O primeiro caso de aids foi notificado em junho de 1981 nos EUA. Dois anos foram investidos tentando encontrar o agente casual. Foi cientificamente provado que não havia transmissão no convívio social, nem abraçando ou beijando, nem usando utensílios ou compartilhando banheiro. (…) O ano de 1996 ficou marcado como o “ano do coquetel”, uma associação de três ou mais medicamentos que reduziram consideravelmente a mortalidade a partir da obtenção da supressão máxima da carga viral.
(“Sentença de vida”, Márcia Rachid)
“Alguma coisa aconteceu comigo. Alguma coisa tão estranha que ainda não aprendi o jeito de falar claramente sobre ela. Quando souber finalmente o que foi, essa coisa estranha, eu saberei também esse jeito. Então serei claro, prometo. Para você, para mim mesmo. Como sempre tentei ser. Mas por enquanto, e, por favor, tente entender o que tento dizer. É com terrível esforço que te escrevo. E isso agora não é mais apenas uma maneira literária de dizer que escrever significa mexer com funduras — como Clarice, feito Pessoa. Em Carson McCullers doía fisicamente, no corpo feito de carne e veias e músculos. Pois é no corpo que escrever me dói agora. Nestas duas mãos que você não vê sobre o teclado, com suas veias inchadas, feridas, cheias de fios e tubos plásticos ligados a agulhas enfiadas nas veias para dentro das quais escorrem líquidos que, dizem, vão me salvar. Dói muito, mas eu não vou parar”.
Relendo agora esse trecho de Primeira carta para além dos muros, de Caio Fernando Abreu, me vem à memória àquela tarde de 1989. Foi a última vez que vi Tiago e até hoje não consigo deixar de me perguntar como ele deve ter sofrido, como deve ter encarado o fantasma da doença logo depois do diagnóstico. De onde tirou forças para seguir com o tratamento e com a medicação agressiva disponível à época. Como conseguiu sobreviver em meio à realidade da segregação, do preconceito e do desprezo… Como suportou toda a dor?
Felizmente, a luta contra o preconceito aos portadores do HIV segue firme e forte, pois é necessário e é urgente, dia após dias, mesmo depois de mais de trinta anos. Ainda espalham aos quatro ventos que o vírus ataca somente os homossexuais, os promíscuos, os que pecam, os que traem e os que não se cuidam, mas se esquecem do significado que a sigla HIV traz: vírus da imunodeficiência humana.
HUMANA!
HUMANA!
HUMANA…
Sim. Humana é a condição que todos partilham, partilhamos, e, com isso, a obviedade dos fatos: por ser humano, qualquer um de nós está suscetível a ser infectado, não só por esse vírus, mas por qualquer outro tipo de infecção, não é mesmo? E também por ser humano, entendo, não precisamos ser contaminados pelo HIV para deixar cair, ainda que gradativamente, até desaparecer por completo, a nossa ignorância e o nosso incisivo preconceito.
Um soropositivo possui uma expectativa de vida tão positiva e produtiva quando um soronegativo mediante do uso correto e contínuo da medicação, tornando-se, inclusive, indetectável em face de sua carga viral estar tão, tão baixa, a ponto do vírus por via sexual se tornar intransmissível, permitindo até mesmo que tenha filhos biologicamente sem que as crianças nasçam infectadas.
“Ah! Mas o portador do vírus HIV se quiser ter uma vida “normal” precisa fazer uso da medicação para sempre, né?” Sim. Tal como outros portadores de outras doenças crônicas, como a diabete, a hipertensão, a asma, a osteoporose…
Segundo Albert Einstein, “é mais fácil desintegrar um átomo que um preconceito”. E essa citação me desloca, de volta, para a triste e inevitável constatação: mesmo com todos os avanços biomédicos de um lado, a desinformação, os estigmas e o preconceito parecem, ainda, serem os mesmos dos idos anos 80 e 90.
1989
Desço do táxi num salto enquanto termino de guardar a carteira no bolso de trás da calça, avançando de pronto, e a passos largos, na direção da porta de correr da entrada de emergência de um hospital nos arredores de Paris, até alcançar, na mesma velocidade, o balcão de atendimento, onde mal terminando de apoiar as duas mãos com extrema força sobre a superfície, lanço minha pergunta para uma das atendentes que está sentada do outro lado. Esforço-me ao máximo com o meu francês sem muita prática para obter a informação de como chegar ao quarto do paciente Tiago Neves da Fonseca, à medida que busco recuperar um pouco do fôlego.
— Désolé. Mais êtes-vous lié au patient?
A pergunta de praxe, se eu sou parente do paciente, invade de maneira grandiloquente os meus ouvidos, como era de se esperar. Permanecendo sentada, a atendente, que ostenta um semblante carregado de determinação, não deixa de me sondar por alguns segundos até se dirigir a uma espécie de ata sobreposta ao mesão que compartilha com mais duas funcionárias; todas com seus fios de cabelos devidamente arrumados e presos com severidade e seus uniformes brancos e fisionomias circunspectas.
Não estou disposto a passar por tudo isso: um interrogatório exaustivo, olhares supostamente complacentes, mas que escondem um sentimento de repulsa. Já conheço o roteiro de cor e salteado, e pior, sei que serei impedido de chegar ao quarto de Tiago.
— Sinto muito — dispara, por fim, a funcionária —, mas eu não posso deixá-lo entrar se não tiver nenhuma ligação familiar com o paciente.
Fecho os olhos. Estou possesso e impotente, mas conto até dez e daí retiro as mãos de sobre o balcão e só depois de dar as costas para a tal mulher decido descerrar a vista, caminhando em seguida e em linha reta até a parede do outro lado do largo corredor, onde encosto o ombro esquerdo enquanto tento manter a respiração sob controle e também o ímpeto de sair correndo hospital afora até encontrar o quarto de Tiago.
— Fernando?!
Mal tenho tempo de deixar de lado minhas reflexões e minha desordem mental para me virar e então deparar com Henrique; seu semblante, um amálgama de incerteza, tristeza, confusão, estresse, ansiedade e desconforto.
— Como ele está?
Não consigo pensar em mais nada além desta pergunta. Não consigo ordenar meu cérebro para ter qualquer outro tipo de reação. Sinto-me travado, teso. Na verdade, agora, aqui, diante de Henrique, o homem que amei e que talvez ainda ame, o homem com quem compartilhei catorze anos de uma vida e cuja relação nós dois deixamos desvanecer de maneira covarde e silenciosa, não me reste alternativa a não ser conter a vontade quase insuportável de sair correndo para bem, bem longe.
Respiro fundo.
Não sei se vou conseguir manter o mínimo de dignidade diante de Laura, e o mais grave, não sei se vou conseguir reunir forças para atender ao pedido de Tiago.
— Está morrendo — Henrique comunica, sem pressa e sem deixar de me fitar — O CD4 dele está muito baixo. Está com pneumonia e falência múltipla dos órgãos.
Neste instante, Henrique não consegue mais manter o olhar firme sobre mim. Antes que baixe a cabeça e passe a fixar o chão, percebo lágrimas se formando no canto de seus olhos.
— Meu filho está morrendo e não há mais nada a ser feito. Creio que seja melhor sermos rápido, pois não tenho certeza se ele aguentará… Se ele aguentará tempo suficiente…
Coloco uma das mãos sobre o ombro esquerdo de Henrique enquanto sou invadido por uma dor, uma angústia enorme, e então decido, num esforço hercúleo, me esforçar para conter todas as minhas conturbadas emoções. É o mínimo que posso fazer.
Laura e Henrique estavam afastados, cada qual em um canto daquele quarto de hospital, que me pareceu, tão logo eu atravessei a ombreira da porta, banhando numa arrepiante semipenumbra apesar de relativamente bem iluminado. Decerto, claridade o suficiente para não incomodar Tiago, o filho deles, que, deitado e respirando com muita dificuldade, estava tão esquelético que cheguei mesmo a ter medo de olhá-lo, por mais reprovável que aquilo pudesse parecer. Contudo, lá estava eu, e só Deus pra saber o motivo de Tiago em querer me rever depois de setes longos anos desde o nosso último encontro, quando foi visitar a mim e ao pai antes de eu e Henrique acabarmos em definitivo com a nossa relação.
Após cumprimentar Laura, que me respondeu com um silencioso, discreto e rápido aceno de cabeça, eu caminhei um tanto reticente até à cama, me aproximando, por fim, conforme estendia a destra para logo tomar as mãos de Tiago, que, sem demora, abriu os olhos, sorrindo, ao mesmo tempo que começava a piscar quase que ininterruptamente, se esforçando demasiado, um esforço sobre-humano até, para realizar cada um daqueles gestos.
— Você veio…
— Sim — respondi com a voz qualquer coisa embargada. — Como poderia não ter vindo diante do seu chamado?
Tiago sorriu mais uma vez e então o abracei e ele me correspondeu com tanta força que eu ainda tenho aquele abraço em mim, até hoje, depois de todos esses anos.
— Quase não deu pra esperar — ele balbuciou, cansado.
Mantivemo-nos enlaçados ainda por mais alguns instantes até que Tiago pediu para que o acomodasse novamente sobre o leito. Após encará-lo com uma ternura indefinível, tratei, com delicadeza, de desviar meu semblante, meus olhos, minha alma, do seu raio de visão a fim de poder recuperar o domínio das minhas emoções, me deparando, ato contínuo, com Laura, cabisbaixa, mergulhada em sua dor, uma dor que ser humano algum na face da Terra jamais poderá descrever com exatidão, por mais que tente. Nenhuma mãe deveria passar por isso: ter que enterrar o próprio filho, ter de lidar com a maior das perdas…
Relativamente recuperado, voltei-me para Tiago e percebi, enquanto o fitava, que em algum lugar sob a sua pele coberta de erupções e seus olhos cheios de sangue, ainda existia aquele menino que conheci no final de sua infância e início da adolescência e que se transformara num rapaz de traços angelicais, ombros largos, cabelos aloirados e um tanto desgrenhados cobrindo suas orelhas. E por quem, num instante de plena confusão e imaturidade emocional, ousei acreditar que estava apaixonado… secretamente apaixonado.
Ainda permaneci por um bom tempo ao lado de Tiago, já que ele não quis me deixar ir embora, até, de repente, beirando a insolência, pedir para que eu saísse. Despedi-me, e também de Laura e Fernando, e tão logo alcancei a porta principal do hospital, desabei, chorando copiosamente, pois tive a certeza de que não o veria mais…
Tiago faleceu não muito depois da minha partida.
Fernando… Nando, como eu aprendi a te chamar… Não sei por que estou me dando ao trabalho de escrever, pois tenho certeza de que esta carta não chegará até você. Não terei coragem de enviá-la. A reverência que tenho por meu pai é imensa e, diante disso, eu preciso, eu devo respeitar a relação de vocês, mesmo que ela tenha chegado ao fim. É o que acredito que seja o melhor a fazer neste momento. Quem sabe, no futuro, após toda esta tempestade ter passado, retomemos os laços que, por um período de nossas vidas, foram comuns…
É um desabafo. É isso. Tão somente um desabafo as palavras que estou arremessando sobre esta folha de papel, palavras que gostaria de lhe dizer pessoalmente. Não, não. Na verdade, palavras que deveria ter dito quando estive aí, no Brasil, há menos de um mês, na casa de vocês, mas que as engoli, uma a uma, preferindo, ao invés disso, discorrer a respeito das banalidades da minha vida.
Sinto muito ter sido tão monocromático; ter me portado de maneira tão amistosa quando, na prática, gostaria de ter sido mais autêntico, determinado. Decerto minha postura se deu e muito pelo fato da distância de uma década sem nos vermos e pelos ecos do inconformismo de minha mãe, mesmo depois de todos esses anos desde que meu pai decidira ficar com você… E também pelo sentimento abrupto que surgiu quando te vi no aeroporto, deixando-me completamente atordoado.
Sim. Sim. Esta carta, esta confissão, não chegará até você. Sinto-me horrível, um covarde, um traidor tanto quanto me senti quando fui despertado por sua beleza, sua graciosidade, sua firmeza, por seu poder talvez involuntário de sedução,… Entendi perfeitamente naquele instante os motivos que levaram meu pai a ter se apaixonado por você, e entendo perfeitamente os motivos que ainda o levam a te amar!
Desculpas. Peço desculpas. Mil pedidos de desculpas eu te rogo por ter sido e estar sendo tão fraco, mas tu compreendes, não é mesmo? Apesar de tudo, apesar de todos os medos, apesar dos diferentes efeitos que aquele turbilhão de sentimentos e sensações lançou em meu organismo, e apesar da contínua, só não sei se descabida, sensação de deslealdade para com meu pai, eu daria qualquer coisa para voltar atrás e reviver aquelas três semanas que passei com vocês… “com você”!
Talvez o tempo ajude a arrefecer o que trago em meu peito. Talvez essa experiência apropriadamente silenciosa me ajude a entender quem sou realmente e o que quero para minha vida… Talvez ajude a enfrentar minha mãe, a enfrentar o receio de decepcioná-la ao me revelar quem sou de verdade, não permitindo que projete sobre o meu pai mais um sem número de culpas das quais ele não é responsável.
A distância, agora ainda mais indubitável com a separação de você e de meu pai, vai conceder-me o benefício da dúvida em relação ao que sinto por ti, Fernando, e o quão (infelizmente?) poderia ter durado algo que certamente não viu e não verá a luz do dia, mas que dentro de mim, por mais vergonhoso e deplorável que possa parecer, torço para que nunca acabe.
Citando Oscar Wilde, se você não consegue entender o meu silêncio, de nada adiantará as palavras, pois é no silêncio das minhas palavras que estão todos os meus maiores sentimentos.
Tiago, agosto de 1982.