O Vazio que habita em Mim – Capitulo 2: Para Qualquer Lugar

Depois que papai apagou nos dois saímos de casa às pressas ape­nas com a roupa do corpo e meu ursinho de pelúcia favorito o senhor Colmeia, que naquela noite eu descobrir ser o esconderijo secreto de mamãe. Dentro dele havia uma quantia considerável de dinheiro guar­dada para uma emergência.

Nós só não sabíamos que aquela seria a emergência. Mamãe tinha abdicado de coisas que nós precisávamos e depois de pagar todas as contas tudo que sobrava ia para o fundo falso dentro do senhor Colmeia, que a medida que se enchia de dinheiro perdia seu enchimento original. Ela parecia estar se preparando para algo maior.

Mamãe e eu estávamos muito machucados devido as pancadas que tínhamos levado, ela muito mais do que eu, diga-se de passagem. A pele clara deixava evidente as marcas das agressões sofridas naquela noite. Temendo que ele acor­dasse e fizesse algo pior nossa única alternativa foi fugir depois do que mame havia feito.

Papai estava em cima de mim, com as mãos em volta de meu pescoço, me tirando o ar. Vendo aquela cena, mamãe se le­vantou com dificuldade, voltou a sala pegou um dos jarros de gesso maciço de cima da mesi­nha de centro e usando toda sua força contra ele um golpe certeiro na cabeça que o fez cair sobre mim desnorteado.

Ela o empurrou para o lado me libertando dele.

— Venha, rápido! — Ela disse pegando o ursinho em cima da cama.

Corri até ela e a abracei com força. Mamãe me segu­rou em seus braços com força e saiu correndo para a rua. Ne­nhum de nós ousou olhar para traz com medo de que pa­pai aparecesse, ela apenas correu desesperada em busca de ajuda. Ajuda essa que nunca veio.

Era tarde da noite, e como era de se esperar nenhuma viva alma na rua, apenas mamãe e eu correndo sem rumo.

— Perdoe-me, meu querido. — Ela dizia enquanto me abraçava. – Ele não vai fazer mal para nenhum de nos. Nunca mais!

Algum tempo depois chegamos a rodoviária da ci­dade, um lugar nada agradável para uma criança uma hora daquelas, as barraqui­nhas, os quiosques, a praça, tudo estava fe­chado. Ela sim­plesmente sentou-se em um dos bancos que ficavam mais escondidos e esperou.

Eu podia sentir o desespero vindo dela, suas mãos tre­miam en­quanto me acalentava nos braços, lagrimas ver­tiam de seus olhos inchados.

— Mamãe por quê o papai bateu na gente? O que foi que eu fiz de errado? – Perguntei enxugando suas lagrimas.

— Não, meu querido. Você não fez nada de errado, é que o papai tá doente e ele não consegue fazer as coisas direito. Quando ele bebe fica esquisito, mas depois passa.

— A gente volta para casa quando ele ficar bom?

— Não… nós não vamos voltar para casa. – Ela chorava sem controle, enquanto me abraçava com força. – Aquele homem nunca mais vai nos fazer mal.

— Para onde a gente vai? – Perguntei aninhando a cabeça em seu peito.

Ouvi o coração dela disparado, parecia que sairia pela boca.

— Para qualquer lugar meu querido… desde que seja bem longe daqui!

Depois disso eu adormeci, sonhei com aquela mesma cena passada a poucas horas.

Papai estava ali, diante de nós esmurrando mamãe e eu enquanto nos xingava de todos os nomes conhecidos e desconhecidos por mim quando acordei já assustado estáva­mos num ôni­bus rumo a uma nova vida.

Olhei pela janela, o sol já apontava no horizonte. Ao meu lado mamãe dormia o sono dos justos.

 

 

 

Lá estávamos nós rumo a uma cidade desconhecida, cheio de pessoas desconhecidas, apenas com as roupas do corpo e alguns tro­cados dentro de um ursinho de pe­lúcia. Nós não tínhamos mais nin­guém, mamãe sendo fi­lha única e meus avós já falecidos, nós não tí­nhamos quem nos ajudasse.

A viagem durou cerca de cinco dias, fazíamos para­das esporádi­cas para a higiene pessoal e refeições. Na maioria das vezes ou se fa­zia uma coisa ou outra as duas não era possível ou corríamos o risco de ficar na estrada. No ca­minho compramos algumas roupas simples, toa­lhas e produtos de higiene pessoal.

Ao desembarcarmos na rodoviária da última parada possível, mamãe ficou um tempo pa­rada diante daquele novo mundo, várias pes­soas andavam de um lado para outro, vendendo coisas, carre­gando bagagens, chegando e saindo da estação, vá­rios ônibus enfileirados em busca de passagei­ros para pode­rem seguir viagem.

Ficamos sentados por um tempo em um dos inúme­ros bancos lo­tados de passageiros. A estação era pare­cida com todas as outras nas quais paramos no caminho. Um grande vão coberto de frente a uma bonita praça, era ro­deada de quiosques e lojinhas oferecendo uma in­fini­dade de coisas as pessoas desinteressadas que passavam.

Sem conhecer nada, mamãe parou em um dos quios­ques próxi­mos ao nosso banco. Era um espaço bem aper­tado, onde cabiam duas ou três pessoas dentro, um ex­po­sitor de vidro exibia diversos produ­tos refrigerados pron­tos para o consumo. Guloseimas estavam pen­dura­das na parte de traz, seguida por inúmeras prateleiras, em cima do balcão, uma estufa mantinha quente uma va­riedade de salgados de festa acompanhadas de tortas sal­gadas e bolos.

Atrás do balcão a atendente sorria.

— Gostaria de alguma coisa moça?

— Quanto tá o salgado e o suco? — Mamãe pergun­tou atenta ao cardápio.

— R$ 3,00. — A moça respondeu pegando um guar­danapo em­baixo do balcão.

— Dois salgados e um suco por favor.

Recebendo o pedido, mamãe e eu nos sentamos para saborear nossa primeira refeição do dia. Enquanto comíamos sentados ao balcão a mulher nos observava sentada em um ban­quinho próximo.

— De onde vocês são? — Ela perguntou curiosa.

— Somos do interior de São Paulo. — Mamãe respon­deu sem ti­rar os olhos de mim, temendo que eu revelasse alguma coisa.

Permaneci calado, pois sabia que se dissesse algo levaria uma bronca daquelas quando estivéssemos sozinhos.

Eu estava todo sujo com o molho que escorria da co­xi­nha que eu comia.

— Ah sim… vocês vêm a passeio?

— Não senhora. Viemos para ficar.

— Hum… aqui é um lugar muito bom sabe, sem vio­lência, assal­tos ou mortes como tem para as bandas de lá. Supertranquilo, vocês vão gostar.

— Eu espero que sim. A senhora sabe de algum lugar baratinho onde nós possamos ficar por uns dias?

— Sei sim minha filha. Logo ali depois daquela la­deira ali em frente virando à direita tem uma pousada barati­nha, você pode se informar melhor lá.

— Muito obrigada.

Mamãe pagou a conta e me pegando no colo junto com a nossa pouca bagagem, caminhou pela rua central observando o movi­mento. As casas e lojas foram mu­dando de formas e tamanhos.

Não demoramos muito para chegar ao lugar indi­cado pela mu­lher, era um lugar simples porem aconche­gante, um prédio de dois andares cujo letreiro exibia quase apa­gado “POUSADA” em letras garrafais verme­lhas. A frente uma churrasqueira aberta crepitava, as­sando dois frangos inteiros, o cheiro vindo deles atraia a atenção dos cachorros de rua.

O hall de entrada exibia duas portas metálicas aber­tas, dando passagem para um grande salão que ser­via si­multaneamente como restaurante (com mesas e ca­deiras brancas dispostas em uma ordem milimétrica) e mais ao fundo a recepção onde uma senhora de meia idade aguar­dava a nossa chegada.

— Bem-vindos! – Disse ela cordialmente.

— Tem algum quarto disponível?

— Temos sim.

— Qual o valor dos quartos?

— São duas diárias, tudo muito simples, R$ 10,00 o quarto com uma cama de casal e ventilador e R$ 15,00 com TV, qual a senhora deseja?

— O quarto com TV. — Mamãe respondeu olhando para mim.

Voltando-se para traz a mulher procurou num qua­dro improvi­sado de chaves, procurou por uma que tinha o chaveiro em formato de sandália em E.V.A. saindo de­trás do balcão veio até nós, pegou uma de nossas sacolas e fez um gesto para que a seguíssemos. Ela nos levou até a parte lateral do restaurante, onde uma escadaria levava dava para o andar superior.

O andar superior era basicamente um extenso corre­dor cheio de portas de ambos os lados, caminhamos até o primeiro quarto do an­dar, uma plaquinha decorativa em E.V.A indicava o número 12.

— São duas chaves, — Ela disse abrindo a porta do quarto. — Essa abre o portão da escada e essa abre a porta do quarto.

Ao adentrarmos nos deparamos com um cômodo sim­ples e sem janelas, uma cama de casal encostada na parede próxima a porta, o colchão de espuma forrado com um lençol fino, o ventilador branco desligado em cima de uma cadeira de plástico e a cima das nossas ca­beças uma TV antiga pendia em hastes de ferro.

Em frente a cama uma outra abertura sem porta nos indicava o banheiro, que assim como o quarto era bem mi­nimalista, o vaso sani­tário, a pia e o chuveiro dispos­tos em um cubículo num piso de ci­mento molhado.

— O almoço é servido das 11:00 as 13:00 h, lá em baixo no restau­rante, o jantar das 18:00 as 20:00 h. R$ 10,00 por pessoa. Não servimos café da manhã, mas há uma padaria aqui logo em frente, onde você pode com­prar quase tudo.

— Obrigada.

Entregando as chaves a mamãe a mulher sorriu en­quanto deixa-nos a sós. Por alguns instantes ficamos ali, olhando o interior do quarto. Depois de um tempo ma­mãe pôs para o lado nossas coisas, me chamou para perto e me abraçou como se nada mais importasse a não ser aquele momento.

— Tudo ficará bem a partir de agora. — Ela disse num sussurro audível. E pela primeira vez naquela se­mana ma­mãe se permitiu cho­rar. — Amanha começa­mos uma vida nova!

No dia seguinte, mamãe levantou bem cedo e saiu sem ao menos me acordar. Em um banquinho ao lado da cama uma sacola de pão alguns biscoitos e uma caixinha de achocolatado me esperavam, com um singelo bilhete de mamãe que li com um pouco de dificuldade.

 

M’icelus

Precisei sair para procurar trabalho, tem pão, biscoito e leite junto da cama, vai dar para você comer.

Tome cuidado, não mecha em nada. A dona Ana vai ficar de olho em você até eu voltar. Não abra a porta, a não ser para ela.

Tenha cuidado.

Com amor

Mamãe!

 

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