É tão engraçado fotografar as pessoas, dá-me um poder, um poder de ser externalizada do mundo, torna-me uma observadora, mas não é como um cientista diante de uma colônia de procariotos em uma placa de petri; vai, além disso, é como se eu fosse a Clarice para a Loreley, envolvo-me mutuamente com a introspecção do objeto de estudo, de uma forma até meio onisciente, ousando adivinhar, pôr-me a ouvidos de suas personagens submersas, ainda doces crianças com medo de largar as velhas rodinhas de sua magrela e faço isso para ensiná-las a ser gente. Por que não se aceitam logo de uma vez? Por que pedem filtros e mais filtros nas montagens? Será que não percebem que não adianta fugir deles mesmos? As pessoas são individualistas demais para realmente se importar se ela ou ele se esqueceram de retocar ou não o protetor solar secante, sem contar que a desproporcionalidade está presente em todo mundo, essa farsa do equilíbrio renascentista é completamente anacrônico em pleno século XXI! Mas tudo bem! Vamos fingir que vocês são o centro do mundo, bebês!

E não venham dizer que fazem isso por amor-próprio, por que nem alfabetizados o suficiente vocês foram! Sofrem de uma moléstia braba: a obsolescência programada! São reprogramados diariamente para se odiar cada vez mais, para acreditarem que estão ultrapassados e precisam novamente se adequar. Assim, ratinhos de laboratório continuem… Continuem…a girar rodinha atrás do grão chamado joio. Tsc Tsc, mas não vou ser totalmente hipócrita! Esse é o meu ganha pão, contrabandear destinos, prometendo as pessoas que elas ficaram perfeitas, enquanto me enriqueço, apesar de que se for parar para pensar, não passa de um culto a notas de papel, então também estou em um estágio vegetativo, a diferença entre nós então, leitorzinho, é que eu estou aberta a entender as contradições desse sistema, dessa fábula perversa. Mas por que eu estou te falando isso? Não vai adiantar mesmo! O Condicionamento aos valores “morais” é histórico, solidificado, enraizado em suas almas. Quer saber, prossigamos, deixemos as digressões para mais tardes… Minha função aqui é te levar para a Terra Nunca, certo Peter Pan?

Eu já havia terminado de registrar no tempo mais uma muleta escultural a um casal classe B, quando recebi um telefonema. Era Cinco de Julho, meu namorado estava em nosso apartamento terminando seu longo trabalho de TCC, minha mãe possivelmente teria saído mais cedo do serviço para trair meu pai e ele estaria perdendo todas as economias na mesa de jogos de azar. Ligaram no meu celular, diretamente para o meu número pessoal, o qual exceto essas três pessoas que citei, era para nem ser sequer cogitado existir, mas eu estava de bom-humor naquele dia e vesti de uma forma tão sórdida a cordialidade que Sérgio Buarque de Holanda teria me dado um Oscar.

– Pois não?

Completei com a voz aveludada.

Era um chiado estridente, alguns homens pareciam gritar ainda em estágio pré-civilizatório, mas eu sou muito curiosa, então resisti e me dirigi para frente do meu estúdio fotográfico tentando decifrar os grunhidos fabianicos e mal sabia que eu estava a questão de segundos de passar pelo maior clímax da minha vida.

– Até que enfim! Não estava conseguindo te entender, seu Joel.

Era o zelador e seu timbre estava mais agudo do que o normal, a respiração estava descompassada, perdia-se nos dizeres, materializei em estágio de fobia e infelizmente eu não estava errada.

– AA-Conteteeceu algo muit-t-to sério, Ma-ri-lu. O homem do gás. apareceu na portaria e eu avisei o seu Henrique.

– Sim, deixei um bilhete na geladeira o avisando. Mas o que isso tem de tão sério, seu Joel? O senhor está me assustando!

Foi quando ele me contou e aquilo mudou a minha vida.

– Henrique abriu a porta do elevador, mas este não se encontrava no andar, ele caiu no fosso, dona Maria Lúcia.

Não consegui dar mais um passo, uma espécie de imponderabilidade tomou meus tecidos, escorei na parede, foi quando observei do outro lado da rua o esforço do vento em arrancar a última folha daquela cerejeira e de tanta insistência, ela caiu. Era a réstia de felicidade esvaindo, mal sabia eu. Tomei o telefone e não consegui conter o choro.

– Ele está bem, não está seu Joel?

E ele…

– Não, Dona Marilu, ele se foi.

Naquele instante era como se o tempo estivesse parado para mim, como se toda minha essência estivesse escorrida para o bueiro próximo que se abria na guia. O som dos automóveis, das rodas, do sopro do vento, da idosa que descia com os netos no ponto de ônibus após um adorável piquenique no parque, da água que jorrava de um cano estourado no segundo andar da biblioteca, todos eles misturavam-se de forma canhestra, ruidosa, indiscernível, um zumbido feroz que gritava como se quisesse dizer uma coisa, mas o máximo que conseguiria era um nada, um vazio que agora ordenava o meu coração. O que seria de mim sem ele por perto? O Jaguar me assumiu, desatei a correr, sem lenço e sem documento contra o vento do tempo que a cada fração me afastava daquele triste momento. Postes, esquinas, semáforos, tudo um grande empecilho, mas a prova que a grande fábula perversa existia, a tal do Milton Santos.

Nem pensei em pegar o carro no mecânico a chance dele estar tinindo em folha seria mínima preferi dar a chance aos meus pés quem sabe o desapego a tecnologia far-me-ia sentir mais livre mais verdadeira envolvida com de fato o que nenhuma ciência no mundo fora capaz de evitar a senhora morte quem sabe tudo não se passara de um incrível engano quem sabe Joel não havia bebido e resolvera lhe pregar peças como eu sou uma criança ainda por favor meu Deus dê-me um pouco de malandragem e resiliência para suportar o que tiver que vim nascemos e crescemos independentes isolados diferentes de uma colônia de bactérias ele era um corpo eu sou outra não tínhamos uma ligação exceto a social afetiva de ser namorado eu não posso parar a minha vida por culpa dele isso seria ridículo infantolóide para ser mais exata por que repetir isso para mim não está funcionando sempre funcionou como me sinto fraca em olhar para a fossa e ela me responder de volta como uma velha amiga que há tempos estava adormecida mas que agora transbordava em águas helicoidais redemoinhos estranhos e afórmicos eles pareciam olhar para mim e rir por saberem que faziam parte de mim e depois secarem para mostrar que nem mesmo a água era capaz de dissolvê-lo ele sempre estaria lá para provar o que era eu o que sou eu um enorme buraco negro que procura sentido em números em pessoas para sobreviver fraca sua vadia é por isso que está sofrendo agora bem feito bem feito mesmo.

Dobrei a esquina e avistei dentro do condomínio, o prédio que morávamos no fim da rua, ele estava peculiar naquela tarde. Branco encardido como sempre, desdenhoso, contudo as janelas pareciam brilhar de uma forma diferente, algo que lembrava uma sala de espelhos, um espectro meio de um certo motel famoso nos filmes de terror e ele parecia ter se personificado, parecia me encarar de uma forma sombria, porém, indiferente, como se eu já soubesse que cedo ou tarde aquilo iria acontecer. Teria eu conhecimento disso? Olhei de relance e a placa identificando o nome da rua, preso naquele armazém estava do avesso e as letras manchadas com Merthiolate ou seria sangue mesmo? O sangue dele?

Quando entrei pela portaria, percebi que um grupo de umas dez pessoas me encarava com piedade e senti-me mal. Procurei virar a face e aquela nítida impressão de envolvimento no acontecido me perseguiu até a torre onde morávamos. Sabotei o elevador? Não havia sentido eu sofrer se já sabia que aquilo iria acontecer? Por que aquilo me assombrava? Por que parecia que as pessoas caminhavam do outro lado do jardim, tranqüilas, mas estavam lá, encarando a minha dor? Eu precisava desligar o longo delírio do contra factual e me ater à realidade. Havia um homem morto sendo retirado do fosso do elevador e esse homem fez parte da minha vida nos últimos cinco anos. Se eu não controlasse minha evasão, quando despertasse, iria-me autoflagelar para o resto dos meus dias. Ao ver seu semblante, esmoreci, era de fato Henrique de Orleans que havia terminado de forma trágica seus dias.

PARTE II

PREGO ENFERRUJADO

 

Já fazia umas duas semanas que ele havia partido e eu ainda não conseguia tocar na minha câmera fotográfica, parada, no balcão da cozinha virada para mim. Girei as cravelhas, ali mesmo no chão da sala e tentei afinar meu violão, mas parecia que eu havia desaprendido, o timbre não me parecia agradável, estava plástico, obtuso, desisti e o depositei no sofá. As cortinas pareciam sentir meu aproximar, abriram-se mais, revelando a varanda. Soltei meu rabo de cavalo e permiti-me misturar ao vento. Como ele fazia falta! Parecia ontem que entravamos na porta do 89, sorridentes por ter nosso lar. Talvez fosse melhor seguir os conselhos de minha mãe e pôr a venda o local, era cruel estar ali sozinha, estar dentro daquele sonho que não havia sido planejado apenas por ela, sentia-se egoísta em parecer que tudo aquilo a pertencia. Meu estômago roncou de fome, mirei do outro lado da rua e constatei que a quitanda de Jandira estava aberta.

Já havia se passado das cinco horas quando contornei a praça e estacionei o meu velho pálio vermelho em frente ao horti-fruti. Desci e batendo a porta, adentrei. Como as cenouras estavam feias, extremamente machucadas. Engraçado como não conseguíamos nos desapegar do medonho ideal de beleza renascentista, julgávamos como feio o desarmônico, o caótico, o desequilibrado, como se nós mesmos não fossemos assim. É por isso que eu odeio tanto humanos, hipocrisia maior não há. Tolos! Encaminhei com a cesta para o caixa quando algo me fez parar. Simplesmente eu não conseguia enxergar a face das pessoas, tudo estava embaçado, distorcido, despontando um imenso redemoinho de cores expressionistas. Gritei e deixei os tomates rolarem pelo chão. Outras pessoas se aproximaram tentando me ajudar, mas o que eu via era apenas manchas astigmáticas vibrarem como uma geléia extraterrestre, eu só queria sair daquele lugar, por favor, eu precisava sair dali. Avancei para a porta e meu carro sorriu abrindo seu escapamento e emitindo uma língua enorme.

– O que foi Marilu, parece que o gato comeu sua língua?

Berrei e minhas pernas cambalearam, não conseguia discernir mais nenhuma palavra, tudo voltava a ser aquele ruído estridente, joguei-me de joelhos na calçada, implorei para que se afastassem tapando os ouvidos, mas as pessoas se aproximavam com seus rostos disformes tentando me ajudar, o sol escaldante queimava minha nuca, sentia o meu couro flamejar. O que estava acontecendo comigo? Um frio repentino dominou-me e tudo escureceu.

Acordei e percebi estar em um leito de hospital, meus pais conversavam com um médico ao fundo.

– O que houve? Onde eu estou?

Minha mãe aproximou-se e envolveu minhas mãos com as suas.

– Você teve uma queda de pressão, querida. Jandira chamou a ambulância e nos informou do ocorrido, agora tudo está bem, não se preocupe.

Ela trocou olhares com meu pai e não senti firmeza naqueles dizeres.

– O que foi, mãe?

Ela deu de ombros.

– O que foi o quê? Maria Lúcia?

– O que vocês estão me escondendo?

Meu pai, sempre visual, falou-me com um olhar baixo.

– Não estamos escondendo nada.

Refutei-o.

– Então por que não consegue me encarar nos olhos?

Ele avermelhou-se.

– Dá para alguém me dizer o que está acontecendo? Por favor!

– Fique calma! Você está muito agitada!

– Como ficar calma? Mãe! Ta na cara que vocês sabem o que está acontecendo e não querem me falar!

O médico permitiu-se falar.

– Com licença, família. Tenho ética e não quero me interferir nas decisões de vocês, mas não recomendo que ocultem isso dela, quanto mais cedo saber da doença, mas cedo terá chance de aprender a conviver com isso.

Eu gelei. O que estaria acontecendo? Teria um tumor ou algo do gênero? Fiquei apavorada.

– Alguém, por favor, pode me dizer o que está acontecendo?

Foi quando, Dona Edna resolveu em fim revelar a contragosto.

– Desde que Henrique se foi, você não é mais a mesma minha querida.

– Como assim, mãe?

Meu pai percebendo a aflição da minha mãe continuou.

– Você tem apagões, as pessoas te encontram na rua falando sozinha, outro dia você… (ele sofreu ao dizer aquelas palavras) foi vista na rua nua, estava toda mijada e…

Edna implorou para ele parar. Eu sofri com aquela descrição. O que estaria acontecendo comigo? Onde eu estava naquelas duas semanas? Teria com a morte dele perdido o controle sobre meu ser, a consciência sobre mim mesma? Estaria vegetando? Não consegui conter as lágrimas e voltei o olhar para o médico que anunciou.

– No primeiro surto quando veio para cá, não deve se lembrar por que estava sobre efeitos dos medicamentos, mas fizemos uma ressonância magnética junto com um teste de quimiometria baseado em pesquisas recentes dos centros laboratoriais da Unicamp e Unifesp e concluímos com uma discussão com o seu psiquiatra e analista Doutor Hebert que apresenta um quadro de esquizofrenia.

– Como é? Do nada vocês descobriram que eu era maluca da cabeça, é isso? Nossa! Que poder! Queria ter um pouco disso para conseguir sair desse teatro humilhante que vocês todos me inseriram.

– Muitos pacientes após passarem por uma situação de trauma desencadeiam reações adversas e a sua foi apresentar a esquizofrenia. Só o tempo vai dizer se estamos certos em nosso palpite, mas não podemos perder tempo, o tratamento deve ser iniciado imediatamente para findar esses episódios de surto que inclusive põe em risco a sua própria saúde.

Meus pais se abraçaram num tom melancólico, olhei para o médico e ele me olhou com uma expressão fria, meramente profissional, senti-me mais um ratinho morto dentro de uma gaiola de um laboratório. Perdi-me em pensamentos em um canto da parede e dentre a imensidão branca, típica de hospitais, o máximo que avistei de luz, de diferencial foi um prego enferrujado.

PARTE III

A DESCOBERTA

Acordei e reconheci o ambiente: estava na casa dos meus pais. Mas o que diachos eu estava fazendo ali? Eu tinha o meu apartamento! Seria uma visita cordial?  Corri para a janela mais próxima e percebi que a lua estava a pino, dei-me de encontro com o relógio pendular na parede e ele mostrou-me que já era duas horas da manhã. Estranhei ainda mais. Olhei para o chão de onde havia saído e percebi uma cápsula amassada no carpete, recordei-me daquele episódio no médico e lamentei pela veracidade do diagnóstico, até remédio eu já estava tomando e não me dava conta disso. Foi quando escutei vozes vindas do corredor e precipitei-me, a fala vinha da porta do quarto dos meus pais, aproximei e pus a ouvir:

– Eu estou desesperada! Aquele técnico de manutenção está cada vez me cobrando horrores para não nos entregar, nós precisamos apagá-lo de uma vez por todas, imagina se nossa filha descobrir tudo.

– Ela não vai descobrir, amor! Está sedada demais para perceber alguma coisa. E se algum dia vier a saber, pode ter certeza que irá nos agradecer, se aquele sujeitinho abrisse a boca sobre nossa conta no paraíso fiscal, estávamos fritos. Quem mandou nos ameaçar, ele não tinha nada que mexer no nosso notebook naquele fim de semana, a culpa da morte dele foi dele mesmo. Quando saiu daqui esbaforido, já estava no corredor da morte. Não tínhamos escolhas, ele precisava morrer.

Minhas entranhas se retorceram de asco. Eu não podia acreditar no que estava ouvindo. Escancarei a porta com um empurrão. Os dois olharam assustados para mim, eu, por minha vez, não conseguia controlar minhas lágrimas. Como eles puderam fazer essa monstruosidade comigo e principalmente com Henrique? Tomei posse de um vaso de flores e parti para cima.

– Assassinos!

E quebrei o vaso na cabeça do meu pai que urrou de dor, retorcendo-se meio desacordado no chão sobre os cacos, minha mãe tentou fugir, mas eu a puxei pelos cabelos e a enforquei com toda minha força, ela implorava para soltá-la, mas eu pressionava ainda mais com força, ela se avermelhava roxa pela falta de ar, mas eu precisava ensiná-la, precisava fazer jus a memória dele, sua ordinária maldita, nem sei como pude sair desse seu ventre podre, sanguinária, nojenta,quando me dei conta ela já dara a última tossida, suspirando…morreu.

Exausta, eu tentava recuperar o fôlego me apoiando no colchão, onde estavam conversando e percebi que minhas vestes se transformaram bruscamente ao meu redor, minhas mãos estavam encharcadas de sangue e sobre a direita estava uma faca de carne, gritei, soltando-a no chão. Olhei para o assoalho e não havia nenhum caco de vidro proveniente do vaso de flores, muito menos meu pai estava lá. Nesse instante, a porta do quarto abriu e ele entrou trazendo um frasco de remédio.

– Filha, eu espero que você tenha se…

Ele se aterrorizou quando viu a cena. Soltou o recipiente e cápsulas se espalharam por todo o cômodo. Berrou incrédulo.

– VOCÊ MATOU SUA MÃE!

Eu voltei para o corpo dela e pôs a mão na cabeça desnorteada. Eu havia tido um surto irreversível.

PARTE IV

QUEM É VOCÊ?

 

O ruído da sirene da ambulância se aproximando foi tão forte que mesmo do quinto andar da clínica, aquilo estremeceu minha réstia de paz, fazendo-me sentir uma criminosa que a qualquer momento terminaria seus dias na cadeia. Se não fosse por aquelas barras de ferro fincadas na janela eu já teria pulado há muito tempo, o que eu havia feito não tinha perdão, por mais que ela sobrevivesse talvez eu nunca mais conseguisse olhar nos seus olhos. Eu estava doente e precisava de ajuda.

Foi quando a enfermeira entrou acompanhada de uma mulher de seus quarenta e poucos anos, a julgar pela aparência dar-lhe-ia no máximo trinta e cinco, mas as roupas de lã meio ocres apontavam na direção contrária. Estendeu-me a mão e esperou que eu as apertasse.

– Quem é você? – Indaguei meio insegura.

Um sorriso esboçou no canto de seu rosto, ela entreolhou para a enfermeira e voltou-me por um sobressalto.

– Sou Básima, sua nova psicanalista.

Por um momento senti um ódio tomar minhas vísceras. Não gostei nenhum pouco de mais pessoas saberem daquela minha fragilidade, daquela minha necessidade. Já não bastava, meu pai, minha mãe e toda a cambada das proximidades do horti-fruti de Jandira saber que eu era enferma? Precisavam abrir suas bocas e sair por aí a tagarelar para quem fosse que eu havia saído dos limites e esfaqueado minha própria mãe? Daqui a pouco até na televisão eu iria aparecer! Imaginei todos no jardim da casa dos meus pais, na gigante mesa próximo a churrasqueira, planejando horas e mais horas de como iriam sujar a minha reputação.

– Vejo que não gostou muito da minha presença, estou certa?

Estranhei. Parecia que havia lido meus pensamentos. Pensei em responder negativamente para quebrar a primeira impressão, mas a enfermeira não me permitiu. Pediu-me que eu me deitasse na cama e virasse de bruços, iria tomar uma dose de Flufenam. Consenti e para dizer que não falei de flores, sorri de volta para Básima e esperei que daquele gesto ela ressignificasse seu questionamento. Adormeci antes mesmo do que podia imaginar.

Não demorou muito para sentir uma luz forte queimando meu rosto, abri os olhos meio contrariada e percebi que haviam retirado as cortinas da janela. Que diabos com fogo no corpo havia feito uma coisa dessas? Eu já não havia dito para a enfermeira que gostava do cômodo às escuras? Desci da cama em direção a porta e percebi que o quarto estava inundado. Os meus pés se retorciam de frio com aquela água estranha que vazava por debaixo da porta do banheiro. Teria eu me esquecido de fechar as torneiras? Abri a porta rapidamente e uma onda molhou-me a cintura até se desfazer no tapete, ele, no entanto, não se encharcou como de costume, apenas absorveu a água e logo depois estava seco como se nada tivesse acontecido. O que estaria acontecendo? Voltei-me para o interior e percebi que haviam tapado o ralo da banheira e ela transbordava sem limites com suas torneiras abertas ao máximo. Precipitei-me para fechá-las num gesto rápido, mas por mais que eu girasse as torneiras seja de um lado ou de outro elas não fechavam, pelo contrário, pareciam aumentar ainda mais a vazão de água, desesperei-me e corri para a porta do quarto a fim de pedir ajuda, mas ela estava trancada.

Tudo planejado, tudo pensado. Será que no fim das contas, meus pais realmente haviam sido os responsáveis pela morte de Henrique, será que a próxima vítima seria eu? Queima de arquivo depois de ter ouvido tudo? Eles lá fora, na casa das deles, um acidente com água aqui na clínica, nunca seriam suspeitos, tudo planejado! Peguei distância da porta a fim de arrombá-la. Eu não podia permitir que eles tivessem sucesso! Pulei jogando o corpo contra a porta. A primeira tentativa fracassou, mas a segunda com o impulso que empreguei cedeu. Corri pelos corredores em busca de um médico, de uma enfermeira, de uma camareira, alguém que pudesse me ajudar, alguém que pudesse me salvar… Quando ao final do corredor que descia para o quarto andar, encontrava-se ela: Doutora Básima. Chamei-a, mas ela não se virou. Estava de frente para um espelho em silêncio. Chamei-a novamente, mas de nada adiantou. Avancei em sua direção e estaquei surpresa ao constatar que seu reflexo estava de costa para ela como no quadro de René Magrite: A reprodução proibida. Os móveis refletiam-se como esperado, mas ela não. Puxei-a no desespero e notei que um pano cobria seu rosto. Arranquei-lhe sem dó e assustei-me ao ver que possuía uma cabeça de porco. Ela começou a rir de maneira medonha em meio aos grunhidos.

– Nhoque…nho…Hhahanhoqueeee…nhamnhamnhoqueeee….Sempre procurando resposta para aquilo que não possui, não é mesmo, querida?

Soltei-a amedrontada e ela, deitada ao chão, continuou a gargalhar loucamente se retorcendo nos prenúncios daquele corredor. Voltei-me para o quarto e quando abri a porta do banheiro, as torneiras cessaram. Um barulho de batuques de encanamento invadiu o local enquanto um redemoinho dantesco abrira-se no centro das águas e as sugara frenético para o ralo, olhei para o teto e percebi que os toques paulatinamente diminuíam, prostrei-me diante da banheira e percebi no bocal uma pétala de cerejeira, retirei-a delicadamente observando seu contorno magenta. Naquele silêncio, recordei-me do dia que soube, ainda no estúdio de fotografia da morte repentina de Henrique e avistei do outro lado da rua, o senescer de uma folha dessa mesma árvore. Como agora dois momentos tão peculiares poderiam ter-se unido de forma tão aglutinante? Olhou para sua imagem no espelho e só viu um borrão. Apavorou-se. A ida ao horti-fruti, o segundo apagão. Então o terceiro só pode ser…

– Isso mesmo, filinha.

Marilu voltou-se para a porta do banheiro e sobre uma bandeja segurada pela sua psicanalista, ainda com a cabeça de porco, estava ninguém menos que Dona Edna, risonha e com bigodes ouriçados, encarou-me provocativa.

– Achou que poderia fugir de você mesma? Que feio me usar como cobaia do seu desespero, comparar-me a um saco de beterrabas. Ainda não cresceu, não é mesmo, valentona?

Berrei assustada e…

Cai da cama assustada, minha camiseta estava encharcada de suor. Olhei para a janela e as cortinas estavam lá, tateei o tapete e joguei-lhe um pouco de água que estava na jarra na cabeceira, ele permitiu-se molhar. Mas ainda eu queria mais, eu queria mais provas de que aquilo fora um terrível pesadelo. Escancarei a porta do banheiro e olhei para a banheira, ela estava intacta, voltei para o espelho e meu rosto de sempre, talvez um pouco abatido pelo medicamento surgiu para mim, como de costume. Respirei aliviada. Tudo estava normal. Quando precipitei-me para lavá-lo, percebi que no ralo da pia, encontrava-se uma…não podia ser…Sim! Era uma pétala de cerejeira. Olhei-a com um certo fascínio de pânico na palpa da mão e o teto começou a emitir barulho de encanamento, olhei repentinamente e ouvi risadas infernais.

– QUEM ESTÁ AÍ?

Mas ninguém respondeu. Aquele zumbido doloroso refreou novamente meus tímpanos e desejei tomar um pouco de ar, subi na banheira com as mãos no ouvido e abri a janela oval, adiante dos vitrais, as grades revelaram na rua de trás da clínica a presença de uma velha cerejeira.

PARTE V

ASAS DE OUTONO

Já fazia três semanas que aquele incidente com a minha mãe havia transcorrido quando meu pai veio me fazer uma visita trazendo-a para me ver. Eu, logicamente, estava muito envergonhada, não conseguia encará-la, quando ela subiu a minha face com um gesto maternal.

– Ei, mocinha, estou falando contigo. Não me faça essa desfeita, está bem?

Respondi meio sem jeito.

– Não me cobre isso, estou muito desolada pelo que fiz e deveria estar assim também. Eu poderia ter te matado!

Edna emocionou-se com aquele reconhecimento. Sua filha estava viva, não havia perdido a consciência, virado bicho, apenas se perdera, ficara desnorteada pela morte de seu companheiro, mas ainda era a doce Marilu que um dia gerara por longos oito meses.

– Quem nunca errou nessa vida, que atire a primeira pedra. Às vezes nos perdemos da gente, por que nos deixamos levar pelos acontecimentos, pelos fatos que não dependem da gente. Não te cabe, minha filha, culpar-se e deixar-se de viver por uma fatalidade, só será feliz no dia que aceitar que isso está sujeito a acontecer com qualquer um de nós e que somos insignificantes perante esse vasto universo que nos cerca.

Marilu sentiu

– Parece que já ouvi essa frase em algum lugar, só não me lembro onde, nem quando, mas ela é muito familiar.

Doutora Básima autorizou a saída de Marilu, por alguns minutos, para dar a volta no quarteirão, acompanhada de seus pais e de um enfermeiro. Ultrapassando as raízes tortuosas que abriam à calçada, a jovem sentiu uma leve melancolia ao avistar as pessoas do outro lado, alvoroçadas, feito formigas, indo em todas as direções como um espirro microbiano, entendeu a dor da mãe-natureza, criou um país com pessoas tão diversas, um globo com todo tipo de vida imaginável para isso, para todos terminarem nessa correria, nesse medo das suas próprias criações: o tempo.

Chegaram, em uma esquina, debaixo da cerejeira e Marilu pediu para pararem. Olhou para cima e viu os galhos se aproximarem da janela do banheiro, sentiu um tom quase que febril de abraçá-la, ela era tão bela.

– Conte-me seu magistral segredo, ó, doce árvore!

Os outros não compreenderam nada diante daquela cena. Mas a planta não lhe deixou sem ao menos outra pergunta, uma cereja desprendeu-se do galho e chegou a sua testa. Ela achou graça quando a viu. Olhou-a vidrada por alguns instantes e repentinamente a ofereceu ao pai.

– Prove! Tenho certeza que vai gostar!

O homem não sabia como reagir. Olhou para a mulher que lhe fez um aceno assertivo. Ele sorriu cordialmente e agradeceu a filha. Pôs a boca e mastigou-a cabreiro. Ao final, a fotógrafa o questionou.

– E então? O que achou?

Ele não sabia o que responder. Enquanto procurava palavras para saciar a doença da filha, percebeu que a face dela mudara-se da água para o vinho ao fitar algo do outro lado da rua. Mas o que era? Ela começou a chorar aparentemente sem motivo. Edna olhou para o enfermeiro e se preocupar.

– O que está esperando? Meu rapaz. Faça alguma coisa, minha filha não está bem, não está vendo?

Ele tentou chamar pelo nome de Marilu, mas ela não respondeu. Estava gélida, parecia que vira um fantasma. Sacudia-a tentando fazê-la reagir, mas era em vão, não tinha a sensibilidade necessária. Marilu estava assim por que ele, pela primeira vez depois que partiu, havia feito-lhe uma visita…

PARTE VI

A SESSÃO

Entrei na penumbra daquele consultório, ao fundo, de posse de uma caderneta, Básima me esperava encorajada.

– Quer sentar um pouco, Maria Lúcia?

Acenei que sim e fechei a porta. Acomodei-me na poltrona que ela me indicou e resolvi irromper o silêncio com uma pergunta.

– Não vamos acender as luzes?

Ela olhou-me faminta.

– Para quê? Foi assim que viemos ao mundo, por que negar nossa própria natureza? Acredito que se sinta mais a vontade para se abrir, sem perceber que estou aqui, mas se não se estou enganada, então, fique a vontade, o interruptor é logo ali atrás da estante.

Percebi certo timbre tinhoso naquela declaração, não gostei nenhum pouco. Todas as outras sessões anteriores haviam sido no meu quarto e eram bem melhores, por que ela me tratava como os outros, agora parecia que esperava de mim alguma coisa, como se eu devesse a ela e ao mundo explicações por ser do jeito que sou.

– Eu não sei se estou disposta a…

Básima acendeu seu cigarro, assoprou a fumaça na minha direção.

– Fugir a essa altura do campeonato? Interessante. Diria… Comovente. Mas não dá mais, sabemos coisas uma da outra que ninguém sequer pode imaginar. Não quer que eu diga ao mundo, quer?

Esbugalhei os olhos, não acreditei no que estava ouvindo, onde estava sua ética como profissional?

– Do que você está falando? Eu juro, não a compreendo.

– Compreende sim! Sabe que precisa superar esse óbito, que ele já se foi e nem sabe mais que você existe, mas sua mente infantil fica-lhe dominando e exigindo que ele volte. Não a deixe se dominar, o seu inconsciente é apenas o seu inconsciente, ele não pode viver para você, ele não pode ser você. Encara logo de uma vez que está sozinha, que isso é ruim, mas você pode superar…

Aquilo soterrou o peito com certa amargura. Comecei a ouvir o zumbido que não demorou muito para torna-se uma voz, uma voz masculina que confirmava meu desgosto por aquela eqüina que estava na minha frente. Ela comprou diploma, é uma inútil, vai ficar aí mesmo ou vai atrás de alguém competente? Saia daí sua inútil, não é uma fuga, é paz de espírito. E aquilo se misturava ao barulho de encanamento, olhei para o teto e apertei os ouvidos. Levantei-me brusca e esbarrei no abajur próximo a caminho da porta. Abri-a e dei meu último olhar de reprovação para ela. Ela, porém, parecia rir rascunhando aquele seu fichário nojento. Voltei-me para o enfermeiro que me esperava do lado de fora e pedi.

– Diga ao Doutor Hebert, que para mim já deu. Exijo uma nova profissional!

Ele me olhou meio desconcertado.

PARTE VII

UM POUCO DE ARTE

A aula de desenho logo se iniciou naquela matinal quarta-feira. Uma jovem mais ou menos da minha idade batia a cabeça num canto da parede e berrava que queria ter um filho com o enfermeiro. Uma senhora já de idade parecia balbuciar sozinha a um canto, abraçada a um urso de pelúcia rasgado. No entanto, haviam pessoas também concentradas no salão. Fui ao centro e sobre a saudação do professor, peguei uma cartolina branca e alguns potes de tinta aquarela, sentei-me no chão a um canto e pus a cachola para funcionar.

Lembrei daquele fim de semana, em intercâmbio, quando fomos há dois anos e meio para Londres e na estação St Pancras, tivemos o prazer de voltar a infância e rever a famosa plataforma ¾ do clássico Harry Potter e passar na loja a fantasia para comprar… É… Talvez aquele fosse um bom começo para começar. Desenhar uma plataforma…

– Ai não! Derrubei muita tinta!

Marilu rodopiou o pincel na cartolina e percebeu que sem querer formara um desenho do ralo, sim… O fatídico ralo da banheira em que encontrou a pétala de cerejeira. A norte então seria o teto, os encanamentos e o espelho, sim um espelho…

– Está ficando ótimo, senhorita Orleans!

Ela petrificou com aquele sonar. Só havia uma pessoa no mundo que se referia a ela daquela maneira e ele já não estava mais aqui. Girou para onde tinha ouvido o ruído e o que viu foi internos lambuzando-se de tinta como se fosse açúcar e enfermeiros tentando intervir.

– Não adianta a senhorita querer me encontrar, eu não existo mais aqui!

Levantei-me perturbada e o professor percebeu minha agitação, veio ao meu encontro, mas a voz gritou mais forte.

– Como é que uma garota tão independente como você pode terminar numa clínica psiquiátrica? Francamente, essa não é a mulher que eu conheço! Presa ao superego, ao que a sociedade deseja que você seja.

Ajoelhei diante dos outros. Parecia que minhas orelhas estavam sangrando, o zumbido ficava cada vez mais forte e a voz mais alta, estridente de Henrique.

– Quanta decadência, meu amor. Como pode permitir que fizessem isso com você? Tornou-se uma mera boneca de pano, daquelas que quando envelhece a gente joga fora para não prejudicar a respiração dos pequenos. Veja, está cheia de ácaro! Cheia, cheia!

Estava tão intenso que não consegui sair daquela fossa, alguém me puxava para dentro de uma escuridão que nem eu mesmo podia me defender, mas agora tudo fica nítido, tudo ficava mais claro, não era uma fossa qualquer era a fossa onde ele havia morrido, ele estava lá, ela sentia que ele estava lá, ela só precisava chegar e resgatá-lo, trazê-lo de volta a vida, será que ninguém entendia que ele precisava ser salvo.

– Isso mesmo, meu amor. Vem me salvar, vem me salvar por aqui está muito frio e eu não consigo ver o orvalho da manhã!

– EU VOU TE SALVAR, EU VOU TE TRAZER DE VOLTA! SÓ PRECISO DE UMA CHANCE, SÓ DE UMA CHANCE!

O professor a conteve com ajuda de alguns enfermeiros e pediu que as sedassem, a cena apagou.

PARTE VIII

PELOS BOEIROS

Seus olhos escancararam-se como águia diante de uma presa. Em seu quarto, seu pai terminava de falar com alguém ao telefone, provavelmente sua mãe.

– Que bom que acordou, filha. Escute, estava conversando com sua mãe e chegamos a uma vital conclusão: não há como você continuar aqui, esse tratamento de nada está adiantando, pelo contrário, só está piorando. Vamos levar-te essa noite para casa e amanhã bem cedo partimos para uma clínica de um amigo nosso de faculdade, chama-se Coração Amarelo, fica em um vale, a dois quilômetros de Enderby na Colúmbia Britânica.

– Oeste do Canadá, papai? Vamos viajar?

– Sim, sim. Cada vez mais percebo que não há um tratamento de ponta nesse paizinho de merda, você não vai ter sucesso se continuar aqui e tenho medo que chegue a algum ponto que nenhum lugar do mundo reverta seu quadro, é melhor corrermos contra o tempo, gasto nossas economias agora para ter um futuro tranqüilo.

Doutor Hebert não gostou nenhum pouco daquela idéia, alertou sobre os riscos da liberdade precoce de Marilu, mas não lhe deram ouvidos, Edna, inclusive o chamou de incompetente. Já era dez e vinte da noite quando se ouviu o torcer da chave tetra naquela residência, sentou-se no sofá e esperou até que sua mãe ligasse a televisão, não estava bem, no caminho de casa, um gosto de retrocesso surgira em sua boca, pressentira que iria perder o controle a qualquer momento.

Comeram salmão no jantar, era seu prato predileto, mas ela não repetiu. Conversaram sobre os planos do futuro, tentaram animá-la, mas exaustos pelo dia cansativo, deram-na um comprimido e a cobriram no quarto. O que não perceberam é que ela fingira tomar e cuspiu assim que saíram o zumbido já havia começado e dentre instantes a voz de Henrique começara.

– Minha linda, dê uma prova de amor! Sabe muito bem onde guardam a tesoura, vá buscá-la antes que seja tarde!

Sua lucidez ainda tentou controlá-la, ela mediu forças com a voz.

– Eu não quero fazer isso, eles são meus pais.

– Não acredito, Marilu. Responda-me com toda sinceridade, que tipo de família é essa que interna sua própria filha num cárcere como aquele? Olha só no que você transformou minha linda. Num trapo! Digno de pena. Não, você está enganada. Eles te odeiam e fazem isso por que tem medo do seu brilho conquistar o mundo.

Marilu tapou os ouvidos, desejou que ele fosse embora, mas a chantagem, infelizmente, contou mais alto.

– Tudo bem! Não quer fazer o que eu estou pedindo, vou embora, mas saiba que nunca mais quero olhar para sua cara.

Ela levantou-se decidida, esgueirou-se até o armário da cozinha. Não podia perdê-lo. Ele era… Sim ele era o único que se importava com ela, de verdade. Encontrou a tesoura, no lugar, onde ela estava, na segunda gaveta do armário direito, de frente para pia, eles nem se deram o trabalho de retirá-las de lá, respirou fundo e avançou para o quarto principal.

A porta como de costume, estava aberta. Tolos! Iriam facilitar completamente o serviço de despachá-los de uma só vez. Não poupou esforços e lentamente, pelas pontas dos pés, aproximou-se da cama. Primeiro a dama, matá-la-ia sufocada e assim fez tomando posse de uma almofada e sufocando-a sem pudor, enquanto o outro roncava do lado. Edna percebeu o plano e tentou se safar, mas Marilu conseguiu calá-la e terminou seu plano a sangue frio. Seu pai acordou com os suspiros e chocou-se, mas ela fincou a tesoura em seu bucho, o homem caiu no chão e começou a estrebuchar como um cão sarnento e machucado, Marilu riu ao perceber a semelhança com o seu delírio.  A voz parabenizava.

– Isso mesmo! Trabalho bonito o seu! Livre-se desses encostos de uma vez por todas!

Após Edna, foi a vez dele. Cuspiu sangue pela boca e deu o último olhar para sua filha. Não era um olhar de raiva, de injustiça, era de piedade. Reconheceu o seu erro de tê-la libertado, suspirou e sua cabeça pendeu já sem vida.

A jovem bateu a porta e saiu para a rua, correndo frenética pelas calçadas, passou um bistrô e roubou a bicicleta de uma menina de cinco anos que ficou desolada ao ser roubada. Marilu pedalou descendo as ruas, o cansaço batia as suas pernas, mas ela não entregava os pontos…

PARTE IX

ULTIMATO

Marilu acorda na frente de uma igreja sobre os pingos de chuva que caem sobre sua testa. Ela se desfaz da bicicleta afastando-a para um canto, caminha determinada até um pequeno edifício de alvenaria no fim da rua e implora ao porteiro.

– Preciso falar com Lufalti Joshimim. Só ele pode me dar esperanças de…

Para sua surpresa, o elevador se abriu e dele o pesquisador apareceu.

– Impressão minha ou recitaram meu nome?

Antes que o segurança confirmasse, a enferma pulou em seu colo, seus olhos estavam encharcados de lágrimas. Ele fazia uma cara de reprovação pelas suas vestes.

– Sei que não me conheces e que estou maltratada pela noite passada na rua, mas precisa me ajudar, pedi para uma enfermeira de confiança conseguir seu endereço, te conheci numa reportagem que deu a uma revista, tive oportunidade de lê-la numa clínica onde estava, você dizia em aprofundar a relatividade de Einstein e provar a existência de universos paralelos a partir de um buraco de minhoca.

Lufalti sorriu.

– Vejo que tem garra pelo assunto, eu também sou completamente apaixonado. Não tenho costume de falar com estranhos, mas posso abrir uma exceção. Importa-se em ir comigo até a agência de correios, preciso pegar uma encomenda que fiz pela internet, mas na ocasião da entrega não estava em casa.

Marilu fez que sim.

Enquanto caminhavam pelas poças de águas que enlameavam as calçadas, ele a explicou.

– Essa tal curvatura espaço-tempo que citou que culminaria no buraco de minhoca é uma hipótese bastante discutida no ambiente científico. Sempre que posso ir aos conselhos de astronomia em Luxemburgo, temos um longo debate sobre isso. Mas creio eu que a realidade passe por outras vias, algo que já há uma evidência, de certo…

Eles entraram na agência de correios. Ela o indagou.

– O que seriam essas novas vias?

Ele tossiu e pigarreou.

– Multiversos.

Um ponto de interrogação surgiu no imaginário da jovem. O que seria isso? Ele percebeu enquanto entrega seu comprovante de compra com o número do pedido.

– Vejamos se consigo facilitar. Desde muito tempo, nós, cientistas, jamais conseguimos explicar a existência de um ponto frio no universo, medimos sua temperatura por meio de radiações, criamos mirabolantes teorias para sua aleatoriedade, mas nada, nada, nada. Não seria ausência de matéria uns tomavam a palavra, outros levantavam a mão mais mesmo assim a diferença de temperatura mais fria não justificaria. Foi um rebuliço até chegarmos a uma explicação mais plausível para os fatos, mas que ainda há controvérsias é importante se ressaltar isso.

Pegou um grande caixote e alugou um carrinho de ferro para levá-lo até seu apartamento. Ela, no entanto, ainda estava sem entender.

– E então descobriram se tratar dos multiversos é isso?

Ele a olhou convidativamente.

– Que mal lhe pergunte, mas de onde veio tanto interesse na possibilidade de existir uma realidade-espelho, na qual o contra factual reinaria?

Ela corou-se de leve, olhou para a esquina do outro lado da rua e por de trás de um carro ele apareceu novamente, dessa vez, parecia muito preocupado como se pressentisse que algo muito ruim estaria por vir. Ela o revelou.

– Perdi um grande amor da minha vida há meses e sonho muito em encontrá-lo. Era tudo para mim, era uma parte minha, nossa conexão, embora muitas vezes conflituosa, era intensa, radiante, nossas células jamais entrariam em resposta imunológica (risos), se é que você me entende. Era como se nós fossemos um só. Não digo de alma, por que não acredito que elas possam existir, a mim é uma síntese de ação humana e sua potência.

Lufalti gargalhou.

– Vejo que a mocinha é aristotélica! Sou mais Schopenhauer em preferência, acredito que a felicidade está quando abandonamos os prazeres mundanos. Mas respondendo a sua pergunta, que me perdoes, degredi, a nova proposta é que esse ponto frio tenha pequenos espaços vazios entre suas galáxias e isso se deve a uma fragmentação de um antigo universo ao se chocar com o nosso, porém assim como ele manteve partes intactas do seu genitor, ele desenvolveu-se de forma independente também,  logo cada partícula dessa seria um universo cópia dos outros com diferenças marcantes no espaço-tempo.

Os olhos da fotógrafa tornaram-se vítreos

– Ual! Realmente é fascinante, muito fascinante.

Voltaram ao prédio e ele com ajuda da protagonista entrou no elevador.

– Pode apertar: é o andar 13!

Enquanto o elevador subia, ela confessou.

– Não ando de elevador desde que ele se foi! Isso me marcou, por que foi tão repentina sua morte, abrir e cair no fosso. Só de lembrar, meus olhos se enchem de lágrimas.

Lufalti precipitou-se e com o polegar secou seu rosto.

– Para que sofrer se a vida é tão passageira?

Antes que ela pudesse refletir, a porta do elevador se abriu e por ela, ele arrastou seu carrinho, até o fim do corredor. Marilu o acompanhou.

Ele precipitou-se para a cozinha e disse que ela poderia ficar a vontade, só iria desembrulhar sua encomenda. A sala era pequena, havia alguns quadros modernos de Tarsila e Mafalti na parede. A televisão ainda era tubular. Havia uma mesa circular e pratos sujos dispersos por ela. Mas o que mais a chamou a atenção foram os furos no sofá, eles pareciam ter sidos ocasionados de forma proposital por alguém, eram muitos e todos com o mesmo formato ou similar. Por entre as cortinas, observou um pequeno galho com flores branco-rosadas que parecia estremecer com a brisa de inverno que se estendia pelo temporal.

Aproximou-se e constatou que se tratava de uma cerejeira, totalmente confeccionada a cartolina e outros materiais. Surpreendeu-se pelo gosto similar que o cientista e ela possuíam. Ousou arrancar uma das folhas verdes feitas de papel canson e observou que era foto de uma jovem de cabelos ruivos, de traços bem familiares, parecia que já a tinha visto. Puxou outra folha e percebeu que novamente a foto de uma jovem estava recortada e colada atrás, dessa vez era uma afra descendente… Espere um minuto… Seria Joyce do curso de relações públicas da faculdade? Sim! Parecia muito com ela! Por onde será que ela andava? Quanta coincidência ver aquela imagem ali. Percebeu que aos pés da árvore artificial havia uma fita cassete. Ora, quanto tempo não via uma de perto! O que será que estava gravado nela?

Voltou-se para a sala e percebeu que a porta de entrada encontrava-se escancarada.

– Lufalti, você está aí?

Ela olhou para fora e percebeu que não havia ninguém. Dirigiu-se a cozinha e percebeu que ele não estava lá.

– Que estranho! Deixou-me sozinha aqui dentro!

Dirigiu-se a porta, deu uma última espreitada e a fechou. Ainda estava de posse da fita cassete, olhou ao hacker e encontrou o vídeo cassete escondidinho na terceira prateleira, ajoelhou-se no chão e empurrou a fita, ligando a televisão.

Era uma gravação de uma festa de faculdade em um sítio com piscina, muitos caras sacaneavam uns aos outros afundando a cabeça de um, aqui e ali na água. Uma churrasqueira ao fundo servira de fila para alguns se saciarem, veja era Merry, como ela estava diva naquele vestido… Lembrou-se da notícia de um ano atrás quando soube de sua morte. Era uma mulher tão autêntica terminar daquele jeito no bosque da travessia. Thomas sempre mulherengo, paquerando a Patrícia, bem que eles poderiam ter ficado juntos, foi uma pena aquele acidente de barco há dois anos. A fita continuou e em dado instante ao filmar-se a porteira, o cenário redescobriu-se em sua mente. Era o seu primeiro ano de faculdade. O povo do campus de Humanas estava todo reunido no aniversário de Ruth. Como esse tempo passa rápido! Quem diria… Foi quando Henrique passou em frente à câmera de sunga e sorriu meio maloqueiro. Naquela época eles eram apenas conhecidos de vista, o namoro veio muito tempo depois. Aqueles passos jamais saíram de sua memória. Ó meu querido príncipe que destino cruel te levarem de mim, parecia tão feliz. Quanta injustiça! Quem será que estava gravando essa imagem? Ela estava nessa festa também, não custava lembrar. Voltou-se para a tela e conferiu sua aparição, era magérrima na época, não havia nenhum pneuzinho, veja só! Foi quando o vídeo cessou e aqueles pontilhados cinza-claros apareceram tremendo, formou-se um amontoado e abriu uma fissura no meio, mostrando o que viera em baixo, era um jovem obeso, sacudia veementemente sua Calopsita.

– Morre, sua ave agourenta!

E afundou-a em um panelão com água fervente escaldante. A ave piava desesperada, ele retirava e mostrava o derretimento de suas penas, o alvoroço dela tentando sair de suas mãos e afundava-a de novo num gesto medonho. Marilu não agüentou ver aquilo e desligou a televisão.

– Que horror!

Levantou-se assustada e percebeu que alguém a encarava pelo lado. Era Lufalti, ele a encara tenebrosamente.

– Vejo que viu o vídeo! Metalingüístico isso, não?

Marilu não entendeu.

– De onde você surgiu? Não te vi na cozinha, não escutei o abrir na porta. Como assim, metalingüístico?

Ele esboçou um sorriso estranho.

– Justamente você ter sido a única a ver essa fita! Fecharei com chave de ouro, mas a critério de curiosidade, estava no meu quarto, terminando de desembrulhar a encomenda.

Marilu riu, dirigindo-se para a varanda.

– Você é bem enigmático, gosto de pessoas assim. Coincidência você construir essa cerejeira! Ultimamente tenho vivido momentos tão intensos com ela.

Ele revelou-a.

– Eu sei que está!

Ela virou-se contrariada.

– Ah é? Devo ter te contado e não me recordo.

Ele retirou do longo casaco negro um objeto circular, minúsculo e a pôs na palma da mão.

– Está vendo isso? É um micro-chip!

Ela surpreendeu-se.

– Você o criou? Que interessante!

Ele confirmou arrogante.

– Criei sim, muito tempo antes do Vale do Silício sequer descobrir. E o interessante é que nenhuma das minhas vítimas percebeu que estava sendo manipulada.

Marilu percebeu certo tom manhoso naquela voz, mas não sabia medir o que significava aquelas palavras, estaria ele querendo assustá-la?

– E pensar que tudo começou no aniversário da Ruth, onde, após eu ter me deliciado com as filmagens, tive ainda o prazer de inserir esses micro-chips em todos vocês. Isso mesmo Roberval, revele-se ao mundo.

Ela gelou, ele seria Roberval… Roberval Pimenta? O jovem gótico nerd que sempre era zoado pelo seu andar arrastado, pela suas costas corcundas?

– Sim, querida. Sou eu mesmo!

Ela se assustou.

– Não se acanhe, eu posso ler seus pensamentos. Muitos deles, inclusive, fui eu que provoquei. Lembra-se da cabeça de porco da senhorita Básima no corredor do hospital? Aquilo foi um espetáculo, fale a verdade e tudo monitorado por um programa de computador. Sou digno de Oscar, fale a verdade, mas discordo do que relatou há alguns meses… Não sinto tesão nenhuma em ser coroado pelo Sérgio Buarque de Holanda, sou fã muito mais do pai da Psicanálise.

Ela pôs a mão no ouvido.

– O que você está dizendo? Por que está fazendo essa brincadeira comigo!

Roberval ou Lufalti, tanto faz, sorri.

– Puxa a vida, agora que estou te dando certa liberdade para se expressar, encara como uma brincadeira? Eu fiz você matar seus pais ou se esqueceu da tesourada que deu nele? Tive que mandá-los para bem longe, iriam atrapalhar meus planos para você. Mas isso foi chato, extremamente maçante, projetar as imagens virtuais de Henrique no seu cérebro foram mais interessantes. Ver seu sofrimento, sua preocupação em se tornar uma criminosa – E gargalhou horrores diante do pânico que Marilu estava.

Algo se passou pela sua cabeça e a jovem, atordoada, correu para a árvore, arrancando uma, após outra folha, até encontrar a foto de Henrique, abaixou a cabeça e jogou-se no chão. Não podia acreditar. Seu amor havia sido assassinado, assim com os outros. Roberval sussurrou em seu ouvido diante do seu sofrimento.

– Eu não dizia que iria dominar o mundo? Pois então, isso foi só o começo para uma grande apresentação que creio eu, dentro de poucos anos, consiga se espalhar em escala global. Não foi difícil na noite anterior convidar aquele jumento do porteiro do prédio de vocês para um café, veja bem, um mísero café, na padaria do Jão Pedro com a falsa promessa de um novo emprego dado à admiração que eu sentia pela sua gestão. Foi só colocar um micro-chip, fazê-lo desligar as câmeras e empurrar seu namoradinho naquele fosso imundo.

Marilu não agüentou o cinismo daquela criatura e deu-lhe uma cotovelada na boca, disposta a quebrar todos os seus dentes. Mas ele era mais forte, conseguiu a conter e a jogou contra a parede, fazendo-a bater a cabeça.

– Você é que pediu!

E com um piscar de olhos a faz se contorcer em dores no chão. Ele retirou-lhe as vestes e montou em cima, abusou sexualmente. Ela gritava tentando se controlar, mas não conseguia, o micro-chip superava seu discernimento, aos poucos foi perdendo a lucidez.

Ela a matou a sangue frio, por meio do empalamento de uma estaca circular de madeira que havia na cozinha. Depois serrou-lhe os membros com a serra elétrica e a levou para a caixa que chegara pelo correio, um considerável baú de tráfico de órgãos. Enquanto a guardava, lembrou-se de como aquela entrevista além de induzi-la a sua procura, o que tornou tudo mais fácil, deixou um status para novas vítimas que estavam por vir. Fechou o caixote com gosto e abriu a deep web pondo a venda aquele conteúdo.

Não demorou muito para o interessado vir buscar pessoalmente. Acompanhou-o até o hall de entrada. Quando ele saiu, subiu e percebeu que a porta do apartamento estava entreaberta. Não gostou nada, vasculhou seu apartamento, olhou em cada canto, com uma arma nas mãos e nada identificou, deveria ter esquecido por engano. Sozinho em seu apartamento, Roberval voltou ao seu quarto, o seu verdadeiro laboratório cibernético e encontrou uma câmera, sem o protetor das lentes, ao fundo, apontando para ele.

– Nunca tive uma câmera! Quem foi que deixou isso aí?

Olhou-a bem, cada detalhe.

– Ah, quer saber! Foda-se! Tenho muito que fazer.

E sentou em sua cadeira giratória, ligando o computador. Por um microscópio visor ao rodapé da máquina fotográfica, 3…2…1…BUM!

 

FIM

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