“Vlad é um vampiro exótico, cheio de trejeitos e rituais esdrúxulos. Drácula há muito deixara de se preocupar com o filho, deixando Mina (sua esposa) um tanto quanto irritada. Colocado na parede pela mulher, decide então tomar uma atitude severa quanto a criação do filho temporão. Contando com a ajuda do Lobisomem, vão tentar colocar freios em Vlad através de uma boa caçada pela Transilvânia. No entanto, o vampiro esquisitão deixa o Lobisomem irritado, transformando essa aventura em algo surpreendente. Será que Vlad vai honrar os caninos dos Dracul’s ou decepcioná-los de vez? Tudo vai depender de um caçador chamado Van Helsing.”
VLAD
O FILHO CAÇULA DE DRÁCULA
Drácula alongou os caninos para sua gente com um belo bocejo. Não quis ser mal-educado com os outros vampiros, mas já estava cansado pelo adiantado da hora. O tempo mostrara que não era mais o Nosferatu de outrora. Agora era um pai de família, com filhos crescidos e netos. A época das mordidas sanguinárias havia passado.
Era bem verdade que os morceguinhos mais velhos foram assombrar em outras bandas; e que sua mulher mantinha a mesma silhueta do século XVIII, época em que se conheceram. Quanto a isso não podia reclamar, fora muito bem amaldiçoado.
Na morte afortunada que levava, apenas seu filho caçula lhe dava trabalho. Mesmo sabendo que precisava ter uma boa prosa com seu garotinho exótico, recusava-se a fazê-lo. Vlad era enfadonho, com todos os seus rituais e trejeitos. Drácula sentia-se aborrecido na presença dele. Ouvi-lo falar o deixava irritado.
-Por que não me deixa dar um jeito nos seus aposentos, papai? Tudo me parece tão sujo.
O pior era ter que falar sobre ele com Dona Encrenca. Suas ancas perdiam as fogosas sacudidelas quando o assunto era o filho caçula.
-Você precisa conversar com o menino. Ele tá cada dia mais estranho.
-Eu já conversei com ele, mulher. O que você quer que eu faça? Que lhe arranque as presas?
-Não seria má ideia, já que Vlad não faz uso delas mesmo.
Mina tinha um jeito estranho de lidar com as crias: às vezes meiga demais, outras malévola como uma bruxa de contos de fadas.
-Vou falar com ele de novo. Mas você sabe que o estragou com aqueles seus mimos e adulações. Não sei se Vlad tem salvação. – Um insight chegou ao cérebro do Nosferatu quando percebeu nas vestes as pulgas do Lobisomem. Ele arregalou os olhos de um jeito estranho, como se mil estacas o perseguissem
-Olha lá o que vai fazer com nosso caçula. Não quero que o machuque, nem que o morda novamente. Simplesmente ensine-o a ser um vampiro, como fez com nossos outros filhos.
-Não se preocupe, amor. Parece que não me conhece. Eu já fiz alguma coisa com Vlad além de tentar ajudá-lo?
-Deixa eu refrescar sua memória, querido: primeiro o empurrou de um trem para que voasse.
-E ele voou, lembra?
-Fez com que o menino pegasse num crucifixo na casa do Avô.
-Depois disso perdeu aquela mania de roera as unhas. Lembra-se disso também?
-Jogou água benta nele, Drácula, no Dia das Bruxas de 1947!
-Foi um peeling maravilhoso. Até Vlad concordou comigo mais tarde.
Os argumentos do marido deixavam a vampira irritada, como se tudo que fizera fora para o bem do filho.
– Lembra-se do que deu para o nosso caçula no seu aniversário de 100 anos? – Perguntou com as mãos na cintura.
O Nosferatu deu de ombros, fazendo-se de desentendido.
-Não. Não me lembro. Juro com dedinhos cruzados – ele mostrou-os para ela – que não me lembro mesmo.
-Uma Bíblia! Uma bendita Bíblia! – Gritou em alto e bom tom – Quando o menino abriu o embrulho desmaiou de susto.
-Não, não, não. Mortos-vivos não desmaiam.
-Por favor, amor. – Ela beijou-o no rosto gelado – Você é um péssimo pai. – Ela cruzou os braços sobre os seios, esperando que ele concordasse.
-Tudo bem, tudo bem. Eu entendi. – O Vampiro-Rei abaixou as mãos para o inferno, como que se justificando para as almas penadas – Eu admito que fui um pouco exagerado na criação do nosso temporão. Mas o que um pai faria no meu lugar?
Vlad era um tanto quanto divergente e Mina concordava com isso. O único jeito era convencer o Nosferatu a tomar uma atitude severa quanto a criação do filho, mesmo sabendo que não era ortodoxo na criação de seus morceguinhos. A Vampira-Mãe decidiu então que não se faria de rogada para defender sua cria. Ela sabia que o Morcegão gostava de uma sacanagem estilosa, regada com muito sangue fresco. Seduzi-lo com as alcovas do seu caixão era sua única chance de persuadi-lo a ajudá-la. Já fizera isso antes; e os resultados foram acima do esperado.
As mil estacas voltaram a perseguir Drácula quando Mina lambeu seus lábios, como fizera na primeira mordida entre os dois.
-Faça isso por mim, amor. – Ele pensava nas ancas. Só nas ancas. – Vai cuidar de Vlad, não vai? Chegou a hora de se responsabilizar pela criação do seu menino também.
-Voooooou. Vou me preocupar sim. – Ela massageava sua orelha, como se ele fosse um cachorrinho
-No meu caixão ou no seu? – Perguntou maliciosa.
-No seu, amor, no seu. – Drácula esguichou os dentes – Vou resolver o assunto do nosso caçulinha e te encontro lá.
Sua mulher o deixou com os caninos duros. O dia prometia ser quente, ao estilo dos antigos Dracul’s. Agora tinha que se concentrar em Vlad. Para isso precisava ter uma boa prosa com o Lobisomem.
***
-Você ficou maluco! – O Lobisomem urrava. – Não vou levar o seu vampirinho para um passeio. Ele é esquisito, estranho, me joga álcool o tempo todo. Não vou sair com seu filho para caçar.
-Fala baixo. – Drácula pediu silêncio com os dedos. – Os outros convidados não podem ouvir o nosso combinado.
-O nosso combinado? Eu não combinei nada com você. – O Lobisomem mantinha a postura firme. – Prefiro uma bala de prata no peito do que uma noite de caçadas com Vlad.
-O que você quer para me fazer esse favor?
-Como assim?
-Vamos? Desembucha? Eu te conheço, cachorro. Mete a estaca, mete.
O Lobisomem lambeu o saco. Há tempos não tirava umas boas férias. Que saudades das serranias da Inglaterra; do frio, da cerveja. Mas quando pensou em Vlad, suas pulgas se assanharam.
-Eu quero férias, Drácula. – Ele disse. – Umas boas e longas férias.
-O quê? – O bom e velho olho arregalado esperando as estacas. – Não posso te dar férias. Não vou te dar férias. Peça outra coisa. Qualquer coisa. Menos férias.
-Eu quero férias. – O Lobisomem foi enfático: ou Drácula lhe dava férias; ou nada de passeios com Vlad.
-Você é um cachorro traiçoeiro, Lobo. – Os dentes do vampiro projetados para fora. – Se não tiver êxito com o menino, lhe meto uma bala de prata nos cornos, entendeu?
O Lobisomem engoliu o uivo. A missão seria árdua demais. Pensou em desistir. No entanto, mostraria para o sanguessuga que era um cachorro de raça; e não o vira-lata que imaginava.
-Meu serviço é garantido, Nosferatu. Te entrego o rapaz empapado de sangue.
Drácula esvaziou o semblante. As ancas de sua mulher esperavam por ele no caixão.
-Volte amanhã nesse mesmo horário. Vamos conversar com Vlad.
-Uau! Uau!
Na cabeça do Morto-vivo uma enxaqueca dos infernos (mortos-vivos têm enxaqueca?). Com certeza, os mimos de Mina lhe trariam algum conforto. Malditos são os filhos demasiadamente humanos, pensou massageando a nuca.
***
Vlad vestiu sua jaqueta da Fórum, feliz por mais uma noite de morte. Mantinha o seu rosto descansado, a pele sempre limpa e branca. Antes de atender ao chamado do pai, lustrou os dentes, penteou os cabelos, hidratou o corpo, tomou um Resfenol e lamentou o fato de não poder se ver no espelho. Para seus desjejuns, suas bolsas de sangue tinham que ser pasteurizadas, higienizadas e livres de plasma. O fator RH- lhe dava alergia. Sua mãe acreditava nisso; já Drácula sentia vontade de esmagá-lo todas as vezes que se aproximava vermelho como um pimentão e empolado como “A Coisa” de Os 4 Fantásticos.
-É o fator RH, pai. Me sinto atropelado por uma VAN. – Dizia desfalecendo no caixão da mãe.
Drácula o expulsava do quarto, furioso com Mina que corria para mimá-lo.
-Não existe alergia entre os Vampiros, esposa. Nós não ficamos doentes. Diga isso para o maluco do seu filho.
O caçula escorregava do túmulo; sempre com Síndrome do Pânico, sufocado com a penumbra da noite e amparado por uma mãe preocupada.
-Vou preparar seu sangue. Não se preocupe com seu pai. Ele não aceita que a cada século ficamos mais e mais humanos.
Vlad aconchegava-se nos braços de Mina. E quando o pai não estava por perto, até chupava o dedo. A comunidade de Vampiros da Transilvânia conhecia o destempero de Drácula pelo filho caçula. Os mais corajosos não perdiam a chance de tirar aquele “sarrinho” da cara do Vampiro-Rei.
-Talvez Drácula queira indicar Vlad para chefe da guarda. – Provocara certa vez o Lobisomem.
-Ha ha ha! – Foi o som feito durante toda a reunião.
O Nosferatu sentia-se acuado quando o assunto era o filho caçula. A despeito de tudo que passara com ele até então, não sabia o que fazer com seu menino. Resiliente como nunca fora antes, apenas rangeu os dentes para as brincadeiras dos amigos, louco para cravar seus caninos no pescoço do Lobo. Um dia o metamorfo pagaria o preço por provocá-lo daquele jeito.
Agora Vlad, o causador de todo esse infortúnio, os observava pelo canto dos olhos, sentindo que seu estômago regurgitava o Café da Noite. Um chazinho de boldo não me faria mal, pensou.
-Mandou me chamar, pai. – Perguntou pisando em ovos.
-Sente-se. – Drácula apontou o acento do Lobisomem. Esse se levantou coçando o rabo e esparramando pulgas pela sala.
Vlad pegou um lenço no bolso de sua calça Lee. Ele o umedeceu com o álcool gel que carregava numa pochete da Melissa que ganhara de sua mãe (Drácula não sabia o que mais lhe doía: se ver o filho se perder em frescuragens ou usando uma pochete). O caçula inclinou-se sobre a poltrona onde estivera sentado o Lobisomem, limpando-a com mãos afetadas.
-O que está fazendo, Vlad? – Perguntou o Vampiro-Rei escancarando sua bocarra em O maiúsculo.
-Não vou sentar em titica de lobo. – Ele continuou com seu trabalho frenético de limpar a poltrona – Nunca vi essa criatura tomar banho. Creio que tenha ácaros milenares.
O Lobisomem latiu na cara do estranho vampiro.
-Que nojo! – Vlad jogou álcool gel na besta fera, fazendo-a recuar. – Criatura desprezível. – Disse puxando da pochete um lenço descartável.
-Sente-se logo, Vlad. – Desmerecendo os desejos do Nosferatu, continuou limpando a poltrona. – SENTE-SE PELO AMOR DE DEUS!!! – Gritou Drácula.
O caçula se arrepiou com o desconforto do pai, sentando-se na beiradinha da poltrona. O Lobisomem rosnou como um cão de caça, esfregando os olhos irritados pelo álcool gel.
-Maldito filho da puta! – Grunhiu para Vlad.
-Quieto os dois!
O Vampiro-Rei aprumou os cabelos, louco para se enfiar numa tumba e só despertar no ano de 2027.
-Tenho um trabalho para você, filho. – Disse retomando a calma.
-Para mim? – Vlad mostrou espanto, colocando as mãos no peito – O que posso fazer para ajudá-lo, pai? Devo higienizar seus aposentos? Ou lhe fazer uma massagem? Uma limpeza de pele, talvez?
-Nenhuma coisa e nem outro. Vai caçar com o Lobisomem.
-O quê? – O vampiro caiu da poltrona, puxando uma bombinha de asma da pochete. Com afetada elegância, borrifou o líquido goela abaixo, sentindo-se sufocar. – Que brincadeira é essa?
-Não é brincadeira. Vai caçar com o Lobisomem. – Drácula ficou de pé, destravando a espinhela e coçando a língua nos caninos. – Quero que conheça as ruas da Transilvânia. Não aguento vê-lo o tempo todo dentro de casa. Precisa perder esse medo, essa fobia social. Somos Vampiros, Vlad. Não humanos de merda. – O Nosferatu arrumou sua imensa capa, colocando-a rente ao corpo. – O Cachorro vai te levar para um tour pela cidade; para que conhece os lugares de caça.
O caçula olhou para o metamorfo. Esse devolveu um olhar malicioso.
– E já tô avisando que não vou tomar banho. – Disse numa gargalhada para Drácula, que também sorriu.
Vlad tentou correr para o caixão da mãe. Nosferatu o segurou pelos ombros, sacando a treta do filho.
-Mina está descansando, rapaz. – Ele o levou para a sacada. – Não deve incomodá-la com besteiras.
Empurrando-o pela janela, o viu despencar para fora do castelo. O Lobisomem pulou logo atrás, obrigando-o a se transformar num morcego. A penumbra da noite caira há poucas horas. Uma neblina fina cobria as montanhas da Transilvânia. Drácula chacoalhou a capa ao vê-los se digladiando pelas paredes. Que a besta fera pulguenta lhe trouxesse boas novas. Que seu filho aprendesse alguma coisa com o Lobisomem, que pelo menos se sujasse um pouco, pensou.
***
Na calada da noite, o tatatatataraneto de Van Helsing espreitava nas sombras. Ao lado dele uma bolsa de couro da família, com os pertences dos antigos caçadores de monstros. De semblante acanhado, segurava com força uma estaca de madeira que fora de seu tatatatataravô. O simplório artefato fora usado em caçadas pelo mundo, livrando-o de vampiros das mais variadas etnias e gêneros. Van Helsing guiava-se pela Lua para encurralar suas vítimas. O mesmo estava sendo feito por seu tatatatataraneto, que cheio de coragem, espreitava pelo lobisomem.
Com óculos fundo de garrafa, esperava por qualquer coisa que se parecesse com um lobo. Alguns velhos colonos indicaram becos mais afastados do centro; lugares com prostíbulos, um eterno reduto de vampiros que se alimentavam das mazelas humanas. E como chegou, ele ficou; na espreita, na penumbra.
***
Vlad acompanhava o Lobisomem. Nauseado pelo cheiro forte de animal selvagem, atolava o nariz no lenço umedecido de lavanda que roubara de sua mãe alguns dias antes. Com um spray alcalino, borrifava o metamorfo sempre que ele tentava se aproximar.
-Por que não para de jogar isso em mim? – Ele rosnava para o vampiro.
-Porque está fedendo feito um gambá.
-Se continuar borrifando isso quebro o seu pescoço.
-Deselegante e indelicado como sempre.
Vlad guardou o spray na pochete, puxando sua luva cirúrgica.
-O que pretende fazer com isso?
-Não chegue tão perto, Lobisomem. – Vlad fez cara de nojo. – Não bafeje suas bactérias milenares em mim. Sabe que não gosto que se aproxime da minha pessoa.
O Lobisomem deixou-o para trás. Seus cheiros variados o deixavam com revertério no estômago.
-O negócio é o seguinte: – ele esperou que o Vampiro colocasse suas luvas cirúrgicas – seu pai deseja que chupe o sangue de algo vivo.
-Isso não vai rolar. – Vlad parou de andar.
-Vai sim. – O Lobisomem puxou-o pelo pescoço. – Qual foi a última vez que mordeu alguém?
O vampiro tampou o nariz, evitando o cheiro de lobo da besta fera.
-Eu tinha uns cinco anos, por quê?
-Meu Deus! Você tem 120 agora!
-Isso, cachorro, grita para o mundo o meu infortúnio. – Vlad buscou na pochete um batom de cacau. Ele retocou os lábios. O Lobisomem escancarou a boca em O maiúsculo, louco para estapear o filho caçula de Drácula.
-O que tá fazendo?
-Me hidratando. Não sou obrigado a ficar seco como um maracujá.
Ele devolveu o batom para a pochete.
-Onde fui me meter. – Disse o Lobisomem.
Uma prostituta esperava na calçada, mastigando um chiclete de boca aberta. De cabelo vermelho, maquiagem pesada e rosto bonito, acenava para os homens que transitavam de carro pela rodovia.
-Tá vendo aquela moça? – O metamorfo apontou para a prostituta – Vamos pegá-la antes que descole um programa.
-Programa? – Vlad mostrou inocência sobre o assunto. – Como assim “descole um programa”?
A besta fera revirou os olhos. (Não é possível que nunca tenha visto uma prostituta).
-Você não sabe o que é uma prostituta? – Perguntou com olhos vermelhos como fogo.
-Eu sei o que são prostitutas. – Vlad olhou para a moça na calçada – Mas aquela não se parece com uma. Tem boa aparência e uma fina estampa.
A aparência das prostitutas mudara nos últimos anos. Pareciam feitas de porcelana. E aquela tinha uma perna esguia e um cheiro de jasmim. Estava deliciosa aos olhos da besta fera.
-Aposto que tem sangue quente. – Disse o Lobisomem.
-Aposto que tem doença venérea. – Disse o Vampiro.
O metamorfo crescera com aquele menino. Será que nunca percebeu o quão estranho (de muito estranho) ele era? O jovem Dracul puxou um comprimido da pochete. Tomou-o sentindo o amargo descer pelas entranhas.
-Estou com dor de cabeça. – Argumentou calmo quando percebeu que a besta fera o observava. – Quer um?
-Não me ofenda, garoto. – Ele voltou a observar a menina na calçada. A pegaria desprevenida, quando estivesse distraída da estrada. – Vamos preparar uma armadilha para ela.
-Ela quem? – Vlad retocava novamente os lábios.
-Quem estamos caçando, bocudo? – O Lobisomem torceu o pescoço do Vampiro para que enxergasse a prostituta.
-Sei, sei – disse – Tô ligado.
Vlad sorria por entre bochechas rosadas.
-O que você tomou?
-Nada. Um simples analgésico.
Ele farfalhava alto, chamando muita atenção.
-Quieto, peste. Quieto.
O Lobisomem arrastou-o para mais longe, antes que a menina desconfiasse e fugisse amedrontada. Ele chegou por trás da estrada, trazendo o Vampiro. Vlad arrastava uma carranca do tamanho do mundo, com direito a biquinho de Facebook.
-Você chama a atenção dela … – cutucou o Lobisomem – … eu arrasto a rapariga para o mato.
-Eu não vou colocar meus dentes nessa moça. – Vlad assoou o nariz, arrepiado só de pensar no gosto azedo da prostituta. – Prefiro enfrentar a irá do meu pai.
-Ele vai cortar sua cabeça, isso sim. Acho melhor enfiar esses caninos na garganta da menina e ganhar mais tempo. – Mentiu o Lobisomem. Precisava convencê-lo a morder alguma coisa. Ele que se arranjasse depois com o Pai. O que estava em jogo eram suas férias, preteridas por 100 anos. Que fosse para o inferno a família Dracul. Vêm férias!
-Ta ta ta … – aceitou contrariado – … como faço para chamar a atenção dela?
-Sei lá! Pergunte alguma coisa.
Vlad borrifou o spray de asma na garganta.
-Tudo bem. Vou pensar em algo.
Transmutado de morcego, voou por entre as árvores. Num voo raso, transmutou-se novamente em vampiro mais à frente. A menina não percebeu a movimentação da besta fera, apenas continuou mastigando seu chiclete na beirada da calçada. Vlad passou as mãos cumpridas pelo cabelo, aprumando o corpo e caminhando como uma gazela pelo caminho escuro do beco. O Lobisomem observou-o divertido, louco para empurrá-lo na lama de musgo que se formava nos fundos da rua.
***
Do outro lado assuntava um cara. Ainda mantinha o artefato nas mãos, a bolsa de couro ao lado do corpo, olhos fixos na prostituta. Percebera a movimentação das entidades e fizera de tudo para não chamar a atenção. Lembrou-se que não trouxera nenhuma bala de prata; apenas água benta, à estaca e alguns crucifixos. Não via problemas nisso. Acertaria o metamorfo com o que tinha, mas primeiro cuidaria do vampiro.
***
Vlad tremia nos caninos. Não de fome; mas de nojo. Só de pensar em colocar os dentes naquela garganta chupada por diversos homens (com salivas infectadas por genitálias imundas) lhe dava coceiras de arrepio. Mesmo assim ele o faria. Para se livrar do seu pai chuparia chulé se preciso fosse (Ughhh!!).
Mesmo sentindo o estômago regurgitar com a aproximação da moça, continuou com passos firme, como o avô o ensinara. Seu porte atlético chamava a atenção das mulheres; e não seria diferente com aquela coitadinha; que logo, logo, seria dilacerada pelo pastor alemão de seu pai.
-Boa noite! – Vlad segurava a pochete, com medo de perdê-la. – Quanto é o programa?
A prostituta arregalou os olhos, escancarou a boca em O e soltou uma sonora gargalhada. Sem entender o porquê de tamanha graça, o vampiro cheirou o bafo, acreditando ser um possível mal hálito.
-Vai depender do que vai querer… – ela puxou o chiclete, meneando de forma estranha a cabeça. – …com rabada é um preço, com boquete é outro. Se for querer os dois, faço um precinho bem camarada.
Seu odor de cosméticos Mary Key infestava o ar, fazendo com que Vlad tapasse o nariz com seu lenço de lavanda.
-Ora, ora, moço. Por que não volta para a o caixão de onde veio. Não gosto de programas góticos.
-Programas góticos?
-Sim. Programas góticos. – Ela suspirou. Precisava descolar um programa e o moço estranho estava atrapalhando. – Trepar em cima de cruzes, em cemitérios, com cadáveres …
Assim que ouviu as últimas palavras, Vlad regurgitou feito um papagaio. Ele não tinha nada no estômago; porque não tinha estômago. Nem fluxos tipicamente humanos; porque não era humano. A despeito disso, ele acreditava que os tinha. Apesar de nunca ter vomitado na vida, sabia imitar os trejeitos de quem vomitava; no caso, os humanos.
-Você já transou com cadáveres? – Perguntou recobrando o equilíbrio.
A prostituta meneou levemente a cabeça. Vlad enfiou vários comprimidos de aspirina goela a baixo, louco para que o pesadelo acabasse. Ela transou com cadáveres. Ela transou com cadáveres. Ela transou com cadáveres. Que provação, meu Diabo. Que provação! O Lobisomem pressentiu que o vampiro antisséptico logo fingiria um desmaio, porque mortos-vivos não desmaiam. Com medo de perder a presa, voou sobre ela, agarrando-a pelo pescoço. A moça de pernas esguias tentou gritar, mas foi abafada pelas mãos peludas do metamorfo.
-Anda logo, Vampiro. Chupe todo o sangue dela. Vamos acabar logo com isso. As ruas iluminadas de Londres me esperam. – Ele imobilizou-a de forma a deixá-la com o pescoço a mostra.
-Você ouviu o que ela disse … – Vlad se aproximou do Lobisomem, para cochichar algo no seu ouvido – … ela transa com cadáveres.
A voz dele saiu como um sussurro.
-E daí. Seu pai transa com sua mãe, não transa? Então.
-Mas eu não vou chupar os líquidos das entranhas do meu pai. – Vlad franziu a testa – O sangue dessa moça deve ser um camafeu de bactérias e vírus. – a prostituta fez que sim com a cabeça.
-Anda logo, Vlad. Lembra do que te disse?
Ganhar tempo. Ganhar tempo. Ganhar tempo. Ta ta ta. O vampiro se aprochegou na moça. Ela arregalou os olhos quando viu seus caninos poderosos. Estrebuchando feito um boneco de posto de gasolina, tentou morder a palma da mão do Lobisomem.
-Pode tentar, querida. Tenho o couro grosso.
Vlad pegou na pochete seus lenços. Ele os umedeceu em álcool gel
-Você só pode tá de brincadeira, né?
O caçula de Drácula limpou o pescoço da prostituta repetidas vezes, para se certificar livre das bactérias.
-Não temos o dia todo. Morda logo essa filha da puta!
-Calma, calma, calma.
Vlad uniu os dedos indicador e o vai tomar no cu da mão direita. Como num exame de sangue, deu pequenas batidinhas na veia jugular da moça.
-O que você está fazendo agora, seu merda?
-Preparando a veia.
Ele levantou os lábios com a mão esquerda enluvada. Não queria que sua pele encostasse na prostituta. Quando pronto para mordê-la, foi agarrado por uma mão poderosa. Van Helsing empurrou um crucifixo de encontro a sua testa.
-Aiiii !!! – Vlad gritou. O cheiro de carne assada o fez esguichar os caninos para fora, como numa cobra peçonhenta.
O Lobisomem soltou a moça, que aos tropeços pegou o rumo da avenida principal.
-Solte-o. – Rosnou o Lobisomem para Van Helsing.
-Venha tirá-lo de mim, besta fera.
O caçador de vampiros mantinha o crucifixo na testa de Vlad.
-Um maldito Van Helsing – O Lobisomem babava com o cheiro do caçador – Há quanto tempo não vejo um desses por essas bandas. Drácula vai adorar saber que ceifei a vida de um de seus mais proeminentes inimigos.
-Antes disso mato um de seus filhos.
O rosnar da besta ecoou pelas ruas da Transilvânia.
-O menino está sobre meus cuidados – O Lobisomem grunhiu enfurecido – E como pretende matá-lo? Com um crucifixo? – Novamente o uivo da besta – Ele é o filho caçula de Drácula. Sua alma nunca se quebra.
Van Helsing puxou a estaca de sua sacola de couro, mostrando-a para o Lobisomem. Esse recuou quando reconheceu o artefato antigo.
-Trago à estaca do meu avô, a assassina de inúmeras gerações de vampiros. Só preciso cravá-la no peito desse sanguessuga esquisitão.
Vlad arregalou seus olhos vermelhos quando ouviu as palavras: “estaca do meu avô. ” … “Assassina de inúmeras gerações de vampiros” … Ele pensou no sangue acumulado por séculos naquele pedaço velho de madeira; das bactérias milenares, nos vírus da idade média e em suas mutações, nos musgos incrustados nas suas lascas impuras. Seus sentidos viajaram eras na imundice do mundo; naquilo entrando no seu corpo vampiresco, nelas se proliferando no seu sangue; nos sintomas, na lepra, no botulismo, na peste bubônica … isso o fez estremecer de sofreguidão, como se um punhal lhe fosse enfiado nas costas.
-O que vai fazer, Lobisomem? O que vai fazer?
A voz do tal Van Helsing trazia à tona sua labirintite; além de um formigamento nas têmporas e um aperto na garganta. Ele sentia o comichar das bactérias, o ressoar dos vírus vindo da estaca. Eu não aguento! Não! Não! Não! Num movimento vampiresco de dar inveja em Drácula, postou-se atrás de Van Helsing, se libertando do crucifixo. O caçador encarou lobo com olhos vítreos de espanto. Vlad não teve tempo de acionar sua pochete, porque ceifou a vida de seu algoz lhe arrancando a cabeça. Quando percebeu que as tripas do caçador se esparramaram pelo chão fingiu um desmaio; porque mortos-vivos não desmaiam. O Lobisomem escancarou a boca em O maiúsculo se alimentando do corpo quente de Van Helsing. Seu uivo de satisfação ecoou pelas penumbras sombrias da Transilvânia.
***
O salão de festas do Castelo dos Dracul’s estava repleto de vampiros. Um tapete vermelho fora estendido por toda sua extensão. Havia uma imensa fogueira ao lado do trono Real. Mina e os filhos mais velhos encontravam-se ao lado de Drácula, orgulhosos como nunca estiveram antes. Vlad e o Lobisomem caminhavam pelo suntuoso tapete; cada um carregando uma caixa de bronze lacrada com o selo real da família do Vampiro-Rei. Eles se divertiam com os olhares curiosos dos mortos-vivos, loucos para saber o que havia dentro daqueles baús. O vampiro sorriu para o metamorfo, que soltou um uivo de satisfação ao se aproximar de Nosferatu.
-O que têm nessas caixas, filho? – Drácula olhou para a esposa, que também não sabia de nada. – Pediu a presença de todos numa grande festa e aqui estamos … – ele levantou os braços apontando para os vampiros no salão. – … até seus irmãos estão presente depois de tantos anos de ausência. – Eles acenaram para Vlad, que retribuiu com um largo sorriso. – Tem algo importante para me mostrar, menino?
Ao comando de Vlad, o Lobisomem colocou sua caixa aos pés de Drácula. Esse olhou desconfiado. Não confiava naquele cachorro vira-lata. Mas não mostraria o seu receio diante dos outros vampiros.
-Acredite no que digo, pai. Foi uma boa caçada. – Orgulhou-se Vlad puxando seu lenço da pochete.
Drácula abriu o baú de bronze. Sua boca se escancarou em O maiúsculo quando viu o que tinha lá dentro. Um sorriso brotou no rosto de um pai virtuoso, assim como nas mandíbulas de um Drácula sedento por vingança. Ele enfiou as mãos na caixa, puxando a cabeça do tatatatataraneto de Van Helsing pelos cabelos generosos.
Um Oh!!! de surpresa tomou conta do castelo. Os vampiros aplaudiram o feito de Vlad, mesmo sabendo que um lenço com cheiro de lavanda tapava seu nariz.
-Mandou bem maninho! – Gritou um dos irmãos.
-Estou tão orgulhosa de você, filho. – Mina o abraçou, piscando com malícia para o Lobisomem. O metamorfo engoliu seco. Se Drácula desconfiasse que pegava Mina em seu caixão de mogno, ai ai ai.
-Também estou orgulhoso, menino. – O Vampiro-Rei abraçou-o sem jeito, sentido um cheiro forte de lavanda. – O que tem nessa outra caixa? – Quis saber.
Vlad pegou suas luvas cirúrgicas na pochete, vestindo-as na frente de todos no salão. Colocando o baú no chão, puxou a estaca centenária de Van Helsing.
-A matadora de Vampiros! – Gritou para os súditos de seu pai.
Com um movimento rápido, jogou-a na fogueira. As labaredas afastaram os mortos-vivos, fazendo-os tremer. Quando o fogo voltou ao normal, uma salva de palmas envolveu o filho caçula de Drácula. Esse assistiu tudo com olhos cheios de lágrimas. Seu filho havia crescido.
Colocando as mãos nos ombros do Lobisomem, proferiu sua Lei.
-Que suas férias sejam proveitosas, Lobisomem!
O metamorfo sentiu uma comichão nas pernas, um arrepio na espinhela. Olhou para Mina com cara de cachorro abandonado, deixando-a furiosa. Quando prestes a deixar o salão, foi agarrado pelas mãos poderosas de Drácula.
-Espere um pouco, cachorro. – Pediu fazendo-o recuar. Os pés do metamorfo congelaram – Vlad passou por poucas e boas nos últimos séculos. Creio que umas férias lhe fariam muito bem também, não acha?
-O quê? – O Lobisomem escancarou a boca em O O O maiúsculo.
-Isso mesmo. – O sorriso de Drácula fez brilhar seus caninos. – Leve Vlad com você. Formam uma bela dupla.
Agora eu vou destroçá-lo, poodle. Tu vais pular em mim e eu vou torcer o seu pescoço. Anda, cachorro. Me ataque. Ataque esse velho Nosferatu.
O Lobisomem piscou para o Vampiro T.O.C.
-Vamos nessa, pirralho! – Disse entre um uivo e outro. – Faça suas malas.
Vlad abanou as mãos, como se estivesse tendo um mal súbito. Ele pegou na pochete seu spray para asma, borrifando na garganta.
-Tem certeza, Lobo?
-Não me faça desistir. – Gritou já perto do fosso.
Os dois saltaram para fora do castelo transmutados em morcego e lobo. Drácula escancarou a boca em O O O maiúsculo, desacreditando no que vira.
-Estou vermelho como sangue. – Disse para a mulher. – O que foi aquilo?
-Creio que Vlad tem um amigo agora.
Drácula engoliu seco, pensando no trocadilho que seus amigos fariam entre Vampiro-Rei e Vampiro-Gay.
-Espero que tenha razão, querida. Que não seja outra coisa.
-Não se preocupe com isso. O Lobisomem não gosta desse tipo de “coisa”. – Ela gesticulou aspas para o marido.
Drácula afrontou-a com espanto.
-Como sabe das preferências do Lobisomem.
-Nós mulheres apenas sabemos, amor. Apenas sabemos.
Ela piscou de forma sedutora. Drácula suspirou. Que o Demônio não o testasse com tamanha provação; não nessa altura da morte. Aquela dor de cabeça de novo. Maldita! Quando se livraria dela? Mina trouxe sua aspirina. A mulher o conhecia muito bem. Bem até demais, pensou desconfiado.
***
-Precisa tomar banho, Lobo?
-Não enche o saco!
-Mas tá fedendo como um gambá.
-Se continuar como isso te coloco para fora desse caixão.
-Como consegue ser tão cabeça dura? Falo isso para o seu bem. Sujeira em demasia faz mal. Traz doenças. Um banho lhe faria muito bem.
-Você não reclamou quando te coloquei aqui dentro na noite passada.
-Não seja grosseiro, Lobo. Isso foi muito deselegante.
Vlad procurou por sua pochete.
-Sou um metamorfo, não fico doente. -Insistiu o Lobisomem.
-Não consigo ficar aqui com esse cheiro. – Vlad tentou sair, repuxando a tranca, fazendo seus trejeitos estranhos. O Lobisomem apenas fechou-a por dentro, escondendo a chave. – Você é um monstro, sabia? Além desse cheiro de gambá, tem esse gênio dos infernos. Meu pai tem razão quando diz que ……
O metamorfo bocejou tapando os ouvidos. Tão parecido com a mãe. Que infortúnio!