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O Vazio que Habita em mim – Capitulo 8: Confronto


Nós tínhamos chegado uma hora mais cedo ao colégio a pedido da professora Julia para uma conversa a respeito do meu aprendizado.


Aos sete anos, a maioria das crianças já deve saber o básico para ser considerada alfabetizada ou em fase de alfabetização, os conceitos simples como: letras, silabas, palavras de duas ou três silabas além de uma leitura moderada. Os números e pelo menos ter consciência de conceitos matemáticos – isso para as crianças que começam pela faixa dos cinco anos no que eles chamam educação infantil. Para um aluno do terceiro ano do ensino fundamental, – que é o meu caso – se esperado que ele domine a leitura, compreenda o que lê e produza textos simples sabendo expor as ideias de um modo geral.


Foi exatamente isso que nos escutamos da minha professora. O que na realidade não era o meu caso. Eu com quase 11 anos ainda estava no terceiro ano, o que representa um atraso considerável no meu aprendizado. Eu estava numa turma regular, o que não condizia com a minha faixa etária.


Era para eu estar numa sala especial, com pessoas da minha idade, mas isso não era possível, pelo menos não na cabeça da minha mãe. Eu caí de paraquedas nesse mundo das letras, mamãe nunca teve tempo para me ensinar nada além do meu nome e da minha idade.


As letras e números pareciam dançar na minha frente, e mesmo que me dissessem um milhão de vezes que o A era um A, aquilo não entrava na minha cabeça. Vamos e convenhamos, eu já não tinha o menor saco para aquilo tudo. 


Eu tinha outras coisas com o que me preocupar.


Fomos recepcionados pelo vigia do colégio, um velhinho simpático bigodudo e sorridente ao qual todos nos gostávamos de chamar carinhosamente de vovô Tom. Aquele homem era um doce de pessoa. Estava sempre rodeado de crianças, sorrindo, contando piadas e brincando com todo mundo. Mesmo os alunos problemáticos (assim como eu), nutriam um carinho especial por ele. Ele nos encaminhou a sala da direção, onde duas pessoas nos esperavam, a professora Julia, que mamãe já conhecia, e a senhora Samanta a monitora chefe, que nos apelidamos carinhosamente de mulher dragão.


Samanta era supervisora escolar. Estava sempre no nosso pé vigiando e pondo de castigo aqueles alunos malcomportados — eu me incluía nessa categoria. Ela era uma mulher amarga, fazia questão de usar roupas de gente velha, – Um vestido longo as vezes cinza, ou azul, o que nos fazia crer que ela só tinha aqueles dois vestidos além do mesmo penteado um coque liso amarrado no topo da cabeça.


Depois de passarmos pela professora Julia, foi a vez de enfrentarmos a mulher dragão

 

— Boa tarde! Entre por favor. – Saudou Samanta em tom cordial estendendo a mão para que mamãe apertasse.

— Boa tarde dona Samanta. – Mamãe respondeu estendendo-lhe a mão em um cumprimento.

— Você não quer brincar Mick? — Perguntou-me a professora Julia. — O parque ainda está vazio, vai poder brincar à vontade.


Como eu já sabia o conteúdo daquela conversa, e ela não seria nada agradável para mim decidi aceitar a oferta e esperar meu castigo em casa. Era sempre assim. “precisamos conversar com a sua mãe Mick” e quando chegava em casa eu levava uma bronca por mal comportamento e ficava de castigo. De casa para a escola/ da escola para casa, sem TV e sem vídeo game, o que mudava era apenas a duração do castigo, que variava entre três dias ou um mês, dependendo da gravidade do que a mulher dragão dissesse.


Álvaro era quem se beneficiava com os meus castigos prolongados.


Naquele dia eu não fiquei para a aula. Mamãe veio até mim com os olhos inchados, ela havia chorado e, me disse apenas:

 

— Tudo vai ficar bem! — Ela repetia vez ou outra, mais para ela do que para mim.


Chegamos em casa um tanto rápido demais, mamãe costumava parar e conversar com os conhecidos do bairro. Devido ela ser uma das melhores diaristas da cidade, conhecia muita gente. Naquele dia em questão ela não disse uma palavra.


Ao chegarmos em casa, Amanda nos aguardava com meu irmãozinho nos braços.

 

— O Álvaro já chegou? — Ela perguntou assustada.

— Ainda não dona Renata. Aconteceu alguma coisa?

— Não, não. Você pode ir, eu cuido dos meninos o resto da tarde.

— Ta certo, se precisar é só gritar. — Ela deu um beijo no Bernardo e me fez um cafuné antes de sair.


Assim que Amanda bateu a porta mamãe colocou Bernardo no berço, veio até mim e me deu um tapa na cara, do qual eu nunca vou esquecer na vida.

 

— Você tá maluco? — Ela me perguntou aos berros. — O Álvaro tem sido um pai para você, ele nunca te levantou a mão, ele cuida de nós, nunca nos deixou faltar nada. Por que você disse essas coisas para a sua professora menino?

— Mãe… — Eu tentei dizer com a mão na bochecha e os olhos cheios d’água.

— CALA A BOCA MENINO. Você sabe do sufoco que eu passei para cuidar de você.

— É tudo verdade mãe.

— Para de inventar mentiras Mick. O Álvaro não te fez nada, não é? Fala para mim que ele não te fez nada!

— Mas… ele fez mãe, ele sempre espera você e a Amanda não estarem em casa para fazer essas coisas comigo.

— Teu pai é um homem bom. Não merece isso que você ta fazendo com ele.

— ELE NÃO É MEU PAI! — Disse tomado pela raiva – Olha o que ele fez comigo. – Foi nesse momento em que eu mostrei a ela o resultado dos anos em que ele me teve como filho.


Um segundo tapa me atingiu o rosto, e com ele mamãe caiu de joelhos diante de mim chorando. Corri para o quarto que dividia com Bernardo e bati a porta com toda a força que eu pude e chorei em silencio, abraçado a única coisa que aquele desgraçado me deu.


Em seu berço Bernardo também chorou.

 

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