Troca de favores
O pistoleiro tentou pegar a arma que estava pendurada no cós das calças.
— Se pegar a sua arma eu vou estourar tua cabeça, seu vagabundo. — pegou a arma dele. — É melhor prevenir do que remediar. — colocou a arma dentro do cós das próprias calças.
Naquele momento o Dario não sabia distinguir se estava alucinando ou se aquela ameaça era real devido ao efeito da bebida. A voz era do Sargento, um homem com idade por volta dos cinquenta e poucos anos, pardo, olhos castanhos escuros, vestia uma farda de acordo com sua patente, estatura mediana, usava uma boina, seus cabelos eram negros e lisos com um corte militar e bigode.
— Venha cá, porra! — o puxou pelo cabelo e o arrastou para o chão. — Vai ficar calado? Seu verme? — deu um chute do lado das pernas e apontou a arma no rosto de Dário.
— Se é pra me matar, me mate, caba. Acabe logo com isso.
— Vixe, quando a esmola é demais o santo desconfia. O que foi, caba? Afrouxou foi? Pelo bafo encheu o rabo de cachaça.
— É mulé, o probrema é mulé. Ela levou minha coragem de matar qualquer caba de peia como você. Me mate porque sem Maria Rita não vevo[1].
— Deixe de bestagem, homi. Toma vergonha nessa tua cara lisa. — deu um tapa no rosto dele. — Tu é Dario o pistoleiro mais temido do sertão de Alagoas, eu te caço desde quando você era menino amarelo, catarrento e com o bucho de verme. Não é possível que vai se tão fácil te mandar pro quinto dos infernos?
— Me mata! Eu não quero mais vevé sem a minha ceguinha, minha Rita!
— Por isso que digo mulher é a peste. É capaz de levantar e derrubar um cidadão e falo em todos os sentidos. É por causa disso que tô atrás do teu serviço.
— Como é que é?
— O que tu ouviste. Você vai matar o ordinário, o fio de rapariga, o condenado que tá bulindo com a minha mulher.
Dario deu uma gargalhada.
— Tu é corno! Corno manso!
— Corno é você e teu pai que um dia irei de pegá-lo também. Agora levanta, porra! Levanta!
— Doente! se tu é tão caba macho por que você mesmo não mata esse sujeito? — levantando.
— Porque não vou sujar o meu nome e nem a minha carreira pra matar aquele caba.
— Até parece, tu é polícia, poderia ter sido um tiro que ninguém sabe de onde saiu que atingiu o pé de pano que anda de safadeza com tua mole.
— O caba não é qualquer cabrobó como tu que se morrer ninguém vai dá falta. Ele é um jornalista que tem costas quentes, sujeitinho cheio das influências que se aparecer morto vai ter gente que só vai sossegar até encontrar quem o matou.
— Oxe! Tu quer me arranjar probrema pra mim? Mate tu, eu não.
— Vai matar sim senhor.
— Por quê? Vai me obrigar? Quem é tu, hein, coisa lorde?
— Vou te pegar bem. Será tanto dinheiro que você nunca viu na tua vida. Quer deixar essa vida de miséria, Dario? Essa é a oportunidade.
— Dinheiro…eu preciso sim, mas a Rita não aceita essa minha vida de pistoleiro.
— É por isso que ela te largou?
— É, ela não quer que vevo essa vida de bandidagem e a entendo, se não vevé disso do que vou vevé?
— Esse dinheiro que vou te pagar é o suficiente pra você montar um negócio ou quem sabe comprar uma terrinha e criar uns gados, hein? Essa é a sua oportunidade de virar patrão, Dário, e sair da pistolagem e ter a sua Rita volta.
— O que mais quero é a minha Rita comigo.
— O que um homem é capaz de fazer para servir a mulher que ama? Queremos cobri-las de ouro, conforto, viver do bom e do melhor e em troca recebemos uma punhada nas costas quando descobrimos que está nós traindo com outro. Imunda! Traidora! Rapariga!
— Quanto vai me pagar?
— 50 mil. — pegou um saco de couro que estava dentro da viatura ao lado. — está bom para o começo?
— É muito dinheiro. — pegou o saco, o abriu e viu as notas. — nunca vi tanto dinheiro na minha vida.
— Será seu se matar o miserável. — apontou a arma na cabeça de Dario.
— Qual é o nome do sujeito?
— Alfredo Dias, eu quero que tu zere os dias dele.— riu. — Depois de morto vou te pagar outros 50 mil e assim tu resolve o seu problema e eu resolvo o meu. A Onélia vai aprender que pra viver do que ofereço e que está sob o meu cabresto.
— Não sei o que vou fazer com tanto dinheiro. Eu vou aceitar.
— Fez a melhor escolha. Nessa brincadeirinha toda tu vai sair com 100 mil paus. Tá mais rico que muitos diplomados por aí.
— Tá, tudo acertado. Agora me devolve a Maria Quitéria.
— Quem?
— A Maria Quitéria é a minha arma.
— Ah! Sim. — entregou a arma para Dario. — não vai querer saber de onde veio tanto dinheiro?
— Eu não. Isso é probrema seu. — carregava as balas na arma.
— Cabeça no lugar, menino. Saiba empregar bem o dinheiro que tu vai receber. Dê uma vida melhorzinha pra tua mulher e não gaste tudo com ela não. Gaste com você e se divirta. Eu devia ter feito isso na minha juventude e agora é tarde demais. É conselho de um velho inimigo. — ajeitou a boina. — O sujeito mora na cidade. É só tu perguntar onde ele mora. Vou passar umas semanas fora e quando eu voltar quero esse caba morto. — entrou na viatura e saiu.
— Tu tá vendo isso, Catamarã? — aproximou do cavalo com notas de dinheiro. — É muito dinheiro. Estou rico e vou ficar mais ainda. A Rita vai voltar pra mim. Oh! Se vai, mas antes de mandar o caba dobrar o “cabo da boa esperança” vou fazer uma visitinha a minha irmã Manuela.
Anoiteceu e Dario entrou no bordel de Manuela, o local ficava na parte do centro da cidade. O ambiente se encontrava à meia-luz, havia certo anacronismo como os móveis do lugar desde as cadeiras e mesas no estilo colonial com estofados de camurça vermelha, um bar, alguns palcos de poli dance, luzes coloridas e gelo seco que ajudava a complementar as performances das garotas. Havia uma escada de ferro preta que levavam ao primeiro andar onde dava acesso aos quartos.
O bordel de Manuela não havia preconceito com os fregueses desde homens da alta cúpula da sociedade até um simples agricultor. O que importava ali era satisfazer a vontade do cliente e em troca, o que não poderia ser diferente, o dinheiro.
Dario caminhou pelo ambiente e viu seu primo Iago sentado à mesa ao lado de duas mulheres seminuas.
— Olha quem encontro por aqui? Vem cá, caba! — disse Iago em voz alta.
Enquanto Dario se sentava à mesa ao lado do primo, no palco a transexual conhecida como Wandeca cantava e dançava em cima de um poli dance um forró romântico. Ela vestia com um maiô platinado azul, tinha pele parda, cabelos loiros longos de tranças, olhos verdes, maquiagem forte, batom rosa-claro, usava bijuterias brilhosas e um salto estilo plataforma de cor prateada.
— Cansou de chorar no pé da aroeira por causa da ceguinha? — deu uma risada.
— Choro não enche barriga.
— É isso, aí, primo. Pra quer amarrar em uma mulé se podemos ter de todas essas coisinhas lindas aqui? — deu um beijo em uma das garotas, passou a mão na perna da outra e a beijou.
— Não quero pensar em mulé tão cedo. Só vim pra jogar e beber. Vai uma sinuca?
— Vamo sim. Se tu ganhar eu pago uma rapariga pra você, e se eu ganhar é tu que vai pagar uma rapariga pra mim.
— Fechado. — acendeu um cigarro.
Os dois vão à mesa de sinuca e as garotas os acompanhavam. No poli dance a Wandeca terminou o show e os clientes nas outras mesas bateram palmas para ela.
— Obrigada, vocês são uns amores e cada um tem um cantinho no coração de Wandeca. — sorriu, mandou beijos e saiu do palco.
Ela caminhou em direção a mesa de sinuca onde estavam Dario e Iago jogando.
— Dário! Maninho, eu sentir saudades de você, baby. — o abraçou de lado e encostou o rosto no ombro dele.
— Eu também, Wandeca. Onde está a Manuela?
— A patroa tá por aí. — viu um homem de terno e de óculos escuros entrando no salão. — Chegou o meu príncipe azul. Ah! Como estou? Estou linda e maravilhosa?
— Deixe de fogo, viado! — gritou Iago.
— Sim, sou viado com muito orgulho, algum problema? Você deve tá doido pra apagar meu fogo.
— Eu não. Não curto tua laia não. Eu gosto é de mulé! — deu um soco na mesa.
— Oxente! Não vou perder o meu tempo batendo boca com macho escroto. Vou embora pegar esse corre. Beijos de gloss pra quem fica, exceto pra você Iago. — deu gole em um drinque que estava em cima da mesa, pegou o cigarro da boca de Dario e saiu.
Wandeca passou por Manuela, que usava um top preto, short jeans e robe vermelho transparente. Seus cabelos eram longos cacheados e castanhos, pele branca, olhos castanhos, maquiagem marcante e batom vermelho sangue. A dona do bordel herdou aquele estabelecimento da antiga dona Josefina que a acolheu após ter fugido de casa.
— Como estou, patroa?
— Linda, Wandeca, arrasa.
Manuela se aproximou da mesa de sinuca enquanto Wandeca estava empolgada com o cliente e subiu com ele para o quarto.
— Não gosto desse viado desaforado.
— Tu provocou, Iago.
— Ora, ora, quem encontro por aqui: os dois gastando seus dinheiros sangrentos em meu bordel. Não quero problemas com mainha, Dario.
— Oxe! Sou cliente como qualquer outro.
Iago fez uma jogada e todas as bolas caíram no buraco.
— Eita boba serena! Eu ganhei! Vai ter que me pagar uma rapariga, Dario!
— Tá bom, vou pagar. Escolhe uma aí. — pegava o dinheiro dentro do bolso.
— Uma só? Não pode ser às duas?
— Deixa de esperteza, sujeito. O trato foi uma e não duas. Acha que sou besta? Mal saiu das fraldas já que me dá o chapéu? — pegou o dinheiro e jogou na mesa. — Tá aí, toma.
Iago pegou o dinheiro.
— Vou escolher tu morena. — botou o dinheiro dentro do top dela. — vamo. — os dois saíram de mãos dadas e subiram para o quarto.
— Tô azarento até no jogo.
— É, estou estranhando você perder, sempre foi bom na sinuca. — disse Manuela.
A outra prostituta se encostou no ombro dele.
— Eu posso mudar a sua sorte e será por conta da casa. — o rouba um beijo.
— Hoje não fia, hoje não.
Ela saiu decepcionada.
— O que houve com você, irmão? Nunca foi de negar mulher e por muito menos ainda sendo 0800[2].
— É por causa da Rita.
— Ah! Já entendi. Quem é essa Rita que laçou o pistoleiro mais temido desse sertão?
— Fia do Seu Félix. Ela não aceita essa minha vida de bandido.
— Concordo com ela. Só eu sei o que ser mulher de homens como você. — demonstrou afeição de ressentida. — Como está a mainha?
— Em casa. Ela fica lá ajoelhada na frente dos santos pedindo pela gente, pelo painho…
— Não quero saber dele.
— Esquece isso, Manuela.
— Jamais! Nunca vou esquecer o que ele fez comigo. Ele destruiu a minha vida e os meus sonhos com o Cristiano…— tentava conter o choro. — Não quero mais que fale desse homem…
— Esse homi é nosso pai.
— Seu pai! Eu não tenho pai! — gritou com fúria e chamando atenção dos clientes.
— Está bem, não falo mais disso. Não vi mais a Tereza.
— De vez em quando a vejo e está do mesmo jeito vivendo com aquele cachaceiro que virou crente. Quando ele me encontra na rua começa a falar umas palavras estranhas parece que tá me amaldiçoando e proíbe Tereza e os meninos de falarem comigo e muito menos olhar pra mim.
— É, ainda vou dar um susto naquele caba se ele se atrever bater na Tereza de novo. Painho não quer se meter e fica me empatando de fazer alguma coisa dizendo que briga de marido e mulé não se mete a colé. Eu não aceito essa situação, não aceito mesmo. Quero ver aquele fio de rapariga enfrentar um homi como eu.
— O que faz aqui na cidade? Algum serviço?
— Sim, eu vou ficar por aqui jogando e bebendo um pouco e mais tarde quero um quarto pra descansar, amanhã preciso acordar cedo.
— Patroa! — gritou o barmen atrás do balcão do bar.
— Vou ver o que ele quer.
De madrugada, Dario entrou em um dos quartos, o local tinha paredes vermelhas, uma cama de ferro preta com o colchão coberto de lençóis brancos de cetim, um espelho no teto refletindo a cama, um lustre clássico dourado, um divã preto ao lado da porta e uma janela para a rua. Ele fechou a porta, se sentou na cama e tirou as botas.
— O que será que Rita tá fazendo agora? Deve tá dormindo ou será que já tá com outro? Não outro não porque ela nem sai daquela fazenda e vive enfornada lá. Eu vou matar esse tal de Alfredo Dias e quando o Sargento me pagar o resto eu vou pegar ela pra mim, construir uma casinha e criar uns gadinhos. — tirou a arma de dentro do cós das calças. — Maria Quitéria tu é única que aceita quem eu sou. — deitou. — se a Rita fosse como você seria bom demais.
Seus olhos pareciam pesados e vencidos pelo sono e das altas doses de bebidas consumidas e aos poucos adormeceu até que ouviu uma voz feminina.
— Dario. O que está acontecendo? Não me ama mais?
— Quem é? — permaneceu de olhos fechados.
— A única que te ama…te aceita…
Ele abriu os olhos, se virou para o lado e viu a figura de uma mulher deitada ao divã apenas vestida com um robe preto transparente, pele branca, olhos negros, cabelos castanhos ondulados e lábios carmins.
— Quem é tu, diacho? — sentou assustado na cama.
— Maria Quitéria. — deu um trago no cigarro.
— O quê? Maria Quitéria é a minha arma. — procurou a arma e não encontrou ao lado. — Que boba é isso? Quem foi o caboco miserento que pegou a minha arma?
— Eu sou a sua arma. — levantou e ficou de frente a ele. — Tua mulher, eu fiz quem você é. Todos temem você por causa de mim, Dario. — o colocou a face dele entre seus seios e acarinhava seus cabelos. — Eu matei a tua fome e a tua sede. — ele amamentava um dos seus seios. — Isso! Sou eu que te sustento e te fortaleço. É em meus braços que você encontra o consolo, eu sou o seu firmamento, mas estou tão decepciona. — ele a olhou em seus olhos. — sou capaz de aceitar tudo por você, Dario, porém não aceito que me abandone por causa da outra.
— Maria Rita?
— Sim, por causa dela você se esqueceu de mim. — agachou e ficou entre as pernas dele. — uma mulher é capaz de tudo até das piores humilhações para ter do seu lado o homem que ama. Eu não permito que essa outra destrua nosso lar, a nossa união, somos unha e carne, somos um só.
— Eu a amo. Ela é a minha mulé e você é…
— Eu sou a tua esposa! — levantou e se afastou. — Sou eu que te levanto e a única que pode te destruir. Aí do homem que desprezar e abandonar a mulher da sua vida, pois viverá um tormento é como ser expulso do paraíso e exilado no inferno. Quem sabe assim aprenda a valorizar a mulher que tinha? Mas será tarde demais para se arrepender.
— Eu amo a Rita.
— Sem mim você não é ninguém! Vai querer morrer de fome como teu irmão?
— Esse serviço será o último.
— Não vai porque você não quer admitir que gosta dessa vida. Você tem sangue ruim. Você é bandido e gosta de matar! Você é um matador e não tem mais jeito pra você. Vai morrer na bala caído nesse sertão sendo comido pelos urubus e os vermes.
— Não! eu não gosto disso! Eu mato porque eu preciso!
— Mentiroso! Quem você quer enganar, a cega? — pulou em cima dele. — Você é um assassino. — abriu o robe e mostrou o seu corpo nu coberto de manchas cinzas. — veja o meu corpo marcado das pólvoras das balas de quem você matou. Eu carrego em mim a dor, a morte deles e as lágrimas de quem os amam.
Dario passou mão pelo corpo dela onde estavam as manchas de pólvora.
— Você tem razão, Maria Quitéria. Eu não tenho jeito. Gosto de ser bandido e nunca deixarei de ser.
— A fome nunca foi desculpa para matar. Você é assim, sou eu que te amo e te aceito do jeito que é. Qual homem que não quer uma mulher assim? — o beijou. — que aceite suas manias, fantasias e aventuras? Você pode ter qualquer mulher, mas não quero que se aproxime de Maria Rita. Eu preciso de você, Dario. — o beijou. — Sinto sua falta. — uma lágrima caiu do seu olhar.
— O que quer que eu faça? — acariciava o corpo dela.
— Me ame.
Ele a tomou com um beijo e adentrou de forma brusca, aquele ato sexual era um misto de alucinação e desejo. Ela o despertava as camadas mais baixas de sua personalidade o fazendo se comportar como um animal cativo aos caprichos de sua dona. Aquele sonho é a construção da dúvida de Dário se continuaria com a vida da pistolagem ou deixaria todo seu passado sangrento para viver com Maria Rita, porém, o que poderia acontecer ao escolher um desses caminhos? Esse medo do futuro o amedrontava e o trazia ansiedade. Maria Quitéria representava a vida do crime e ao imaginar tendo relações sexuais com ela transformada em mulher poderia ser interpretado como uma reconciliação de um casal que após uma noite de amor dissolve, nem que seja de forma superficial, a crise conjugal. O que rasgava ao peito de Dario é o seu amor por Maria Rita que no exato momento desta estória ele revelou ter medo do amor, do crime ou quem sabe mais ainda da morte. Maria Quitéria ou a vida da pistolagem é como um cônjuge que desesperadamente tenta salvar um casamento já desgastado enquanto ele é a outra parte que está a decidir pelo divórcio e buscar construir um novo amor contra pessoa ou tentar dá mais uma chance e ressuscitar os tempos de ouro da união.
Chegou a manhã e Dario despertou e viu seu reflexo no espelho do teto e estava deitado na cama e nu ao lado da arma. Após alguns minutos ele desceu as escadas e as grandes janelas se encontravam abertas trazendo a claridade ao salão, quando viu a Wandeca de costas para ele e encostada na mesa de sinuca.
— Wandeca!
— Não se aproxime. — estava com a voz embargada.
— Oxe, por quê?
— Meu rosto está horrível. — virou o rosto e tentou cobrir com uma mecha de cabelo.
— O que houve? — se aproximou e viu o rosto dela deformado. — Oxente! Quem fez isso com você?
— Eu pensei que tinha encontrado um príncipe encantado, como fui tola! Eu me apaixonei e achei que finalmente a vida pudesse ser boa comigo. — começou a chorar.
— Cadê ele? Vou meter uma bala na testa daquele fio de rapariga.
— Não faça isso, Dario, eu não quero que o mate. Eu o amo. O problema sou eu que não aprendo. Não é a primeira vez que ele me bate e eu o perdoo. Eu dependo dele, do amor, das palavras dele, eu não consigo viver sem ele.
— Um dia esse caba te mata.
— Não, ele nunca faria isso. Apesar dele me bater, ele me ama e é o único que me faz sentir que eu sou de verdade uma mulher que nasceu no corpo de um homem. Nessa vida fui muito maltratada por ser quem eu sou. Meu pai não aceita ter um filho transexual, como ele mesmo diz que tem vergonha de ter um filho marica. Painho me expulsou de casa e sair de lá com a roupa do couro, deixei mainha e o meu sonho de fazer medicina. Sempre fui tão estudiosa, cair na vida porque não tinha dinheiro pra comer e não pude realizar o meu sonho, aliás quem gostaria de ser consultado por uma médica que nasceu homem?
— O caba quando tá lascado com risco de morrer não tem muito o que pensar só quer se salvar.
— Ah! Se todos pensassem como você. O mundo lá fora e aqui dentro tem muito preconceito.
— O que é isso?
— O quê?
— Que você acabou de dizer?
— Preconceito?
— Sim.
— Quando uma pessoa teme e rejeita por algo que alguém seja ou faça por não conhecer. É uma ideia pré-estabelecida do desconhecido.
— Não entendi nada.
— O que o Iago fez comigo ontem à noite é um exemplo como também o que as pessoas lá fora pensam desse bordel, de mim, das outras meninas e da patroa.
— Então deve ser isso que a Rita pensa de mim.
— Rita?
— É a mulé que gosto, ela não aceita essa minha vida da pistolagem. Eu vou morrer bandido ela querendo não.
— Já desistiu dela?
— Não, eu vou fazer com que ela me aceite assim.
— Vai convencê-la? Será que vai conseguir?
— Vou. Ela vai aceitar, ela me ama.
— Boa sorte porque quando uma mulher bota uma coisa na cabeça é difícil de mudar. Você gosta mesmo dessa vida de pistoleiro ou foi apenas um acaso na sua vida?
— Gosto e desgosto.
— Gosta de matar ou do dinheiro?
— Quem não gosta de dinheiro?
— Não acho que no caso de Rita seja preconceito. Ela deve ter encontrando algo bom em você.
— Em mim? Não, eu sou ruim, sou bandido e nada em mim presta.
— Ela quer te salvar.
— De quem? Dos inimigos? Se for não carece porque sei me defender sozinho e meto bala nos fios de uma égua.
— Salvar de você mesmo.
O silêncio habitou no lugar por alguns instantes.
— Dario, o pior preconceito não é o de Iago que desconhece e nega ver que sou uma pessoa como qualquer outra e me rejeita. Pra mim o preconceito mais cruel é de pessoas como o meu príncipe azul que não aceitam o que sente por medo do que a sociedade vai pensar e falar deles.
— Rita não me dobra.
— Quem é você que acha que pode dobrá-la? Ninguém é dono de ninguém, amigo. Nem nossos pais podem definir que somos e eu sou o exemplo disso. Nasci Wanderley e escolhi viver como Wandeca.
— Você mesmo se vestindo como mulé nasceu homem e não se pode mudar.
— Eu sei e tenho orgulho do homem que também habita em mim. Eu sou o Wanderley e a Wandeca no mesmo corpo. Eu mereço ser respeitada.
— Quer tanto respeito e acha bonito apanhar de um caba de peia?
— Tem razão. — fez uma pausa. — Só te dou um conselho como amiga, não deixe a Rita escapar da sua vida. É tão difícil amar e ser amado. — limpava a lágrima com as costas da mão. — Eu vou retocar a maquiagem, botar um sorriso no rosto e fazer as minhas unhas que estão descascando. Tchau, maninho. — saiu.
— Tchau! É cada cilada que o caboco se espreita.
Na varanda ele encontrou Manuela sentada nos degraus e fumando um cigarro.
— Toma aqui o dinheiro pelo quarto e a cachaça. — tirou um maço de dinheiro e entregou a irmã.
— Pra aonde vai? — colocou o dinheiro dentro do decote.
— Vou pro serviço.
— Matar, quem?
— Um caba que anda se enxerindo com mulé casada.
— Nossa! Como isso é antigo. Sempre tem um corno covarde que contrata um pra matar o amante da mulher. No final a estória é a mesma ela sempre coloca outro no lugar de quem morreu.
— Por isso que digo que mulé é dor de cabeça.
— Rita?
— Ela me tira os juízos. Minha cabeça ferve só de pensar.
Manuela deu uma risada.
— Tá apaixonado, Dario, quem diria que meu irmãozinho um dia deixaria a vida da bandidagem por causa de uma mulher? Eu aposto que ela é quem vai te tirar disso.
— Tu não conhece o irmão que tem. Ainda vou trazer ela em cima do cavalo e você vai ver que ela vevé comigo como mainha vevé com painho.
— Acha que mainha é feliz? Ela não é. A dona Do Céu sofre muito por ser mulher de pistoleiro, ter uma filha puta, um filho bandido, a outra filha que apanha do marido e Ester perdida no meio desse mundo.
— Nada falta dentro de casa.
— O que falta é paz. Você devia deixar essa vida e ficar com Rita ou a esqueça e não a faça sofrer como mainha sofre.
— Não sei o que fazer. Às vezes queria sumir pra bem longe. — sentou ao lado da irmã.
— Eu sei o que é sentir isso e também queria sumir.
Ele encostou a cabeça no ombro dela.
— Eu queria tanto voltar ao passado de quando a gente era tudo pivetinho e tínhamos o Francisco. — acarinhava os cabelos dele. — Éramos tão pobres, tudo faltava, porém, a paz reinava em casa, a doçura e a inocência. Que saudades. Eu me lembro de você quando nasceu era tão pequeno e mainha deixava você comigo. Cresceu tão rápido e mesmo assim para mim não deixou de ser um bebê que preciso cuidar. — beijou a testa dele. — se cuida, Dario.
— Te cuida também, Manuela. — levantou. — Tchau! — subiu no cavalo.
— Tchau!
Dario seguiu estrada e após perguntar alguns moradores acabou encontrando a casa do jornalista Alfredo Dias. Ele desceu do cavalo, entrou na varanda de paredes amareladas e deu um chute na porta de madeira.
[1] Vivo
[2] A gíria 0800 quer dizer que algo será oferecido de graça.