol do meio-dia atravessavam as brechas da janela e tocavam as peles nuas de Dario e Maria Rita que se encontravam abraçados e deitados na cama.
— Como me encontrou?
— Eu sair por aí perguntando a um e a outro. — fez uma pausa. — Seu Félix mentiu pra mim, ele disse que tu tinha casado e estava em Sertão de Maria.
— Eu fui embora porque já não aguentava mais viver presa naquela fazenda e por outro motivo também. — senta.
— Qual?
Ela acarinhou o ventre.
— Vamos ter um bebê.
Dario expôs um semblante de surpresa, se sentou e toca na barriga dela.
— Um fio nosso? — sorriu. — Essa notícia é boa por demais, Rita, por que não me procurou pra dizer que está prenha?
— Porque você fez a sua escolha e preferiu a pistolagem invés de mim.
— Rita, eu passei por muita coisa pra chegar até você e escolho ficar com você e nosso fio. Deixei de ser bandido, larguei tudo, a minha arma, o meu cavalo morreu…
— O Catamarã morreu? — perguntou entristecida.
— Sim, ele foi xeretar o boi, acabou ferido e tive que sacrificar.
— Que pena. Eu gostava tanto dele.
— No caminho pra cá o painho morreu e antes disso fui preso.
— Preso?
— Sim, mas o povo lá da cidade me inocentou porque o caba que matei era um vêio safado que bulia nas fias.
— Dario, se for pra ficar comigo e o nosso filho, aliás acho que é uma menina, não vou querer que volte pra bandidagem e não haverá exceções.
— Não, Rita, pode confiar n´eu, não vou voltar ser matador de alugue, só quero vevé em paz com você e o nosso buguelo. — acarinhou o ventre dela.
Os dias depois em uma manhã, Dario estava em pé encostado na pilastra da varanda enquanto Rita molhava os pés na beira do mar. A Eugênia apareceu na porta.
— Ela está tão feliz. Eu nunca vi a menina Rita assim.
— Eugênia, eu vou dá uma saída, cuide dela e do meu fio.
— Pra tu vai?
— Caçar serviço.
Eugênia o olhou assustada e pensava se ele voltaria para o crime. Dario caminhou até a amada, a abraçou por trás e disse em seu ouvido:
— Eu vou sair e volto logo.
— Pra onde vai?
— Alguém tem que colocar comida na mesa, não é?
— Dario, já disse que painho…
— E eu sou homi pra vevé as custas do sogro?
— Dario, só espero que…
Ele a beijou.
— Cuide do nosso fio. — saiu.
Pela praia ele caminhava até que viu um grupo de pescadores arrastando as jangadas para o mar e se aproximou de um velho pescador sentado em uma jangada atracada na areia que costurava uma rede.
— O fio não é daqui. — disse o pescador.
— Não, sou do sertão.
— Está de passagem?
— Não. Tô atrás de um serviço.
— Quer aprender a pescar? Se quiser eu te ensino.
— Quero sim, seu Zé, tô precisando muito tenho mulé e menino que vai nascer.
— Então, o fio senta aí que vou dizer explicar tudinho que sei desse mar…
O velho pescador contou para Dario o que sabia sobre a pesca e chegou o momento dele subir pela primeira vez numa jangada e em alto mar jogou as redes chegando ao fim da tarde.
Ao anoitecer, Dario chegou em casa e na varanda estava Maria Rita sentada numa rede e com o semblante de preocupação.
— Rita, cheguei.
— Onde você estava, Dario?
— Eu disse que fui caçar um serviço.
— De quê? Não me fale que… — levantou.
— Mulé, eu já te disse que não vou voltar mais pra pistolagem.
— Então, o que você fez o dia todo?
— Aprendi a pescar e é disso que vamo vevé. É pouco dinheiro, mas dá pra comer alguma coisa. Trouxe uns peixes. Vamo entrar? Tô varado de fome. — pegou um cesto de peixe, o colocou sob a cabeça e a deu um beijo.
Na manhã seguinte, Maria Rita falava ao telefone na sala da casa.
— Painho, eu tô decidida, vou viver com o Dario e não preciso mais que me dê dinheiro. Essa casa é minha, é herança de mainha e se for pra me ligar pra perturbar não me ligue mais. — desligou o telefone.
Eugênia entrou na sala.
— Era Seu Félix?
— Sim, ele não aceita que eu viva com Dario.
— Seu pai tem medo de que ele te faça sofrer. Me desculpa, fia, eu também tenho.
— Eu sei, Eugênia. Esse medo é o mesmo que o meu. Não sei se Dario pode se arrepender ou acontecer algo que o faça querer voltar pra aquela vida de antes.
— Se isso acontecer?
— Não vou querer mais o Dario na minha vida. Eu vou botar ele pra fora de casa longe de mim e do meu bebê.
— Eu espero que ele nunca mais volte ser bandido, é tão lindo ver vocês dois em paz esperando essa criança que é um presente de Deus. Nenhuma fio deve viver com os pais brigados e separados.
— Concordo com você, Eugênia. Eu amo o Dario e espero que cumpra o que prometeu a ele mesmo de não voltar para o crime.
Em uma noite, Maria Rita se encontrava deitada na cama em trabalho de parto enquanto Dario e Eugênia a ajudava.
— Aguente firme, fia, o bebê já tá coroado. — disse a empregada entre as pernas dela.
— Eu não aguento mais…sinto muita dor…Dario.
— Rita, vai ficar tudo bem. — segurou na mão dela e sentou ao lado. — Nosso fio vai nascer…logo vamo ter ele ou ela aqui…— a beijou.
Ecoou o choro do bebê.
— Nasceu! É uma menina. — falou Eugênia com o bebê em suas mãos.
— Eu sabia, minha menininha. — disse a mãe chorando.
Eugênia entrega o bebê para os braços da patroa que a acarinhava e a beijava sob a cabeça.
— Minha menina…minha filha…
Dario estava emocionado com aquela cena, olhou nos olhos de Maria Rita, sorriu e tocou nos cabelos da filha.
— Os cabelos dela são tão negros quanto a noite. Tão linda, minha fia. Tão bonita quanto a mãe. — beijou a amada. — Eu sou teu painho, viu? — riu. — Tu é fia de Dario, neta de dona do Céu e Seu Romão, que descanse em paz. — a fez um sinal da cruz.
— Ela vai se chamar Maria Isabel.
— É um nome bonito. — disse Eugênia.
— Nossa filha, nossa Maria Isabel. Seja bem vinda, meu amor. — a mãe aconchegava nos seus braços.
Alguns dias depois em uma madrugada, Dario se encontrava no quarto com a filha nos braços.
— Ela é tão pequena que tenho medo de derrubar.
— Não vai, eu confio. — falou Maria Rita deitada na cama.
— Tem certeza?
— Bom, na verdade confio desconfiando. — sentava na cama.
Os dois riram.
— Eu sabia. — a colocava no berço. — você volte a dormir Isabé porque painho vai trabaiar. — Te amo, se cuida, Rita. — a beijou.
— Dario, eu tenho tanto orgulho de você, sabia? Nem acredito que isso não seja um sonho porque nunca fui tão feliz em toda a minha vida.
— Tu merece tudo de bom que há nessa vida, Rita, um dia irei aprender a ler e escrever e aí vou ler todos aqueles livos pra você.
— Ainda lembra dos livros de mainha?
— Promessa é dívida.
— Eu quero que Maria Isabel estude e tenha um futuro. Graças a Deus que ela não nasceu cega. Me sinto aliviada por ela não viver como eu vivo numa escuridão.
— Nossa fia vai ser doutora, eu te prometo, Rita. Eu vou juntar centavo por centavo pra que ela consiga ser meior do que a gente. Tenho que ir, vou trabaiar. Tchau, Rita.
— Tchau, meu amor.
— Te amo. — a beijou e saiu.
No final da tarde, Rita estendia algumas roupas no varal quando de repente um homem com roupas negras e chapéu de couro preto se aproximou dela.
— Quem é? Responda, eu sei que tem alguém aqui. — apreensiva.
— Teu homi é fio do caba de peia que matou o meu irmão Cristiano, e tu vai pagar pela morte dele. — apontou a arma para ela.
— Quem é você? Socorro!
— Isso se chama vingança! — atirou.
Maria Rita deu um grito ao levar um tiro no abdômen e caiu no chão. Levi se escondeu atrás da árvore enquanto Dario que retornava para casa a viu de longe ela baleada e correu em desespero.
— Rita! Rita! — a abraçou. — Quem fez isso com você?
— Dario…me promete…que não vai se vingar…me promete?
— Quem atirou em você? Quem foi o desgraçado?
— Não se vingue, meu amor…pense na nossa filha…Maria Isabel…te amo, Dario…
Naquele instante Maria Rita morreu nos braços de Dario.
— Não! — gritou. — Não! Rita! Não! — chorava.
O homem que matou Maria Rita, saiu de trás da árvore.
— Dario.
— Por que atirou nela, seu miserável? Por quê? — olhava para o homem. — Levi?
— Dario, sinta na pele o que eu e minha família sentiu quando o Cristiano morreu.
— Eu não matei o teu irmão!
— Teu pai o matou.
— Eu sei que foi você que matou o meu pai! Por que matou a minha mulé, por quê?
— Porque quero te marcar como se marca um gado. — puxou os cabelos dele com força. — Ver a tua mulé morta é pouco pra um assassino como tu. O seu sangue é ruim e amaldiçoada é a tua família. Chore e sinta essa dor atravessada no peito que vai doer pra sempre pela morte dessa inocente. Ela morreu por sua culpa.
— Atire em mim! Atire! — abriu os braços.
— Não! Eu quero tu vivo e a morte da tua mulé é a tua pena. E aí cadê a tua arma? Não vai revidar? Onde está aquela brabeza toda de ser o pistoleiro mais temido do sertão de Alagoas? — cuspiu no rosto dele. — Tu é um fraco, Dario, virou um covarde como o teu pai.
— Já fez o que queria, saia daqui!
Levi levantou a arma para alto e gritou:
— Cristiano, vinguei sua morte! — atirou para cima, correu, subiu no cavalo e saiu disparada.
— Rita! Rita! — a abraçou.
Começou a chover e Dario chorava abraçado ao corpo da amada e a culpa pesava dentro de si, pois a mulher que ama pagou com a vida o preço dos seus crimes. Naquele momento ele sentiu na própria pele o que Quirino sentiu e pensou por um momento fazer o mesmo e acabar com sua vida, porém, lembrou de sua filha e já bastava ter perdido a mãe de uma forma brutal e sua desgraça seria maior em perder o pai por cessar a vida pelas próprias mãos. Não queria ele deixar um destino incerto a menina, afinal sem os pais estaria à mercê da caridade dos outros e se acaso a tiver.
Dario desistiu de tirar a sua vida, se levantou e o ódio consumia o seu corpo, olhava para cima e sedento de vingança pensou em tirar a vida de Levi, mas sua promessa a Maria Rita em não vingar a sua morte fez essa ideia amargamente se dissipar. Ele baixou a cabeça e o sentimento se transformou em vergonha e se sentiu vulnerável em não ter podido evitar a morte da amada e neste exato momento Dario descobriu o que sentem os familiares e amigos de suas vítimas a dor do luto e suas variantes: a injustiça, a revolta e a saudade.
Eugênia correu gritando:
— Menina! Menina Rita! — abraçou o corpo dela. — Quem fez isso? — olhou para Dario. — Foi você, seu miserávé[2]?
— Não, mataram ela por vingança…foi Levi, irmão de Cristiano.
— Eu te disse menina…te disse que não se envolvesse com essa besta feroz…essa coisa ruim! Meu Deus que tragédia! Meu Deus!
Dois dias se passaram e numa tarde na varanda estava Dario com a filha em seus braços e olhava para o mar enquanto Eugênia se encontrava encostada na pilastra.
— O que tu vai fazer? Devia ter contado ao Seu Félix que a fia dele morreu.
— Eu vou voltar pra casa, vou levar minha fia comigo e vou dizer ao Seu Félix pessoalmente o que aconteceu com Rita porque essas coisas se diz zôio no zôio.
— Também vou com vocês. Não quero mais ficar nesse lugar…
— Amanhã de manhã a gente volta pra Vila de São Cristóvão.
— Vamo de quê?
— De pau de arara[3].
Pelas estradas dentro de um pau de arara, Dario, como a Maria Isabel em seus braços, e Eugênia, seguiam por dias com o destino a cidade de Vila de São Cristóvão. Numa tarde os dois chegaram com o bebê no centro da cidade.
— Antes de ir para a fazenda eu vou pra casa de mainha.
— Não acha meior já falar com o Seu Félix o que aconteceu?
— Não, eu vou mostrar Maria Isabé pra mainha e depois vou lá no Seu Félix.
— Se eu voltar pra fazenda o patrão vai me fazer um monte de pergunta. Eu vou ficar na casa da minha irmã por enquanto e amanhã vou pra fazenda e perguntar se o Seu Félix ainda vai querer que eu trabaie pra ele.
— Tá.
— Boa sorte, Dario, tchau Isabé. — saiu entrando em uma rua.
— Tu vai conhecer tua voinha, fia. — olha para a menina em seus braços.
Dario continuou a andando e na praça viu um grupo de manifestantes com cartazes e apitos ao redor de uma estátua.
— Essa estátua é uma homenagem ao menino Zezinho que foi morto por um policial militar. Mais uma vez um menino negro, órfão e carente morto por esses milicianos. Essa imagem é pra manter viva a memória desse crime que envergonha essa sociedade conservadora, branca e machista brasileira. — falava um manifestante em cima de um banco com um alto-falante.
A estátua de Zezinho era feita de chumbo e tinha a altura similar do adolescente e os traços físicos idênticos ao dele. Dario se afastava daquela manifestação ao redor da estátua e nos outros bancos haviam algumas crianças e adolescentes carentes cheirando cola e outras pedindo dinheiro no sinal.
Uma hora depois, Dario desceu uma carroça com a filha nos braços e parou na porteira casa dos seus pais. Na varanda estavam dona Maria do Céu e Manuela sentadas nas cadeiras e conversando.
— É o Dario? — levantou a matriarca.
— Mainha! Mainha, voltei! — gritava entrando.
— É ele mesmo, mãe.
— Dario! Dario! — correu e abraçou o filho. — Meu fio! Mainha tava com tanta saudade de você. — acarinhava o rosto dele e viu o bebê em seus braços. — Quem é esse menino?
— Também estava morrendo de saudade da senhora. A menina é minha fia, tua neta a Maria Isabé.
— Meu Deus! Por Nossa Senhora, Dario, tu me deu uma neta, fio. — chorava emocionada. — me dê ela aqui. Vem com voinha, vem. — pegou a menina no braço que começou a chorar. — Chore não, fia, é a voinha.
— Dario, irmão. — o abraçou. — Que bom ver você de novo.
— Essa menina aqui é tua sobrinha, Manuela.
— Que bebezinha mais linda. Qual o nome dela?
— Maria Isabé.
— Cadê a mãe dela? É a fia de Maria Rita?
— Sim, é minha fia e de Rita. — fez uma pausa. — A Maria Rita morreu.
Na varanda após uma hora, Dario havia dito tudo que o aconteceu até o seu retorno a cidade para sua mãe e a irmã.
— Pobrezinha, vai crescer sem mãe. — disse a matriarca sentada na cadeira de balanço e com a neta que dormia em seus braços.
— Rita morreu por minha culpa.
— Ela sabia o risco que tinha por estar com você. A culpa foi de painho que aceitou matar o Cristiano em troca de dinheiro, talvez se ele não tivesse feito o que fez, eu não teria virado mulher da vida e estaria com o Cristiano, o único homem que amei.
— Teu pai errou, mas a escolha foi sua, fia, em virar dona de cabaré.
— Pelo menos o bordel me deu o que nunca tive: aprendi a ler, a escrever, me portar como gente e não como um bicho.
— Dinheiro também não te faz falta, não é, irmã?
— Sim, o dinheiro é algo que nunca tivemos.
— Seu pai apesar de ter se tornado um bandido eu até reconheço que ele fazia o que fazia por todos nós. Ele não queria que os fios morressem de fome como morreu o Francisco.
— Painho era um vêio que foi capaz de tudo pra não deixar faltar comida na mesa. Nisso eu tenho que admirar.
— Como soube que Romão morreu?
— Ele morreu nos meus braços, disse que te amava, mainha, e pediu perdão pra Manuela.
— Perdoa seu pai, Manuela?
— Essa resposta que tem que dar daqui em diante é o Dario. Foi culpa de painho que Levi se vingou matando a Maria Rita.
— A escolha foi minha ter me metido na pistolagem. Cristiano não era nenhum santo. Acho que se alguém o contratasse pra matar painho ou eu, ele matava. Painho não tem culpa, a culpa é minha pela morte da minha mulé.
— Depois que Romão morreu pude ter um pouco de paz.
— A senhora tá morando sozinha?
— Não, a Ester e o Marlon voltaram pra cá e estão morando comigo.
— Cadê a Ester?
Nas terras da fazenda Sertaneja acontecia a inauguração da escola e haviam uma multidão de fiéis e o padre Jarbas à frente.
— Povo de Vila de São Cristóvão, hoje essa escola abrirá suas portas e finalmente o sonho desse futuro santo, o nosso beato o vereador JP Andrade. — o padre falava apontando para uma imagem de gesso ao lado. — Se tornará realidade. Que seguemos o exemplo de fé do nosso novo beato, que foi um homem santo, seguidor dos mandamentos da igreja, um homem de coração puro que covardemente foi assassinado na porta de sua casa porque trazia no peito a verdade. Eu, padre Jarbas, pároco da igreja de Vila de São Cristóvão inauguro a escola vereador João Paulo Andrade. — cortava o laço com uma tesoura.
Todos os presentes bateram palmas.
— Quero apresentar a todos a professora Ester, vem aqui professora dá uma palavrinha com o povo.
Ester junto de Marlon na plateia, saiu e se aproximou do padre Jarbas.
— Eu, professora Ester convido os pais, alunos e a quem tiver interesse de aprender a participar das aulas. Será uma honra recebê-los na sala de aula. Obrigada.
A multidão aplaudiram Ester.
Retornando a varanda da casa de dona do Céu, a matriarca continuava a conversar com seus filhos Dario e Manuela.
— Iago morreu e dizem por aí que foi o prefeito que mandou matar ele.
— A última vez que vi Iago a gente tava na vaquejada e o prefeito veio com uma conversa de me fazer prefeito e casar com a fia dele em troca pra matar o vereador JP Andrade. Eu recusei e fui simbora.
— O Iago matou o vereador. Dias depois encontraram o corpo dele nas margens do rio.
— Pobre menino que se perdeu nessa vida, só de pensar que você poderia ter o mesmo destino, meu fio.
— Eu tive por sorte, mainha. Eu tenho que ir falar com Seu Félix. Cuide de Isabé.
— Pode deixar, fio.
— O cavalo do painho, onde tá?
— No quintal.
— Vou precisar dele. Bença, mainha?
— Deus te abençoe, fio, e te dê juízo.
— Tchau, Manu.
— Tchau, Dario.
No final da tarde, Dario entrou na sala do casarão da fazenda Sertaneja e encontrou Seu Félix sentado na poltrona.
— Seu Félix!
— O que tá fazendo nas minhas terras? Fora daqui, seu fio de rapariga! Fora!
— Eu vou, mas antes o senhor precisa saber…
— O quê?
— Maria Rita morreu.
[1] Possível
[2] Miserável
[3] Pau de arara é um transporte irregular utilizado no nordeste brasileiro.