Dermatobia hominis
Sylvana Camello
“Rachel desperta numa casa estranha sem conseguir se mexer e presa ao chão por algo gosmento. Sem se lembrar do que acontecera na noite anterior, tem como companhia apenas uma mosca varejeira. Visitando os labirintos da sua memória, lembra-se apenas de receber da sua agência de acompanhantes um estranho programa. Movida pela experiência com bizarrices, dá de ombros para a esquisitice do cliente. No entanto, quando o vê na cama percebe que cometera um grande erro e que sua vida corre risco.”
Rachel despertou com o murmúrio de um inseto nos ouvidos. Acompanhou-o com os olhos por muito tempo; no indo e vindo, de um lado para o outro. Não sabia precisar há quanto tempo encontrava-se neste estado semivegetativo.
– Só consigo mexer o pescoço. – Pensou de dentro de sua lassidão. – Menos mal, assim tenho chances de matar aquela mosca na parede.
Com dificuldades para respirar, tentou se levantar. Alguma coisa prendia seus braços e pernas ao chão; algo pegajoso. Parecia esticada num durex, presa por uma gosma malcheirosa.
– O que tô fazendo aqui? Se, pelo menos, eu pudesse enxergar esse lugar direito.
A luz branda de um abajur iluminava seu rosto. Tomada por uma confusão mental dos diabos, mantinha-se alerta aos movimentos deselegantes daquele inseto que teimava em passear nos seus lábios, irritando-a de forma considerável.
– Esquece esse bicho e levanta essa bunda daí sua idiota!
Seu cérebro funcionava desacelerado, tentando montar um quebra cabeças sem peças.
– Sinto que estou encrencada.
Esforçava-se para reconhecer o ambiente. Não parecia familiar. Pensou ter sofrido um acidente, uma queda ou algo parecido. Não se lembrava da última vez em que fizera uso da maconha, muito menos do dia em que misturara crack com ecstasy.
– Isso foi no mês passado? Ou ontem? Tanto faz. Não estou sobre efeito de drogas.
A mosca pousou no abajur, assustando-a.
– Vou me lembrar, vou me lembrar. Concentre-se, concentre-se.
Ela respirou fundo, buscando ar puro para os pulmões. Sua dor fora do tamanho do mundo.
– O que é isso? – Sentiu como se um espeto atravessasse suas costelas. – Preciso de um hospital, de um médico, de um curandeiro, sei lá!
Esperou que a dor abrandasse, respirando bem devagar.
– Meu dia começou no centro, me esquivando dos carros, pegando ônibus lotados e comendo porcarias nas barracas dos ambulantes. Havia um furdunço na rua, perto da Praça dos Bandeirantes. Pessoas se aglomeravam no meio dos carros, loucas para ver o que tinha naquela roda de gente. Me aproximei curiosa. Também sou filha de Deus, queria ver o que tinha de tão extraordinário naquele reboliço todo. Um cachorro do tamanho de um urso estava morto perto da estátua do Anhanguera. Moscas varejeiras saiam da sua boca, voando num ritmo cadenciado. Elas entravam e saiam dele, serpenteando seu corpo, inflando-o e zunindo nos ouvidos da gente. A fedentina já tomava conta das avenidas, pessoas começavam a esparramar seus bofes pelos pés dos postes. Decidi cuidar da vida. Não sou daquelas que se impressionam com carniça. No almoço comi um belo bife à milanesa.
Com a cabeça em chamas, viu a mosca sobrevoando suas têmporas. Ela tentou cuspir nela. Errou o alvo por poucos centímetros.
– Sabe que vou esmagá-la quando me levantar daqui, né?
A varejeira zuniu alto, assustando-a.
– Meu Deus, meu Deus, meu Deus! Como vim parar aqui? Sei que meus sentidos ainda não me abandonaram, porque escuto o som dessa maldita mosca nos ouvidos. Por que me despertou, seu demônio? Há tempos não durmo desse jeito. Nem nos meus piores porres. Filha da Puta!
O inseto continuo passeando por seu rosto, renegando seu desconforto. Rachel tentou pegá-la com os dentes, para triturá-la com sua língua.
– E ainda tem esse cheiro? De onde vem esse odor podre?
Sondou os objetos ao lado. Tentou enxergá-los, fareja-los. Nada. Apenas aquela luz chata no rosto. Percorrendo os labirintos da memória, buscou pela noite do seu infortúnio.
– Só sei que fiz um programa bem estranho nessa casa.
A mosca voltou a aborrecê-la, sapateando na sua testa.
– Entrei e fui para o quarto de um senhor idoso. Era tarde e não havia ninguém na rua. Percebi que uma neblina cobria o bairro, como naqueles filmes esquisitos de zumbi. Dei de ombros para essa bobagem. Apenas abria a porta, sentindo um cheiro estranho.
Não se lembrava de como chegou até lá, muito menos do endereço.
– Passei por um corredor escuro com cheiro de citronela. Tinham coisas esparramadas pelo chão, como baldes cheios de água e vidros de creolina. Eram muitos, cobrindo um tanque e uma mesa com seis lugares. Conheço gente estranha e já participei de muitas tretas esquisitas, mas aquilo era novidade para mim. Posso dizer, sem medo de errar, que a imaginação do ser humano para o sexo não tem limites. Por isso avancei para a sala.
Rachel quase esmagou a mosca com a cabeça, mas ela escapou pelo emaranhado do seu cabelo.
– O cheiro da citronela vinha da casa do vizinho.
A varejeira voltou para a parede.
– Quando entrei na casa, escutei alguém me chamando pelo nome.
“Aqui, Rachel! Estou aqui em cima.”
– A voz sibilava como a mosca da parede. Um senhor de proporções gigantescas estava sentado numa cama de casal. Tinha a pele esverdeada e um tom amarelado no rosto. Havia dobras de gordura pelo tronco e membros. Ele me mostrou um balde com água.
“Quero que me dê um banho”
– O obeso mórbido me pediu para limpar suas bicheiras. Havia bernes por todo seu corpo: mas dobras de gordura, na cabeça, nas costas e nos pés. Tratei todas elas com a creolina que havia me dado. Tinha larvas e ovos nas crostas das feridas. Eca! Que nojo!
Sua mente começou a processar rapidamente os fatos. Um turbilhão de emoções invadiu seu peito quando as lembranças começaram a formar o seu quebra-cabeça.
– Ele me contratou direto na agência de acompanhantes. Ligara bem cedo, pagou o programa com cartão de débito.
A prostituta mordeu os lábios, as imagens da noite voltando. Só que a mosca possuía o dom supremo de irritá-la, desviando sua atenção e concentração.
– Ok, garota, já percebi que deseja ser minha amiga, certo?
O riso de Rachel veio solto; espontâneo. A criatura continuou com seu trabalho de operária, rodopiando no seu ouvido, fazendo cócegas.
– Por que me perturba tanto?
Esverdeada, asas transparentes, alguns tons azulados. Grande e estranha. Bem maior que a maioria das moscas varejeiras. Rachel olhou para os olhos vazios dela, as lembranças atiçando seu medo.
– Agora eu me lembro! Ai, meu Deus! O Sr. obeso levantou da cama. Como conseguiu? Como se equilibrou com todo aquele peso?
O abajur vermelho balançou de forma estranha, diminuindo a luz no rosto de Rachel.
– Ainda estou na casa do cliente, no Centro da cidade, ao lado de um imenso Motel. Algo acontecera nesse quarto, disso tenho certeza. Mas o quê? Onde está o Obeso Mórbido? Para onde ele foi com todo aquele corpanzil? Será que está morto em algum lugar? Por isso esse cheiro? Alguém entrara na casa? Fomos assaltados?
Um frenesi de emoções arrepiou sua nuca quando das próximas lembranças.
– Ele tentou me beijar. Não como um homem normal, mas com a boca aberta, querendo me passar algo pela língua.
Um tremor tomou conta do seu corpo. Sentiu náuseas ao lembrar do odor do seu hálito; um cheiro podre, como o do cachorro morto da Praça dos Bandeirantes.
– Ele engolia a saliva e depois regurgitava. O obeso sibilou para mim como uma mosca. O céu da sua boca se mexia como se tivesse um enxame de abelhas nas bochechas.
Recordou o corpo monstruoso, cheio de dobras e buracos de bernes.
– Eu tropecei no balde, caindo de costas no chão.
Seu coração palpitava, o corpo todo tremia de medo.
– Joguei um dos meus sapatos nele.
Seu queixo escancarou ao descobrir o que a mantinha presa ao chão.
– Ele pisou no vidro de creolina e depois caiu em cima de mim.
Rachel ouviu um estrondo de asas.
– Continuou soprando algo no meu rumo. Sufoquei-o com o pano do balde, enfiei-o até o fundo da sua garganta. Vi quando ficou vermelho, se debatendo no chão, segurando meu pescoço. Depois ficou roxo e imóvel. Sua cabeça ao lado da minha, seus braços esticados ao longo do chão.
Desespero, falta de ar e dor nos quadris. Foi o que sentira quando esmagada por um homem de 320 quilos.
– Tinha sido uma estupidez, uma imprudência. Nunca gostei de fetiches ou coisa do tipo. Não sou fã do bizarro. Por que aceitei esse maldito programa?
O peito voltou a ficar em chamas, o sangue subiu para suas narinas. O medo em suas mais variadas faces, misturando agonia, desespero e adrenalina.
-Vou morrer asfixiada? – Foi o que pensara na hora. – Comecei a esmurrá-lo para que saísse de cima de mim. Gritei por socorro. Gritei até ficar rouca. Ninguém me ouviu.
Rachel procurou pela mosca na parede.
– Você saiu de dentro dele. Do fundo da maldita alma podre desse desgraçado!
De repente tudo cessou. Não sentia mais dor, cheiro ou comichão. Apenas uma dormência, uma perda de sentidos. Os olhos não enxergavam, a boca não falava. Sua alma flutuava pelo quarto, liberta, silenciosa e fugaz.
Num arranque desesperado voltou para o corpo. Se manteve imóvel, sem tocá-lo; não queria despertá-lo, caso ainda estivesse vivo. Não sabia quanto tempo se passara desde o tombo: minutos, horas, dias, meses? Ele continuava em cima dela; cabeça para o lado, braços abertos, pernas fechadas, pano preso na garganta. Como era feio. Desproporcionalmente gordo.
– Melhor se eu não tivesse me lembrado. Que aguentasse firme até o fim. A agência sentiria minha falta. Procurariam por mim. Por que atiçou minhas memórias? Por quê?
A mosca renegou seus olhos cheios de terror.
– É isso que deseja, seu demônio? Tomar posse do meu corpo? Comê-lo? Devorá-lo? Sou o personagem principal do seu filme de terror? Ou protagonista de um pesadelo? Prefiro a segunda opção. Sei que em breve vou despertar na minha casa, debaixo do meu ar-condicionado, com uma lata de Baygon ao lado.
O maldito inseto continuou a azucriná-la, sibilando em seus ouvidos, voando de um lado para o outro, passeando na sua boca, no seu nariz. A mosca insistia em bater asas, provocando-a, dominando-a, roubando suas preces. Rachel ficou quieta, suportando suas investidas, ciente da presença do Sr. Obeso em cima dela. Limitou a respirar, pedindo aos deuses para que ele não despertasse.
O abajur vermelho começou a balançar delicadamente, produzindo um som de porcelana. Algo caminhava dentro dele, subindo pelo soquete, empurrando a lâmpada. Ela explodiu em minutos, escurecendo o rosto de Rachel. Um enxame de moscas varejeiras transformou o quarto num tsunami de ovos e larvas.
– Socorro! Socorro! – Seu choro como numa oração.
O barulho do enxame era ensurdecedor, fazendo-a gritar de dor. As moscas serpenteavam na parede, cobrindo o chão, excitadas pelo odor que exalava do obeso.
– Isso tudo é ilusão. Logo vou acordar. É efeito do crack, eu sei que é. Já aconteceu isso comigo antes.
Insetos começaram a sair das entranhas do homem morto, esvaziando toda aquela massa fedorenta. Vermes rastejavam pelo chão, se espichando para dentro das dobras de Rachel.
– Por favor, Deus! Não me deixe aqui!
Havia pessoas nas ruas, nos carros, nas esquinas. No entanto, nenhum som saía daquela casa. A neblina que envolvia o bairro não deixava que o barulho atravessasse os muros dos vizinhos. Nada se ouvia do lado de fora. De repente o silêncio. O abajur inerte, os corpos em suspensão. Não demorou para que os vermes a as moscas começassem a trabalhar em Rachel; mastigando-a, dilacerando-a, devorando-a.
– Não! Parem! Não podem fazer isso comigo. Estou viva! Me deixem em paz!
O obeso levantou a cabeça, encarando sua vítima com olhos mortos. Suas bochechas se esvaziaram, seu rosto ficou encovado. Ele se dissolveu no chão, esparramando seus bernes através de um liquido purulento. A podridão saía por seus poros e pelos buracos dos bernes. As moscas tinham fome de carne, de coisa podre.
– Não! Por favor, não! Eu não estou morta!
Rachel sentia cada mordida; o aprofundar nas suas entranhas e o caminhar das larvas por seus ossos, tendões e músculos. Aos poucos suas veias se encheram de ovos.
– Só quero que a dor passe!
A vida fluía lentamente para fora dela.
– Não consigo mais me lembrar, estou esquecendo, estão me levando.
A mosca pousou no seu tórax com seu sibilo de mil bestas. As patas esfregando uma na outra, as asas para cima. O demônio afrontou-a com olhos esverdeados e vazios.
– Por que você me escolheu?
A varejeira caminhou por seus braços, subindo pelo pescoço, alcançando seu queixo, se aprochegando perto do nariz. Rachel deixou que seu último grito ecoasse pelo quarto, que uma última oração reverberasse pelo Inferno de larvas. A mosca se enfiou por sua garganta, indo mais e mais fundo para dentro de suas vísceras, tomando posse da sua alma. O Enxame na parede serpenteou a vítima, se enfiando por seus orifícios. Rachel se debatia no chão com olhos cheios de lágrimas. Seu corpo balançava no ritmo dos insetos, como seus sibilos enlouquecido de fúria. Ela tentava gritar, mas nada saia de sua boca. Sou corpo inchado perdia a força, se ajeitando aos movimentos das moscas. Coberta pelos insetos, se deixou levar no tempo e no espaço. Outro ser também obeso se levantou do mar de verme que se transformara a prostituta, comendo o que restara do morto. Os olhos vítreos da nova criatura olharam para o abajur. Ela sibilou para as entranhas daquela casa, avisando da presença do Demônio naquele quarto.
Não pense que o infortúnio de Rachel terminara naquela noite. Passaram-se horas, dias, meses e anos. A outrora garota de programa continuou presa ao seu pesadelo com olhos esverdeados e sem alma; comendo o corpo podre de suas vítimas. Sua silhueta agora monstruosamente gorda exalava um cheiro de morte. No entanto, o Inferno chamava por ela. A hora da troca se aproximava. Era preciso passar o bastão.
A mosca voou da sua boca na espreita de uma nova vítima. Ela esperou sentada na cama, olhos fixos no teto. O abajur sibilou seu som de porcelana, avisando-a da presença de gente na casa.
Goiânia, 25 de fevereiro de 2018.
Sylvana Camello