CÂNIONS

 

 

Ester entrou no quarto e encontrou a mãe deitada.

— Mãe?

Dona do Céu sentou na cama, enxugou as lágrimas com a borda do vestido e olhava para baixo.

— O que foi fia? Tá com fome?

— Não, mãe. Vim aqui pra gente conversar. — sentou. — Quero explicar tudo que aconteceu lá na varanda com o Marlon.

— Eu já entendi, fia. — olhou nos olhos dela e segurou uma de suas mãos. — mainha não tá com raiva de você não. Foi meior assim, tu não dizer a verdade a ninguém de onde tu veio. Tem muita coisa que tu não sabe. — acarinhava as mãos da filha. — Essa família não presta. Eu te dei pra ter uma vida meiorzinha e dos meus fios só você é que foi agraciada.

— Mãe, já sei sobre a vida de Dario e do pai. Imagino como deve ser difícil pra senhora passar a vida inteira vivendo com eles e com medo.

— A gente se acostuma. — deu um sorriso forçado. — Teu irmão foi embora.

— Eu vi.

— Mais uma vez minhas orações foram ouvidas, Deus é muito bom com essa vêia aqui.

— Será que ele vai conseguir sair dessa vida do crime? Pode ser que ele desista e continue sendo o que era.

— Eu já me conformei que seja qual for o caminho de Dario, eu vou perder ele. Mãe de bandido só tem essa certeza na vida: enterrar o próprio fio.

— Por que não sai dessa casa? Vem comigo.

— Vou não, fia, vou não. Meu lugar é com o Romão até quando Deus me chamar.

— Tenho tanta pena de você, mamãe. — acarinhou o rosto dela.

— Não sinta, fia. Esse é o meu destino e você deve ir atrás do seu. Vá procurar teu noivo e fale com ele.

— Marlon já deve ter ido embora da cidade.

— Vá atrás dele, não o deixe ir. Você o ama?

— Sim, muito. Eu vou atrás de Marlon e quem sabe eu consigo fazer ele me perdoar. — levantou.

— Antes de ir, me diga como sabe que Dario e teu pai são tudo bandido?

— O mudinho que de mudo não tem nada me contou. Já sei que alguém contratou Dario para o matar.

— Então, o Dario o matou?

— Não sei e nem quero me meter mais nesse assunto. Vou atrás de Marlon, se ele ainda tiver aqui e a gente se acertar, vou trazê-lo para a senhora e o pai conhecê-lo melhor. Tchau, mãe, peça os seus santos que Marlon me perdoe. — saiu apressada do quarto.

— Vou orar, fia, que Deus te abençoe.

Na cidade, o Sargento parou em na entrada casa do jornalista, desceu da viatura e viu Alfredo em pé na varanda e com alguns populares ao seu redor.

— Sargento!

— Fala, Alfredo, como está? Me disseram que os vaqueiros o encontraram longe da cidade e desacordado.

— Foi você! — apontou o dedo para o policial. — Você que mandou me matar.

Os populares começaram a cochichar.

— Enlouqueceu? Acho que o tempo que você ficou perdido por aquelas bandas te deixou desorientado. — deu uma risada disfarçando o ódio.

— Assuma o que faz e não seja covarde. Você contratou Dario pra me matar.

— É mesmo? Tem certeza que eu iria contratar aquele vagabundo que caço desde que era menino amarelo e catarrento pra te matar? Você não me conhece, jornalista, jamais me sujeitaria a uma coisa dessas.

— Mentiroso! Você é tão bandido quanto ele!

— O senhor Alfredo me respeite e controle esse teu ímpeto. Sabe lá quem foi que contratou o pistoleiro e por qual motivo. O senhor não tem provas, se continuar me acusando e me desacatando, eu vou prendê-lo. — retornou a viatura e saiu.

Os populares voltaram a cochichar.

— O que foi? Vocês não perderam nada aqui. Vão tudo cuidar de suas vidas! Vão! — gritou o jornalista.

No casarão da fazenda Sertaneja, Maria Rita estava sentada no banco do jardim e Eugenia ao lado.

— Dario nunca mais voltou.

— Eu te falei, menina, que ele não era homi pra você.

— O perdi pra pistolagem, o perdi. — começou a chorar. — o nosso amor não é tão forte quanto o desejo dele de matar por dinheiro.

— É esse o preço de quem se envolve com bandido.

— Ele foi embora, mas deixou em mim um pedaço dele. — acarinhava em seu ventre.

— A menina não vai conseguir esconder que está prenha por muito tempo. O Seu Félix vai perceber cedo ou tarde.

— Já está próximo do momento de dizer ao painho que estou grávida de Dario.

— Nem quero imaginar a reação do patrão.

— Ele vai ter que aceitar. Eu estou pronta pra enfrentar o que tiver que enfrentar pelo meu filho.

— Que Deus proteja você e essa criança.

— Falando em painho onde ele está?

— Ele está lá na construção da escola junto com o vereador JP Andrade e o padre Jarbas.

— Me alivia saber que meu filho vai crescer ao lado dessa escola. Eu estou pedindo em minhas orações que Deus não permita que o meu filho ou filha nasça com essa minha sina da cegueira.

— Não vai, fia, não vai. Confia que teu fio ou fia vai nascer enxergando as coisas.

— Assim espero, Eugenia.

Acontecia a inauguração da construção da escola nas terras da Fazenda Sertaneja, estando presentes: padre Jairo, o vereador JP Andrade, o Seu Félix, os coroinhas, as cinco beatas e uns duzentos fiéis.

— É com muita honra que inauguramos os primeiros trabalhos da construção desta escola e que não seria possível pelos corações caridosos do vereador JP Andrade e de Seu Félix, que são exemplos de santidade, de amor ao próximo que é o maior ensinamento do Cristo. É por isso que nós a comunidade da paróquia de Vila de São Cristóvão devemos nos unir contra a heresia, o desrespeito a verdadeira igreja do Senhor. Sabemos quem são contra nós e que eles estão unidos ao prefeito Zé Barbosa, que é o verdadeiro atraso desde a fundação dessa cidade. — o fiéis ficaram assustados pelo comentário do pároco. — Eu não tenho medo, não tenho papas na língua, enquanto o Pai eterno me dê forças nada poderá me calar!

Os fiéis começaram a aplaudir o padre.

— Por favor, essas palmas também devem ser para o vereador JP Andrade e Seu Félix, um salve de palmas para os dois, por favor. Eu vou passar a palavra ao vereador. — o entregou o microfone.

— Bom dia, povo de Vila de São Cristóvão, essa obra foi um chamado de Deus. Eu me lembro como hoje quando em uma noite o Senhor tocou o meu coração ao após passar pela única escola do Município totalmente depredada, entregue as moscas e aos bichos. Um desrespeito total as crianças que são o futuro da nossa cidade e dessa nação. Me lembrei principalmente as crianças carentes que vivem na praça principal pedindo esmola e cheirando cola. — fingiu choro e tirou um lenço do bolso do paletó. — É angustiante, é triste ver que aquelas criancinhas são presas fáceis para os bandidos, os traficantes, porque o tráfico que era coisa da capital ou das grandes cidades como São Paulo e o Rio de Janeiro chegou ao nosso tão humilde e inocente sertão. Então, conversei com Seu Félix, meu amigo do peito e fiel de todas horas que decidi comprar um pedaço de sua terra para realizar esse sonho de oferecer a única escola digna para essa cidade e mesmo sabendo que essa função é o dever da prefeitura para com seus cidadãos. Comprei esse pedacinho de terra, vou construir essa escola e farei mais…muito mais. Não é preciso decidimos nem pela direita e nem pela esquerda e sim devemos unir a nossa força do bem e juntos vencer o autoritarismo da família Barbosa e o terrorismo dos retirantes e para que isso ocorra conto com o voto de vocês vilacristoenses para prefeito de Vila de São Cristóvão! É por vocês: meu povo!

— É por isso que eu falo e repito quantas vezes for preciso: pra prefeito de Vila de São Cristóvão é JP Andrade, o homem faz! — gritou Seu Félix no microfone.

— É JP Andrade na cabeça! — gritou uma fiel.

— É JP! — gritou outro fiel.

— JP! JP! JP! — gritavam os fiéis.

— Igreja, se queremos trazer de volta nossos irmãos seduzidos pelas forças do mal daqueles que negam nossos preceitos, voltem em JP Andrade, o homem faz! — gritou o padre. — Vereador, te dou a honra de colocar o primeiro tijolo. — entregou o tijolo.

JP Andrade colocou o tijolo na terra e vibrou junto com os fiéis, o padre e Seu Félix.

No centro da cidade, Dario cavalgava quando de repente no outro lado da rua apareceu o Sargento dentro da viatura.

— Dario, vou te caçar, seu infeliz das costas oca!

— Eita boba é o Sargento, Catamarã! Corre, Catamarã, Corre!

Dario saiu cavalgando em disparada pela rua enquanto a viatura o perseguia.

— Não adianta, correr, Dario, eu vou te caçar e te esfolar igual espinha na cara do caboco!

Dario cavalgava desviando das pessoas, entrou numa rua onde havia algumas barracas de feira, então, o Sargento seguiu pelo outro lado cantando pneu.

— Você tá na minha mão, Dario, você não tem por onde escapar.

Passando ao lado de uma carroça, o Catamarã parou ao sentir a égua no cio e foi em direção a ela.

— Pra onde você tá indo, Catamarã? É pra lá, caba, é pra lá. — tentava o fazer voltar para o caminho. — Não é hora de namorar, homi, deixa essa égua pra lá.

Catamarã não deu ouvidos as ordens de Dario e ficou cheirando a égua quando o dono dela viu aquela cena se exaltou.

— Ei, macho, tire teu cavalo de perto da minha égua!

Vamo simbora, Catamarã, não é hora de correr atrás de rabo de saia.

Na esquina, o Sargento desceu correndo da viatura.

— Eu vou te matar, seu fio de rapariga! — gritou o Sargento.

— Danou-se diacho! Vou chispar daqui é agora. — desceu do cavalo, desviou das pessoas e entrou dentro do bordel de Manuela.

Ao entrar no bordel, Dario corria pelas mesas e desviou das prostitutas e da Wandeca.

— O que é isso? — perguntou uma garota assustada.

— Segura essa pra mim, é o Sargento querendo me matar. — subia as escadas.

O Sargento entrou.

— Cadê aquele fio da molesta? Dario, eu vou te matar, te empalhar e colocar na porta da delegacia!

As prostitutas e a Wandeca se aproximaram do Sargento.

— Oi, Sargento, veio atrás de diversão? — perguntou uma prostituta.

— Onde está o Dario?

— Não prefere nós?

— Vamos fazer uma festinha?

— Eu adoro um homem de farda. — disse Wandeca.

— Sai da minha frente, quengas, estão me atrapalhando. — as empurrou e subiu as escadas. — Dario! Vem cá, seu fio da peste!

Dario corria pelo corredor quando viu uma porta entre aberta e entrou. No primeiro andar, o Sargento olhava para o corredor vazio e começou abrir as portas dos quartos.

— Cadê tu, macho?

Uma porta se abriu e Manuela saiu.

— O que está acontecendo aqui? O que o senhor está fazendo no meu estabelecimento, Sargento?

— Vim matar o teu irmão aquele fio de rapariga.

— Olhe lá, a única rapariga da família sou eu, então, deixe minha mãe fora disso aquela mulher é uma santa.

Dentro de um dos quartos, Dario se deparou com uma prostituta e um cliente na cama.

— Espera um instantezinho. — o casal ficou parado e olhava para ele sem entender o que estava acontecendo enquanto abria a janela. — Podem continuar mandando ver, macho. — olhou pra baixo e desceu pelo telhado.

 No corredor, Manuela e Sargento discutiam.

— O senhor não trouxe nenhuma ordem judicial pra entrar no meu bordel.

— Eu entro onde eu quiser!

— O Dario não está aqui, mas se você quiser pode procurar pelos quartos e a começar pelo meu.

De repente se escutou um barulho vindo de fora.

— Que barulho foi esse? — o Sargento entrou no quarto de Manuela e rapidamente foi a janela.

O Sargento olhou da janela o Dario correndo pela rua.

— Eu vou te matar, seu infeliz! — tirou a arma e atirou, mas os tiros bateram no poste. — tu não escapa, condenado!

Milton pregava na igreja lotada de fiéis.

— Moises vendo o Faraó com seu exército se aproximar, tocou o cajado na água e abriu o mar vermelho…

Dario entrou correndo pelo meio da igreja e saiu pela porta do lado.

— O que significa isso? — perguntou o pastor.

O Sargento entrou.

— Eu vou te matar, Dario! Não adianta se esconder como catenga[1]!

— Ele foi pra lá, Sargento, pra lá! — apontou para a porta que o cunhado saiu.

Então, o Sargento entrou na porta ao lado.

— Onde eu parei? — perguntou o pastor aos fiéis.

Na funerária, Dario entrou e viu o dono, um senhor baixinho e de bigode, que passava uma flanela em um caixão.

— Ei, caba, me ajuda, o Sargento tá atrás de mim.

Não me meta nos teus Imbés. [2]

— Ei, deixe dessa, tu já ganhou muito dinheiro comigo com os caba de peia que eu matei.

— Nisso você tem razão. — olhou para os lados. — sócios?

Alguns minutos depois o Sargento entrou na funerária.

— Seu Zé, onde está o Dario? Me disseram que ele entrou aqui.

— Sei não, doutor. — o dono estava sentado à mesa e ouvindo rádio.

— Tem certeza, Seu Zé?

Oxe, tenho, se aquele caba tivesse entrado aqui eu seria o primeiro a denunciar.

Dentro de um caixão em pé estava Dario.

— Eu vou dá uma olhada lá dentro. — disse o Sargento seguindo em direção a uma porta dos fundos.

— Pode olhar tudinho, doutor.

Dario se encontrava sem ar, abriu o caixão, a tampa caiu no chão fazendo um barulho e saiu correndo para a fora da funerária.

Fio da peste! Dario! — gritou o Sargento atirando e os tiros vazaram nos caixões.

— Não, os meus caixões, não! Minhas mercadorias! — o dono botou as mãos na cabeça em desespero.

Alguns caixões caíram no chão e o Sargento tentava desviar deles e Dario corria pela calçada. Logo mais à frente numa loja de roupas havia um casal conversando.

— Quem te viu e quem te ver.

— É, eu sair do sertão com a mão na frente e a outra atrás e hoje sou patrão em lá em Maceió. E aí, gostou da minha moto, galega[3]? — subiu na moto.

— Sim, ela deve ter sido muito cara.

— Não pra mim. — riso. — sabe onde comprei?

— Deixa de enganar a menina, homi, tu comprou nada, essa moto é roubada. — disse um motoboy estacionando próximo ao casal.

— Oxe, vêi, tá doido, é?

A mulher saiu irritada.

— Espera, galega, é mentira dele! Espera!

Dario empurrou o dono da moto.

— Sai, peste! — subiu na moto e saiu em alta velocidade.

— Minha moto! Devolve a minha moto, seu filho da puta!

— Já era, caba, ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão. — disse o motoboy rindo.

Na viatura o Sargento continuava a persegui o Dario que estava sob a moto dirigindo por uma longa estrada.

— Não adianta fugir, Dario, daqui pra frente é o Velho Chico.

No final da estrada, Dario se aproximava dos cânions do rio São Francisco, e depois olhou para atrás e viu a viatura.

— Oxente, diacho, eu tenho que me arriscar. Que meu Padim Padi Cíço me proteja. — beijou o escapulário e aumentou a alta velocidade.

Dario com a moto pulou do cânion e caiu nas águas do rio São Francisco, e o Sargento assistiu aquela cena dentro da viatura.

Caba doido da porra.

A viatura parou próximo a borda do cânion, o Sargento saiu, olhou para baixo e viu apenas a água.

— Virou comida de piranha. Queime no inferno, Dario. — entrou na viatura e saiu.

[1] Catenga significa lagartixa na gíria alagoana.

[2] A expressão “não me meta nos teus Imbés” quer dizer que o indivíduo não quer se meter em problemas alheios.

[3] Galega na gíria alagoana significa mulher loira.

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