O Vazio que Habita em Mim – Capitulo 7: Um Grito de Socorro

Naquele dia eu acabei indo dormir cedo, não quis jantar nem sair do quarto para nada. Álvaro inventou uma desculpa qualquer, para que mamãe não desconfi­asse de nada. A coisa mais difícil foi escon­der da minha mãe as marcas em meu rosto e pelo corpo depois das pancadas do dia anterior.

Sai bem cedo, antes mesmo de qualquer um deles acordar, para não levantar suspeitas, assim quando voltasse para casa todos iriam pensar que eu havia me metido em mais uma briga. Como não tinha muito o que fazer, fui para a escola.

Era hora do recreio, enquanto as outras crianças brin­cavam eu decidi ficar no meu canto em silencio, era a única coisa que me res­tava até então, a solidão, foi quando eu senti uma mão em meu braço, me puxando de volta para a realidade.

— Você não vai brincar com seus colegas? — Pergun­tou a profes­sora Julia com um sorriso caloroso. E olhos preocupados.

— Não quero. — Respondi escondendo o rosto.

— Não sei que frio é esse que você tá esperando. Um calorão da­nado e você com esse casaco?

— Isso se chama estilo professora! — Respondi fa­zendo birra.

— Sei…. Aconteceu alguma coisa? – Ela perguntou sentando-se ao meu lado.

— Não. Por que? — Respondi nervoso.

— Você está triste, não saiu para brincar, esta quieto, não arrumou confusão.

— Engraçado. Se eu brigo reclamam, se eu tô quieto reclamam. Vocês não se decidem não é.

— Mick… tira o casaco! — Ela ordenou gentilmente.

— Pra que? — Protestei.

— Eu quero ver uma coisa.

— Que coisa? Não tem nada aqui.

— E o que foi isso no seu rosto? — Ela examinou meu rosto com cuidado.

— Nada!

— Se você vai continuar mentindo pra mim vou cha­mar o dire­tor, quem sabe com seus pais aqui você resolva falar.

— Tia… tia, o Matheus caiu! — Gritou uma menina que vinha cor­rendo em nossa direção. — tá saindo san­gue da boca dele.

— Não sai daqui M’icelus, eu volto para falar com você!

Assim a professora Julia saiu correndo em direção ao parque e me deixou sozinho em meus pensamentos.

O único que vinha a minha mente era:

Como eu vou matar você?

 

***

 

Depois do recreio a professora nos reuniu em uma roda para conversar. Aquilo parecia coisa de gente maluca, mas como eu já passara da idade de estar no quinto ano, não fazia nenhum sentido para mim discutir sobre isso.

— Meus queridos, a tia hoje quer saber uma coisa. – Ela disse toda contente.

— O que professora. — Todas as crianças na roda gri­taram duma vez, menos eu que continuei olhando para o chão, pois sabia que iria sobrar para mim.

— Uma baratinha verde me contou uma coisa muito feia sabe.

— O que professora? — Perguntou Pedro, um menino magrelo com o qual eu implicava sentado do lado dela.

— Essa baratinha me disse que uma barata maior e bem mais forte do que ela bateu nela.

— Nooooooossaaaaa!

— Meu pai mata as baratas cascudas lá de casa. — Retrucou outro menino sorrindo.

— Baratas são nojentas. – Uma menina do meu lado retrucou fazendo cara de nojo.

— É, não é. Bem… — Interrompeu a professora. — Essa é uma baratinha especial e é minha amiga.

A maioria das crianças na sala fez uma careta.

— Essa baratinha veio me pedir ajuda sabe.

— Pra que professora? — Eu perguntei curioso.

— Essa baratinha foi espancada por uma barata bem maior e mais forte do que ela, e por isso não pode se de­fender… sabem quem fez isso e sabe do pior.

— O que professora. — Perguntaram todos.

— O baratão, pai da baratinha. – Ela disse fazendo cara de espanto

— Ooooh!

— Os pais as vezes podem dar umas palmadinhas nos filhos e colocá-los de castigo caso eles façam traqui­nagem, mas nunca espan­car os filhos, isso é errado. Quando eles machucam demais os filhos eles devem pe­dir ajuda a um adulto de confiança ou pedir ajuda a um coleguinha.

— Pode contar para a professora?

— Deve contar! — Ela disse sorrindo. — Vocês me contam se algo acontecer com vocês?

— Siiiiiiiiiiiiiiim!

A professora Julia passou boa parte daquele segundo horário de aula explicando o que os pais podiam e não podiam fazer, e como proceder em casos como aquele em que a tal baratinha estava metida.

No fim das contas eu soube que eu deveria me abrir com ela. Sobre o que estava acontecendo lá em casa. Talvez ela pudesse me ajudar, a não sentir o que eu estava sentindo naquele momento. No meu canto eu fazia todo o possível para não deixar as lagrimas tomarem conta do meu rosto.

Afinal eu seria motivo de piada se algum deles soubesse, assim eu decidi esperar o final da aula.

 

***

 

A aula havia acabado, tia Julia se despedia de nos um a um com um beijo como era de costume lembrava das tarefas para o dia seguinte (que diga-se de passagem eu nunca fazia). Eu fui o último a sair, fui tomado pela coragem, mas não queria que mais ninguém ouvisse o que eu tinha a dizer.

— O que foi M’icelus? — Disse ela se aproximando de mim. – Pode falar, não precisa ter medo!

Eu ainda estava sentado em minha cadeira com os braços cruza­dos e a cabeça baixa, olhando para o nada.

— Meu pai me bateu. — Respondi de uma vez tentando conter as lagrimas.

— Por que ele te bateu? – Ela perguntou me fazendo um carinho.

— Ele é mal comigo.

— Você fez algo que ele não gostou, foi isso?

— Eu não faço nada em casa professora.

— O que ele fez?

Eu levantei o casaco e a blusa que estava por baixo, revelando a ela a mancha rocha na barriga e as marcas dos braços. Ela ficou em silencio por alguns minutos, es­tudando aquelas marcas.

— Ele faz isso com frequência?

— Sim! — Respondi chorando.

— Com a sua mãe também?

— Não… não, só comigo.

— Você contou isso pra ela.

— Não. Esse é um segredo de homens. Se eu contar para ela, ela tem um ataque e pode morrer.

— Quem te disse isso?

— Meu pai.

— Segredo de homens, como assim?

Tia Julia me olhou com ternura antes de me envolver em seus braços num abraço apertado como se me dis­sesse “pode confiar em mim. ”

— Coisas que os homens fazem só entre eles. — Res­pondi com a maior naturalidade do mundo.

— Foi teu pai que te disse isso?

— Sim.

— Pode me dizer que tipo de coisas são essas? — Ela agora me olhava preo­cupada como se soubesse o que eu estava prestes a con­tar era doloroso demais para ser contado. — Você quer desenhar isso para mim? Assim você man­tem seu segredo e eu fico sabendo sem você me contar que acha?

Eu apenas balancei a cabeça positivamente em res­posta. Tia Julia foi até seu armário que ficava mais ao fundo dentro da sala e me trouxe um bloco de folhas, um pote repleto de lápis de cor de dife­rentes tipos e tama­nhos.

— Pode me desenhar sua família querido? — Ela pe­diu me en­tregando o material.

Enquanto eu desenhava, tia Julia me observava ca­lada. Depois de um tempo ela pegou todos os meus de­senhos e começou a per­guntar sobre eles, quem eram aquelas pessoas, meu pai, minha mãe, sobre o meu irmão e sobre ele.

Passamos um bom tempo ali, só nos dois. Quando já era hora de irmos embora tia Julia me pediu para entre­gar um bilhete a mamãe, pois precisava conversar com ela.

E assim eu fiz.

 

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