Eu não sei se você me conhece, ou sabe de minha existência. Talvez nunca tenham ti contado que você tem um irmão mais velho, ou quem sabe eu tenha caído no esquecimento.
No vazio.
Não sei se essas palavras chegarão um dia até você, ou simplesmente foram ditas ai vento. Você deve ter uns dez anos agora, deve ter se tornado um menino maravilhoso, cheio de vida, de sonhos, como um dia eu fui.
Eu só queria que você soubesse que sinto sua falta. Também queria que você me perdoasse, por não estar com você nos momentos em que você mais precisou. Por não te ensinar os truques e as manhas de ser criança.
Eu não pude… isso foi roubado de mim.
Que fique claro, não me arrependo de nada do que fiz, sei que foi errado, mas eu não tive escolha. Tudo o que fiz foi para proteger a minha família, foi para proteger você.
Fiz isso até o dia em que não pude mais aguentar.
Não estou tentando me redimir pelo que eu fiz, e muito menos tentando transferir a culpa pelo que aconteceu para você. Nenhum de nós tem culpa.
Álvaro é o culpado… somente ele.
Ele nos enganou, nos deu esperança de um novo futuro, mas em troca disso me tirou a alegria… me roubou a infância da pior forma possível. O homem que um dia chamei de pai, que eu aprendi a amar, que deveria me proteger e me ensinar a olhar o mudo com esperança foi o mesmo homem que ameaçou minha vida me impondo uma escolha.
Uma escolha ruim, cheia de sofrimento e dor, mas com essa escolha nós ganhamos você, a única coisa boa que ele nos deu.
E eu escolhi você! A única coisa que me mantem vivo até hoje, a única lembrança que me mantem de pé e que me dá forças para continuar vivendo. A única lembrança feliz em meio a tantas tragédias.
Os anos passaram e com eles a memória de meus pais desapareceram da minha mente, em meus sonhos eles ainda aparecem, mas por algum motivo eu não consigo ver seus rostos, são apenas um borrão manchado diante de meus olhos. Os únicos rostos conhecidos são o seu e o dele.
O anjo e o demônio juntos na minha mente perturbada. Uma lembrança começa a se formar. Não sei o porquê desta data, mas é sempre ela.
É domingo de pascoa, você tem um ou dois anos mais ou menos, estamos todos reunidos em volta da mesa, mamãe está sentada a direita servindo Álvaro enquanto ele bebe uma taça de vinho barato e sorri. Você e eu brincamos com os talheres enquanto esperamos mamãe terminar de nos servir.
Uma oração…
Só então começamos a comer, eu tento acertar os movimentos do garfo e da faca, enquanto você se lambuza todo tentando pôr a colher na boca, depois de algumas tentativas mamãe vem em nosso auxilio, cortando os pedaços no prato e ensinando mais uma vez como manusear aqueles instrumentos tão complicados.
Depois ela se volta para você e com toda a paciência do mundo guia sua mãozinha até o prato, e depois até sua boca umas três ou quatro vezes para só então deixa-lo livre para se lambuzar novamente em questão de segundos.
Ela sorria ao ver seu empenho e nos felicitava a cada acerto. Ao fim do almoço vinha a melhor parte, a caçada aos ovos de pascoa.
Mamãe escondia pela casa várias charadas para que nos dois pudéssemos encontrar o tesouro. Ela deixava as pistas marcadas pelas patas de um coelho, e nos dois percorríamos toda a casa atrás das pistas, a cada acerto nos ganhávamos um chocolate.
Você sempre sorria a cada vitória, brincava e comemorava e eu sempre apressado corria atrás da próxima pista para ver o coelho que nunca aparecia de verdade.
E assim chegávamos ao fim do dia cheio de guloseimas, felizes por termos conseguido decifrar todas as pistas e termos ganhado a recompensa. Mamãe me consolava com um “Quem sabe você o pegue ano que vem” comendo um dos meus chocolates. Um sorriso se forma em meus lábios enquanto ela me faz cocegas.
Tudo para!
O clima de paz e felicidade muda bruscamente, dando lugar ao vazio, meu velho companheiro de estrada… O vazio que habita em mim. Eu estou novamente sozinho.
Tudo vira fumaça, vejo Álvaro te arrancando dos braços de mamãe e me pedindo segredo levando o dedo indicador aos lábios. Mamãe não se move, apenas olha para ele sorrindo mecanicamente, quero gritar, mas minha voz teima em não sair. Você chora, vertendo lagrimas de sangue enquanto uma aura negra os envolve e os leva para longe de mim. Eu corro, mas não consigo mais alcançá-los.
Seus corpos se esvaem nas sombras e eu termino sozinho num canto escuro, a dor me corrói por dentro, lagrimas rolam em meu rosto.
Eu os perdi para sempre.
Então a morte me abraça como uma velha amiga em um lugar coberto de dor e sofrimento.
– Quais são suas últimas palavras? – Ela diz.
“Perdoe-me meu querido irmão eu não pude salva-lo.”