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O Vazio que habita em mim – Capitulo 1: Pesadelo

As fases da vida de uma pessoa vãs muito além do desenvolvimento motor, cognitivo ou emocional de um indivíduo – culpem os estudiosos por você acreditar nessa besteira, só estou repetindo o que ouvi durante al­guns anos, isso antes de entender realmente como o de­senvol­vimento humano funciona.  Eu diria que essas três partes não se separam nunca e cada uma, influência na outra de alguma forma.  Mas para que isso ocorra você tem que apanhar. E muito!

Quer ver?

Não posso dizer com certeza como foi o meu desenvolvimento infantil nesses aspectos mas posso afirmar que fui um garoto feliz pelo menos até os meus cinco anos mais ou menos, foi nessa idade que tudo começou, ou melhor dizendo, foi nesta idade que eu entendi que tinha alguma coisa errada na minha vida.

Minha mãe sempre contava que meu pai foi o pri­meiro amor da sua vida antes de mim é claro, e o único até então. Nós tínhamos uma vida feliz, papai trabalhava em uma fábrica de calçados da região, mamãe cuidava da casa e eu, vivia brincando com os meus amigos na rua.

A vizinhança era maravilhosa, todo mundo conhecia todo mundo, éramos todos como uma grande família. As crianças sempre estavam envolvidas em brincadeiras no meio da rua, andávamos de bicicleta, jogávamos bola, bola de gude, carrinho e outras coisas de criança. Vivía­mos enfurnados uns na casa dos outros.

Eu era um garoto feliz e não me dava conta disso.

As coisas começaram a ficar ruins depois que meu pai perdeu o emprego de quase dez anos. A fábrica fe­chou por causa de uma crise econômica na empresa e to­dos os trabalhadores foram demitidos, en­tão meus pais tiveram de apertar os cintos enquanto a crise passava. Fi­camos bem por um tempo, enquanto tínhamos o di­nheiro do se­guro desemprego, mas quando o dinheiro acabou, papai teve que dar o braço a torcer e acabou dei­xando mamãe ajudar com as despesas.

Ela arrumou algumas faxinas nas casas ricas da ci­dade, saia todos os dias bem cedinho, antes de todos acor­darem, fazia todas as refei­ções e deixava algumas instru­ções com a vizinha para que ela ficasse de olho em mim depois que papai saísse para procurar emprego. Mesmo cansada das faxinas ela sempre arrumava tempo para fi­car comigo.

Papai continuou procurando por emprego, mas infe­lizmente não encontrou nada, as vagas disponíveis exi­giam um grau de estudo que ele não tinha, ou pediam al­gum aperfeiçoamento, o qual ele não po­dia fazer e as­sim os problemas começaram.

Meu velho começou a sair cedo dizendo que iria pro­curar traba­lho e voltava sempre tarde da noite cheirando a álcool e cigarros. Al­gum tempo depois vieram as inú­me­ras reclamações de mamãe por causa das atitudes de pa­pai. Em várias delas papai estava bêbado e acabava saindo do controle.

Ele gritava, xingava, quebrava moveis e terminava chorando num canto da sala até adormecer. No dia se­guinte ele sempre pedia desculpas a mamãe, que sempre aparecia com algum machucado ou manchas vermelhas pelo corpo, e me fazendo um cafuné prometia que não fa­ria mais aquilo.

— Essa foi a última vez! — Meu velho jurava de pês juntos dando um beijo em mamãe, que por algum mo­tivo, não retribuía.

Ele até que passava algumas semanas direito, arru­mava alguns bicos e acabava trazendo algum dinheiro para casa. E assim mamãe se desdobrava em sorrisos. Vez ou outra ele trazia flores roubadas da pracinha, uma bala ou duas dependendo de quanto ele gastava no al­moço ou do quanto sobrava das contas pagas. Mas de­pois de um tempo tudo voltava e com mais força.

Em uma dessas “crises”, como minha mãe costu­mava chamar, a primeira que eu presenciei o resultado do que suas “crises” provoca­vam de fato.

É engraçado que essa seja a primeira cena do meu filme particu­lar, se bem que tudo começou de fato depois desse dia.

Eu tinha uns 6 ou 7 anos na época eu acho, era quase meia noite quando ele chegou, eu havia adormecido no sofá enquanto mamãe o esperava com a notícia de um novo emprego. Naquela noite papai chegou em casa al­te­rado, cheirando a cerveja e cigarro como de costume.

BAM… BAM… BAM.

Acordei assustado com as batidas na porta.

Ela levou o dedo indicador a boca me pedindo silen­cio, apon­tando para o quarto.

— Feche a porta e não saia até eu mandar. — Ela me pediu baixinho.

— ABRE ESSA PORRA RENATAAAAAA!

— Vai Mick, não sai de lá até eu mandar.

Morrendo de medo eu obedeci. Corri para o quarto tentando não fazer barulho, mamãe olhou para mim de relance antes de correr até a porta, destrancando-a antes de um próximo soco de papai que a escancarou para dentro.

— PORQUE NÃO ABRIU A PORTA ASSIM QUE EU CHAMEI? – Papai gritava agarrando-a pelos braços.

— Estava colocando o Mick para dormir querido.

— Vem cá…, vem. — Ele a agarrou com força, ten­tando beija-la.

Mamãe tentava com todas as suas forças se livrar da­quele momento.

— Não Jorge! — Disse ela empurrando-o para longe

— Por que não?

— O Mick…, ele pode acordar.

— O MULEQUE É MAIS IMPORTANTE DO QUE EU? — Papai disse exaltado.

— Não querido, ele…

— ELE O QUE? … — Papai a agarrou com mais força. Tirando as alças de seu vestido.

— Assim não. — Ela o jogou contra o sofá

Papai levantou-se com raiva, foi então que veio o pri­meiro tabefe. Mamãe levou a mão na bochecha vermelha tentando aliviar a dor que sentira. Papai já estava prepa­rando um segundo golpe quando arre­messei um de meus brinquedos em sua direção.

— NÃO BATE NELA! — Gritei, saindo de meu esconderijo.

O cheiro de cerveja invadiu minhas narinas, papai estava claramente bêbado e fora de si.

Ele olhava em direção ao meu quarto e por um se­gundo nossos olhos se cruzaram. Os olhos dele ardiam como brasas incandescentes de puro ódio.

— Tá se achando o homenzinho Mick. VOCÊ VAI APRENDER A NÃO ME AFRONTAR NUNCA MAIS SEU FILHO DUMA EGUA…

De uma hora para outra, papai tirou o cinto e veio em direção ao meu quarto que ainda estava com a luz acesa, as pressas eu fechei a porta e corri para debaixo da cama. Num segundo depois ele abriu a porta num chute en­quanto mamãe corria para se pôr entre nós dois, naquele quarto minúsculo.

— Não meu amor, o M’icelus é só um garoto.

— Hoje ele aprende a ser homem! — Ele disse em­pur­rando-a con­tra a parede.

Aquele monstro me bateu com vontade aquela noite, enquanto minha mãe soluçava junto a parede eu chorava do outro lado, rece­bendo os golpes do homem que deve­ria me proteger enquanto ten­tava entender o porquê de todo aquele sofrimento.

Aquela foi a primeira e a última vez que aquilo acon­teceu. Depois daquela noite mamãe tomou coragem e fu­gimos de casa.

Pior do que já estava não podia ficar.

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