Lá no meu trabalho, o pôr do Sol nunca termina

Não lembro direito que horas eram quando entrei na sala dele, mas devia ser tarde. Eu esperei a maioria do pessoal sair porque sabia que a coisa ia ser feia. (…)  Ora, usar informação da minha vida na terra pra me sacanear aqui, é pilantragem. É mais do que isso, é contra as regras. Aliás, porque vocês não foram averiguar is… (…) Tá, tá, vou continuar a história, quer dizer, o “depoimento”.

Como eu dizia, era tarde.  Peguei o bilhete que ele tinha deixado na minha mesa e fui andando devagar até o gabinete da coordenação.  Abri a porta sem bater mesmo, mas ele tava lendo alguma coisa sentado numa poltrona e nem olhou pra mim. Cheguei gritando de raiva e o cara nem aí.

– Que porra é essa Walter!?  Como você sabe disso?, berrei. Ele respondeu, ainda lendo:

– Sei o quê, Miss Daisy? Desce das tamancas e fala coisa com coisa.

– Isso aqui, seu desgraçado!, berrei novamente, mas desta vez babando e balançando o bilhete nas mãos.

– Relaxa.  É só algo eu que achei que você fosse gostar.

Ele levantou o olhar e jogou o papel (era um folder de um seminário qualquer) que estava lendo na mesa, bem ao lado da plaquinha com o nome dele: “Walter Lobo – Diretor Geral – Coordenação em recrutamento de espíritos obsessores”.  A plaquinha era toda trabalhada em mármore avermelhado e letras douradas, ou seja, o canalha ainda tinha sido promovido. (…) É, eu sei que não tem nada a ver com o depoimento, mas é um dado relevante. Aumentou a minha raiva dele e…(…) Ok, adiante…

Então, ele olhou pra mim com aquele sorriso de merda, deixando escapar uns 3 dentes de ouro; dentes de ouro… o cara acha que é quem, algum rapper? Enfim, ele ficou lá olhando sem falar nada, sorrindo como um idiota. Fui ficando puto e resolvi quebrar o silêncio.

– Quem te falou sobr…

– Conheci o seu pai. Cara bacana.

Ele sabia que eu detestava ser interrompido. Mas minha raiva não foi maior do que a surpresa em descobrir que ele tinha conversado com o Átila.

– Como você achou o velho? Eu já desconfiava que ele fosse descer, mas aqui é um lugar grande, porra.

–  Qual é, Márcio… cê sabe que parte do meu trabalho aqui é conhecer a fundo minha equipe, e eu sou um funcionário dedicado.  Quando me contaram que o progenitor de um dos membros mais queridos da minha equipe passou dessa pra uma melhor – uma pior nesse caso, né – eu tive que conferir pessoalmente.

O canalha tinha encontrado uma brecha na norma…ele não poderia vasculhar ativamente minha vida na terra, mas ninguém falou nada sobre informação vinda de terceiros.  E no meu caso, aquela era a fonte perfeita – alguém que nunca gostou de mim e sabia tudo a meu respeito.

– “Um homem está sujeito ao seu legado”, ele repetiu, devagar, o que estava escrito no bilhete. O timing dele é perfeito. Tenho que admitir, ele tem talento pra essa coisa de ser demônio.

– Porquê o Átila te contaria isso?, perguntei, meio que pra mim mesmo, olhando para o bilhete amassado nas minhas mãos. A caligrafia do Walter era bonita. Minha tia diria que é típica de gente vaidosa.

– Acordo, Marcim. Fizemos um que ficou bom pra todo mundo. Quer dizer, menos pra você, né? Mas vamos deixar isso de lado e focar no que interessa:  ele te falou isso no leito de morte mesmo? Deve ter sido pesado, considerando o histórico de vocês…

Foi difícil, sim. O velho já tava nas últimas, meio variando. Mas por alguns instantes, ele recuperou a lucidez que lhe restava e me falou tudo o que tava entalado naquela boca grande. Me contou porque tinha redigido, na surdina, um testamento me deserdando em todos os sentidos possíveis. E, pra terminar, ele fez aquela declaração…mas nunca me contou o significado dela. O Walter pensou que sabia o que era, e fez questão de me contar:

– Cê deve ter pensado muito sobre o que seu velho quis dizer, né? Sabe, eu tenho uma teoria: “legado” era uma coisa importante pra vocês dois. No seu caso, você queria deixar a “obra de um artista”, ser lembrado…acertei? Já o Átila enxergava em você um legado sólido e duradouro.  Imagina a cara dele na comparação expectativa versus realidade.

– Seu merda, você não sab…

– Ah, mas eu sei. Conversei muito com o Daddy. Aliás, eu sei tanto que resolvi começar os relatórios para o RH com o seu perfil. Eu até já rascunhei algo. Quer que eu leia pra você?

Eu não queria, claro, mas mesmo assim ele pegou um caderno de anotações e começou a ler:

MÁRCIO – Passou a vida tentando  se tornar um artista. Lia muito, principalmente os clássicos, além de artes e espiritualidade – mas misturava tudo isso num papo chato e pedante. Como era de família abastada, Márcio não precisava trabalhar, alegando que ainda não havia encontrado sua “grande chance”. Com a falência de seu pai, ele é obrigado a encarar a vida de frente, mas como era um bosta, não chega nem perto de vencer o desafio. Decide então findar sua existência, ateando fogo no próprio corpo – o que acabou sendo a única obra de arte que deixou em vida (o “Homem Derretido”).  

Desencarnei a tanto tempo que tinha esquecido daquela história. Quando eu estava pegando fogo, alguém tentou me salvar com um extintor de incêndio, de forma que meu corpo não incinerou por completo. O diretor de um ateliê qualquer se interessou pela minha carcaça semi-carbonizada, pois queria expô-la num vernissage  – o Átila achou que seria uma bela ironia e deu o meu cadáver pro cara, sem cobrar nada.

– Você passou dos limites seu pulha!, eu gritei, tremendo de raiva e rasgando o bilhete.

– “Passou dos limites, seu pulha”.  Até na hora de brigar você é mole, ele retrucou se levantando da mesa e  postando-se bem na minha frente.  Ficamos cara a cara.

– Olha Márcio, eu entendo o lado do seu pai. Sério. Veja, ele estava esperando um macho, espada, com tino pros negócios… um varão, entendeu? Mas aí nasce você, um baitola afrescalhado com um papo furado de “artista”, mas que não tem talento nem pra ser professor de educação artística no ensino básico, ele disse, me olhando de cima a baixo exatamente como o Átila fazia. Imitou até o seu tom de voz.

Os olhos do Walter brilhavam de felicidade quando começou a rir, timidamente. Não sei por que, mas aquilo me deixou sem jeito e eu desviei o olhar para a paisagem lá fora.  A janela dele dava para a Avenida do Banqueiro: trânsito parado, calor insuportável e o sol avermelhado no poente. Pensei em “Dogs”, do Pink Floyd.

Naquele momento as risadas dele se tornaram gargalhadas intensas, o que me trouxe de volta à situação. O seu diafragma  se convulsionava muito, como se estivesse possuído. E eu também fiquei possesso, mas de raiva e, de repente, eu estava em cima dele socando aquela cara feia que nem massa de pão.  Depois de muita porrada, o rosto dele virou uma gosma escura e oleosa, mas o som das risadas continuou reverberando pela sala, o que me fez parar e olhar ao redor. Percebi que a sala inteira estava tomada pela gosma, e foi aí que o Walter começou a me estrangular enquanto a cara dele jorrava aquela merda preta, me sujando todo.  Então, ficou tudo escuro e eu vim parar aqui.

(…) Minha sentença… o que quer dizer?

(…) Olha, é a primeira vez que isso acontece comigo, eu nunca me excedi antes.

(…)  Eu sei o que é tentação, mas tudo tem limite e…

(………………)! (……………………………)!!

(……………………………………………)!!!

– Não, isso não!!  Eu tava na reta final, porra!

Depois, só lembro de “deslizar” (é o mais próximo que consigo descrever a sensação de deslocamento que acontece por aqui) da sala de comissão de volta à minha baia.  Em cima da mesa, repousava um documento que me deu arrepios antes mesmo de saber o seu conteúdo. Sentei lentamente na cadeira, coloquei meus óculos de vista cansada  e comecei a ler.  Era uma espécie de multa, ou auto de infração. Como é de praxe, a parte mais importante estava no fim, depois da introdução que simulava solidariedade. O veredicto era implacável: “dilação do prazo de danação: 3 séculos”

É isso. Mais trezentos anos sofrendo nas mãos desse merda. Meus colegas de baia me fitavam com expressões de todo o tipo. Só notei compaixão em uma delas. Olhei para a janela do lado da minha baia e vi um casal de idosos sendo atacado por um grupo de trombadinhas.  Esfaquearam o vovô e um deles tentou se aproveitar da velha, mas desistiu no meio do caminho. O pôr do sol escarlate iluminava tudo, como sempre. Chorei.

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