A vida no beco não foi tão glamorosa quanto eu pensei que seria.
O “beco” era como eles chamavam a comunidade carente que se estabeleceu ali naquela ruazinha estreita, em condições sub-humanas, ali nós não tínhamos o mínimo que era garantido por lei, ou pelo menos segundo a constituição brasileira. Sem agua encanada ou saneamento básico, nos tínhamos de nos virar como podíamos para garantir nossa sobrevivência, e de contra partida ajudar aqueles que tinham menos que a gente.
Passei uma boa parte da minha adolescência no beco com Leka, Pepeu, Quim e Rubens com suas aparições repentinas. Todos me receberam muito bem, me ensinaram a manha das ruas numa ordem aleatória. Eles fizeram com que eu me sentisse acolhido, sem cobranças ou perguntas, eu era parte da família.
Com o passar do tempo todos aprendemos a nos respeitar e a confiar uns nos outros. Meus constantes pesadelos passaram a serem comuns todas as noites, Leka sempre me dava uma sacudidela ou um chute para me fazer acordar, mas nunca me perguntara com o que eu sonhara, nem eu tinha coragem de expor meus medos.
Eles poderiam não gostar mais de mim se soubessem.
— Nós temos nossos próprios medos para nos preocuparmos. — Ela me disse na primeira noite. — Você é só mais um no meio de tantos outros, a diferença agora é que não esta tão sozinho.
Eles aprenderam a viver com isso, e eu aprendi a me acostumar a isso de um jeito nada peculiar.
Usando drogas.
Eu relutei um pouco, mas depois acabei aceitando, Rubens disse que isso me faria esquecer e no início foi o que aconteceu. As noites tornaram-se mais tranquilas, e aqueles sonhos não me atormentavam tanto quanto antes.
Aos poucos, minha vida tornou-se vazia e sem sentido. Enquanto Leka e os outros estavam comigo, tudo eram flores. Eu ria, brincava, me divertia e amava cada momento junto com eles. Durante a noite aquele terrível pesadelo me assombrava.
Passei a procurar pela ajuda de Rubens mais vezes do que eu realmente queria, em alguns meses a bebida perdeu seu efeito magico, o cigarrinho analgésico não funcionava mais…
Eu precisava de algo mais forte.
— Não faz mais efeito Rubens. — Eu disse certa noite quando estávamos só nós dois no beco.
— O barato já não é mais o mesmo, porque teu corpo já se acostumou com ele. — Rubens deu uma gargalhada, quase que monstruosa que me fez lembrar do meu sonho.
— Cê tem? — Perguntei tremulo.
— Não… isso é muito perigoso. Se quiser um gole. — Ele me ofereceu a garrafa.
Sem pensar duas vezes peguei a garrafa da mão dele cheirei o liquido transparente e dei uma golada das grandes, fazendo a garrafa se esvaziar quase que por completo, o liquido desceu rasgando minha garganta.
— Calma ai campeão. — Rubens tomou-me a garrafa. – Não é assim que as coisas funcionam.
— Essa dor não passa. — Respondi com os olhos cheios d’agua. — A dor nunca vai embora.
Eu havia chegado no fundo do poço, os sonhos tornaram-se cada vez mais reais.
— Toma… — Rubens me deu um embrulho pequeno e fino. — Só não conta pros guris que eu te dei isso.
— Por que?
— Todos temos os fantasmas que queremos esquecer garoto. — Era a mesma frase dita de um jeito diferente — Eles já superaram isso, você não.
Rubens acendeu outro cigarro e deu uma boa tragada.
— Eu não sei como fazer isso. — Respondi devolvendo.
— Deixa de frescura Mick, isso só vai te ajudar.
— Eu não sei.
— Use quando precisar… só não conte aos meninos. A Leka não gosta que eles usem isso. — Rubens me entregou o embrulho.
— Se ela não gosta que usem, porque você tá dando isso pra mim.
— Por que seus monstros precisam ir embora.
***
— Você é meu garoto…, meu bom garoto.
A voz dele invadia meus ouvidos, as lagrimas percorriam meu rosto. Ele tinha a mão pesada. E como das outras vezes Álvaro esperou aquele momento como um leão espera pela presa. Eu era sua presa. Um misto de prazer e loucura invadia o seu ser como se ele fosse um deus, o dono de tudo e de todos.
E Naquele momento ele era o meu dono.
O medo tomava conta de mim, me impedia de tomar qualquer atitude, eu via os rostos de mamãe e o de Bernardo diante mim as vezes rindo de desdém pela minha atitude covarde, e as vezes chorando com medo pelo que ele poderia fazer com eles.
— Por que você fez isso com meu menino. — Mamãe choramingava pelos cantos quase todas as vezes.
Eu fui tomado pelo monstro, uma hora eu era Álvaro, outra hora eu era eu, as vezes mamãe, numa amalgama de sentimentos, formas e cores.
A faca, o momento perfeito. Eu a seguro com ambas as mãos e no momento mais oportuno eu tomo coragem e á cravo em seu estomago, uma… duas … três… dezenas de vezes. Banhado em sangue, eu vejo seu corpo inerte diante de mim.
— Você o matou! — Mamãe grita chorando. ASSASSINO!
— Porque? — Bernardo questiona em seus braços. — Você matou meu pai. Eu te odeio!
Saio daquela casa às pressas… fugir já não adianta. Para onde eu olho, vejo o rosto de Álvaro me observando. Me seguindo, me consumindo por inteiro.
Eu não estou seguro em lugar nenhum.
— Te vejo no inferno. — Ele sussurrava em meu ouvido, enquanto se transfigurava em um demônio.
Então eu acordei.
Com as mãos tremulas, fui ao esconderijo onde guardei com cuidado o que Rubens me dera. Com dificuldade acendi meu primeiro cigarro. Dei umas boas baforadas do lado de fora da casa, O efeito anestésico foi quase imediato, como Rubens disse que seria.
Eu me entreguei por inteiro aquela paz repentina e naquele momento eu me permiti esquecer…-” ”>-‘.’ ”>