No caminho de volta para o beco, nós três juramos não contar a Leka o que havíamos feito naquele dia. Se ela soubesse seria capaz de matar nos três sem nenhum tipo de remorso.
Já passava das duas da tarde quando ela finalmente chegou, nós três trocamos olhares atentos, como se confirmássemos em silencio o voto de confiança que havíamos depositado uns nos outros.
— Cês tão com essa cara porquê? — Ela perguntou assim que deu de cara com a gente. — Chuparam limão foi?
— Não… não. — Quim respondeu desviando o olhar.
— Por que você não foi com a gente? — Perguntei tentando disfarçar meu nervosismo.
— O Rubens queria que eu fizesse umas cobranças pra ele. — Leka respondeu sentando-se no chão junto a cama.
— Ah… tá.
— Como foi lá? — Ela perguntou interessada. Tinha muita coisa boa?
Eu arregalei os olhos para Quim e Pepeu, e eles percebendo meu nervosismo sentaram perto de mim.
— Trouxemos um saco de sobras, frutas, pães, bolos, doces e outras coisas. – Disse Quim sorrindo. – Dividimos tudo com o pessoal e guardamos algumas coisas para você.
— Eu adoro vocês sabia. — Ela respondeu indo em direção a nossa sacola.
Leka observou por alguns minutos o conteúdo da sacola, depois tirou um pedaço de bolo e começou a comer sem a menor cerimônia.
— Pra onde o Rubens te mandou dessa vez? — Pepeu perguntou.
— Pro outro lado da cidade.
— Pros bairros chiques?
— É!
— Quanto? — Quim completou.
— 200.
Eu demorei algum tempo para perceber qual era o meio de vida deles, demorei ainda mais para entender por que Rubens fazia aquele tipo de coisa. Mas eram as circunstancias, e eu passei a ajudar sempre que era requisitado. Quando os ricaços vinham em busca das drogas, o Rubens entregava e nós fazíamos as cobranças. Nenhum de nós fazia perguntas, apenas fazíamos o nosso trabalho.
Foi isso que Leka foi fazer naquele dia.
Naquela noite Rubens não apareceu, Pepeu e Quim decidiram esticar as pernas e passaram a noite inteira na rua. Assim, Leka e eu passamos a noite juntos, sozinhos no beco escuro, tendo apenas a luz de uma vela como companhia.
Ela avaliava qualquer expressão minha, como se soubesse que algo estava errado comigo, me estudava com aqueles profundos olhos castanhos de mãe que sabe que o filho aprontou e espera uma confissão.
Sim, Leka tinha os mesmos olhos castanhos da minha mãe, nesses momentos era como se ela estivesse ali comigo, me cobrando uma resposta.
— O que você tem? — Ela perguntou depois de um longo tempo.
— Nada! — Respondi, desviando o olhar.
— Eu não sou boba sabia. — Ela disse baixinho. — Eu sei que tem alguma coisa errada com você.
— Tipo?
— Não sei… eu apenas sei.
— Como se sabe de algo sem saber.
— Eu noto coisas.
— Que coisas? — Ela estava fazendo uma espécie de jogo comigo.
— Você vive se escondendo de todo mundo.
— Eu não vivo me escondendo.
— Quais são seus monstros Mick?
— Que?
— O que você esconde de todo mundo? Me conta!
— Eu não escondo nada.
— Sabe… — Ela disse com a voz embargada. — Minha mãe me abandonou com ele.
— Como assim? — Perguntei.
— Eu não me orgulho das coisas que eu faço. Mas esse foi o único jeito que meu pai teve para me criar.
— Seu pai…
— É. O Rubens é meu pai. Ele me ensinou tudo o que eu sei e acolheu os garotos quando ninguém mais quis. Desde então somos uma família, eu me preocupo com eles, e faço o que for preciso para ver eles felizes.
— É complicado. — Eu disse baixando a cabeça.
— Tudo aqui é complicado. Por pra fora ajuda a clarear as ideias. — Leka tinha os olhos cheios d’agua. — A culpa é minha.
A garota mexia as mãos tentando esconder aquele sentimento de culpa que eu entendia bem. Nada fazia sentido para nos dois. O abandono corroía todos eles.
— Por pra fora ajuda mesmo? — Perguntei pensativo.
— Sim… — Ela respondeu pegando minha mão. — Confie em mim.
Leka tinha o sorriso mais lindo que eu já havia visto na vida, ela tinha passado por coisas semelhantes as minhas. E talvez me entendesse.
Será que eu podia confiar meu segredo a ela?
— Eu não conto para ninguém. — Ela via a dúvida em meus olhos. – esse será o nosso segredo.
Aquele olhar penetrante invadiu minha alma com uma força esmagadora. Eu podia confiar nela cegamente. Leka sabia que eu não aguentaria guardar aquele segredo por mais tempo.
— Eu não posso! – as lagrimas teimavam em rolar pelo meu rosto.
— Pode! — Ela insistiu confiante.
Leka segurou minhas mãos junto ao peito. As batidas do coração dela se ritmaram as minhas. E quando dei por mim as palavras saíram sem nenhum controle.
— Eu matei um homem!
Apesar de que aconteceu comigo, desde meu pai até Álvaro aparecer na minha vida, minha mãe, meu irmão e a promessa que eu fiz a ele de que doloroso eu acabei contando a ela tudo o um dia eu o encontraria novamente.
No início Leka me pareceu um pouco chocada, a medida em que narrava os fatos. Todos os sonhos horríveis que eu tinha com Álvaro, desde o dia em que eu o tinha matado e da ajuda que Rubens tinha me dado para superar meu problema. Calada, ela apenas ouviu tudo o que eu tinha para dizer, mas em seus olhos eu via o medo se formando.
— Está tudo bem… — Ela disse quando eu acabei de contar minha história.
— Eu…
— Não precisa se desculpar. Todos nós temos monstros que queremos esconder.
— Os meus insistem em se mostrar. — Respondi forçando um sorriso.
— Seu segredo está seguro comigo. — Ela sorriu de volta.
Eu vi uma lagrima brotar em seus olhos. Ela tentou se esconder atrás do cabelo comprido.
— Tudo vai ficar bem! — Prometi.
Uma troca de olhares sinceros. E naquele momento eu senti que podia realmente contar com Leka para tudo. Ela ainda segurava minha mão com força contra seu peito.
Eu sentia o palpitar de seu coração em minhas mãos. Num instante meu coração também acelerou, parecia que os dois estavam em sincronia.
Minhas mãos suavam e um frio percorreu minha espinha junto com a sensação de borboletas no estomago. Leka virou-se para mim, aconchegando-se em meus braços pondo o ouvido em meu peito.
— Pensei que era coisa da minha cabeça. — ela disse.
— O que?
— Nada.
No instante seguinte, os lábios dela se juntaram aos meus num beijo. Eu queria aquilo tanto quanto ela, abracei-a com toda a força que tinha. Eu não queria que aquele momento acabasse. Aquele beijo me fez esquecer de tudo e de todos, éramos só Leka e eu num barraco escuro e úmido.
Eu não me importei com mais nada além de nos dois. Naquele momento único eu me permiti por pra fora tudo o que eu estava sentindo.
Toda a raiva, todo o ressentimento se foi, apenas Leka me importava. Nesse pequeno momento foi quando eu me senti feliz de verdade, desde que tudo aquilo começou.
O dia em que me senti mais vivo!-” ”>-‘.’ ”>