LUZ E SOMBRA
Ester ficou sentada nos degraus da casa, olhou para o celular que estava sem sinal, chorava angustiada por não conseguir se comunicar com o noivo quando ele apareceu na porteira.
— Marlon? — levantou. — Marlon! Marlon! — correu, abriu a porteira e o abraçou. — Meu amor, que bom que voltou, eu preciso explicar a vocês tudo…
— Ester, eu voltei para que pudesse pelo menos ter uma chance de me esclarecer as coisas.
— Só por isso? Ainda me ama, Marlon?
— Amo, mas preciso analisar se esse amor é mais forte do que a justificativa de sua mentira. Me responda o motivo de você não ter me falado a verdade sobre a sua família?
— Eu vou dizer, porém, aqui não, é melhor a gente conversar em outro lugar.
Dario nadou, subiu com dificuldade no cânion e conseguiu chegar no topo. Por está exausto ele caiu na terra e com a respiração descompassada.
— Quase…chegou…a minha vez…de dobrar o cabo da boa esperança…— viu de longe o Catamarã comendo grama. — Catamarã? Vem, Catamarã! — assobiou.
Catamarã se aproximou de Dario e o cheirava.
— Você me deixou na mão, caba, foi atrás da égua e tive que me virar sozinho com o Sargento. — acarinhava a crina do cavalo. — eu te entendo, quem sou eu pra falar, não é? Estou largando tudo por causa de Maria Rita. Logo que eu que tava indo pegar a minha ceguinha o Sargento veio mim atrapaiar. Eu quase morri, Catamarã, se tu tivesse comigo teria afundado como a moto. — levantou. — Sabe o que vou fazer? Vou matar o Sargento antes que ele me mate. — subiu no cavalo e saiu.
O sol já caía no horizonte e na prainha do rio São Francisco estavam Marlon e Ester sentados em cima de uma pedra e conversando.
— Então, essa é a sua justificativa, amour?
— Sim, minha mãe me deu para a minha madrinha Dona Rosinha porque ela é estéril, pelo menos é que dizem, e fui criada por eles há alguns anos em Maceió. Eu tive que mentir e dizer para as pessoas que eu era uma filha de uma amiga deles que havia morrido. Sofri muito, Marlon, eles me faziam trabalhar em troca do conforto que ofereciam. Se eu não tivesse ido em buscar dos meus sonhos, insistido em estudar e fazer um curso superior pode ter certeza que continuaria sendo criada deles.
— Criada? Escrava não seria a palavra ideal?
— É, tem razão, para eu sair de casa sozinha eles me proibiam, só podia sair se fosse acompanhada por eles.
— Incrível e lamentável que existiam pessoas que acham que podem mandar na vida dos outros e escolher seus caminhos. Eles queriam te manter presa para os servirem na velhice enquanto você tinha que desistir dos seus sonhos e ser infeliz.
— Marlon, quanta gente neste mundo aceita certas humilhações e privações por um prato de comida e um teto. Você nasceu com sorte em ter nascido francês e cresceu com uma outra realidade. Neste país as leis estão apenas nos papeis e em pauta de discussões ideológicas que nunca se realizam na prática.
— Enquanto nós franceses daríamos tudo por uma vista como essa. — olhou para o horizonte.
— Nada é perfeito.
— Não é, mon amour. Você tem vergonha dos seus pais?
— Tenho pena deles, do meu irmão Dario e de minha irmã Tereza. A minha outra irmã Manuela, eu não a conheci ainda.
— Você não pode mudar a realidade deles.
— Eu sei.
— Quando cheguei no Brasil muitas coisas me fascinaram, porém, apesar de existir situações não tão boas, existe algo nos brasileiros que eu não consigo entender.
— O quê?
— Como um país tão rico em belezas naturais e com tanta cultura, o seu povo prefere as vezes negar o que tem e se adequar a cultura dos outros?
— Está falando sobre o americanizar as coisas?
— Também. Vocês sempre dizem à nós gringos: você tem sorte que onde você mora não tem isso ou tem isso ou aquilo. E me parece que existe uma ilusão sobre o mundo lá fora. A França como os demais países considerados ricos também tem o seu lado negativo. O que quero dizer que essa imagem de um mundo perfeito e que o Brasil é a escória do planeta é algo que existe na mente dos brasileiros.
— A corrupção é o mal de tudo no Brasil, Marlon…
— Eu sei, corruptos existem em todos lugares, mas invés de reclamarem e mudarem insistem em serem omissos e continuam neste ciclo vicioso e degradante…
— Marlon, as pessoas desse país já estão acostumadas com essa realidade. A corrupção é como um riacho poluído que todos passam, se incomodam com seu mau cheiro e não fazem nada para exigir que limpem e o pior que essas águas vão para o mar onde os turistas se divertem. Ah! se tivesse tido a sua sorte de ter nascido longe de toda essa podridão.
— Com certeza gostaria de retornar à ela nas férias. — riu. — Esse é o problema enquanto a grama do vizinho for mais bonita do que a grama de vocês vão avançar nesse espírito de fuga e a crença que qualquer lugar do mundo é o paraíso, exceto aqui.
— Todo mundo e todo lugar tem a sua luz e sua sombra.
— Concordo.
— E nós dois como ficamos?
Dario invadiu a casa do Sargento, flagrou Onélia sentada no sofá da sala, ela que deu um grito quando o viu.
— O que faz aqui?
— Vim atrás do corno do teu marido. — mostrou a arma.
— Ah! meu Deus!
Na varanda da casa, o Sargento e escutava a conversa dos dois atrás da porta.
— Ele não tá. Pode procurar.
Dario entrou nos cômodos e retornou para sala.
— Alguém te contratou?
— Não! Ele veio se meter a besta comigo e vou acabar com ele antes.
— Fazemos fazer um acordo: você mata o Alfredo invés do Sargento.
— Como é?
— O que ouviu.
— Vai perder a oportunidade de ficar viúva e se livrar daquele infeliz?
— Dario. — se aproximou provocante. — esse é o meu fetiche, se o Sargento morrer não vai ter graça viver minhas aventuras. — acarinhava o peitoral dele.
O Sargento se contorcia de ódio ao ouvir a conversa.
— Não era o Alfredo o teu…
— Love lindo? Não, eu cansei do Alfredo. — acarinhava os cabelos dele. — Está muito difícil de me desfazer dele porque é pegajoso demais e um covarde. Ele não é como você uma pedra bruta que se eu lapidar direitinho vai virar um gentleman…
— Tu é quenga mesmo, né?
Ela deu uma risada e colocou os braços envolta dele.
— O que acha de ser meu novo love lindo, hein? Vou te tirar daquela lama onde tu mora, vou te dar uma casa e roupas de grife. O que você quer um carro ou uma moto? Vai ter que andar limpinho comigo.
— Acha que sou o quê?
— Garoto de aluguel. Qual o problema, Dario? Não é a sua irmã que é a cafetina? Fica tudo em casa. — riu.
— Prefiro morrer na bala ou de fome do que me deitar com a madame que não passa de uma quenga.
— Quem você pensa que é pra me negar, hein? — ela o roubou um beijo.
Dario a empurrou e ela caiu no sofá.
— As raparigas do bordel da Manuela são santas perto de tu, vagabunda. — saiu fechando a porta com força.
Na varanda, Dario se deparou com o Sargento fumando um cigarro e olhando para a rua.
— Calma, eu não vou atirar em você. — se virou pra ele.
— O que tu quer? — apontava a arma.
— Oxe, eu que te pergunto: o que faz em minha casa? Veio me matar, não foi?
— Foi!
— Eu ouvi tudo.
— Tudo, tudo?
— Sim, desde o começo. Eu quero te dizer que não vou mais te matar, mas quero que devolva o meu dinheiro.
— Oxente, o dinheiro é meu.
— Você não matou o Alfredo.
— Eu tentei, é que ele escapou.
— Dario, não me faça mudar de ideia e te mandar pro inferno. — apontou a arma.
— Sargento, eu tirei o caba de casa, levei pra longe, quando tentei matar a bala bateu no outro canto e ele fingiu de morto. Tava escuro, Sargento, não dava pra ver, mas se quiser eu vou matar esse caba é já.
— Não, não quero que mate o Alfredo. Vá embora daqui e não apareça mais nessa cidade. Vai!
Dario montou no cavalo e saiu em disparada. O Sargento entrou na casa e viu Onélia na sala.
— Sargento, meu amor. — o abraçou. — Como foi o trabalho hoje? Estava morrendo de saudades.
Ele a afastou.
— Fora da minha casa!
Dario seguiu estrada e chegou nas terras da Fazenda Sertaneja. Na sala do casarão estava Seu Félix sentado na poltrona.
— Maria Rita?
Dario entrou.
— O que você faz nas minhas terras, sujeito ordinário?
— Vim atrás da minha mulé, nem o senhor e nem ninguém vai me empatar.
— Já foi tarde. A Rita não mora mais nesta casa.
— Como? Onde ela tá?
— A Rita casou com um fazendeiro lá de Sertão de Maria[1].
— Não é possívé[2]!
— Sim, ela casou e tá muito bem casada. Se não acredita pode procurar ela por aí e não vai achá-la. Eu te avisei, caba, que a Rita era muita areia para o seu caminhão. Já imaginou a filha de um fazendeiro casar com um pistoleiro?
Dario ficou devastado com aquela notícia e dentro de si uma mistura de ódio e decepção o consumia. Ele não conseguia aceitar que o amor que Maria Rita sentia por ele fosse tão fugaz ao ponto dela não ter o esperado e se casado com outro. Ele lembrou amargamente o conselho de seu pai.
— Onde está a Eugênia?
— Foi com ela e o marido.
Imediatamente Dario saiu correndo da fazenda e subiu no cavalo avançando pela estrada.
Na rua estava o Sargento em pé, as roupas e os pertences de Onélia no chão, ela ajoelhada na frente dele, ao redor os vizinhos assistiam aquela cena e suas crianças que pegavam as peças de roupa e faziam zombarias.
— Por favor, meu amor, me perdoa. — chorava com as mãos juntas.
— Não! Que toda Vila de São Cristóvão saiba quem você é sua adultera.
— Oxe, demorou foi demais. Todo mundo já sabia. — disse uma vizinha cochichando.
— Esse é corno manso. — comentou outra vizinha em voz baixa.
— Também acho. — falou o vizinho.
— Vá atrás do teu amante e não ousa a botar os pés nesta casa! — entrou na casa e fechou a porta com força.
No bordel de Manuela, Dario entrou no estado de revolta a pensar que quase desistiu da sua vida de bandido por causa de Maria Rita, se sentia enganado. Anoiteceu e ele afundou na bebida, na jogatina, subiu com duas prostitutas para um quarto e ficou com elas.
Amanheceu e Manuela estava no balcão do salão junto com algumas prostitutas e a Wandeca quando entrou quatro policiais.
— Bom dia.
— Bom dia, o bordel apenas funciona no começo da noite. — disse a cafetina.
— Estamos com um mandado de prisão. — o entregou para ela.
— Contra quem?
— Dario, e sabemos que ele está aqui e não se atrevam ajudá-lo a fugir porque vai sobrar para as senhoritas.
No quarto, Dario dormia nu na cama com uma prostituta e a outra deitada no divã. De repente os policiais invadiram o quarto.
— Dario!
As prostitutas acordaram assustadas.
— Acorda, Dario. — ela o balançou.
— O quê? Me deixa dormir um pouco…depois vou querer mais…— abriu os olhos e se deparou com os policiais. — Que diacho é isso?
— O senhor está preso. — respondeu o policial.
[1] Sertão de Maria cidade fictícia pertencente ao romance Senhora do Sertão da mesma escritora.
[2] Possível