– Bom dia! – um homem vestido de branco com um estetoscópio pendurado no pescoço disse. Seu sotaque era forte. – Você falar inglês?

   Apesar de não ter ideia do que estava acontecendo para estar naquele lugar que muito se assemelhava a uma UTI de hospital público do Brasil, eu ainda me lembrava que estava em São Petersburgo, Rússia. Bom, ao menos era onde eu imaginava estar.

   – Por que estou aqui? – perguntei em inglês com algum esforço. Minha boca estava seca.

   O alívio do médico ao ver que eu podia falar um idioma que ele, aparentemente, dominava foi notório.

   – Você sofreu um acidente grave na E20 – ele disse, puxando uma cadeira velha para se sentar ao lado de minha cama. – A Mercedes que dirigia bateu de frente com um caminhão. Acredito que tenha sido algum problema mecânico, levando em consideração que o acidente ocorreu em um trecho de descida, numa curva muito, muito fechada. Teve sorte de só ficar inconsciente por umas semanas. Confesso que, quando chegou, achamos que logo morreria. 

   O choque causado pela informação que o médico acabara de me passar me fez sentir uma insuportável dor de cabeça. Comecei a me remexer no travesseiro; tentativa vã de fazer a dor parar. O médico foi rápido ao me aplicar uma injeção e dizer que eu ainda não estava em condições de me esforçar para nada. Apesar das muitas perguntas que pairavam como nuvens carregadas sobre minha cabeça, eu não estava em condições de competir com a dor. Fechei os olhos.

   Acordei com uma enfermeira entrando no quarto. O médico já havia ido. Depois de me cumprimentar, a mulher pôs uma bandeja com algum tipo de sopa ao meu lado. Ao invés de uma colher, havia um canudo plástico na bandeja. O cheiro não era dos melhores. Nunca fui fã da culinária russa. 

   – O senhor não está em condições de fazer esforço, mas poder comer comida mais forte agora – a enfermeira disse. 

   Seu inglês não era nada fácil de entender. Seu sotaque era ainda mais forte que o do médico.

   – Assim que terminar, – ela continuou – eu levar você para diferente quarto. Ah, seu pai ansioso para te ver. Ele está chegar.

    Enquanto ela me posicionava para sugar um pouco daquela gororoba, quis corriji-la: meus pais já haviam morrido há mais de quinze anos. Ela, com toda certeza, se referia ao Andrada, antigo amigo de minha pequena família e que fora nomeado pelos meus pais, em testamento, para ser meu tutor. Eu, de fato, o via como um pai. Mesmo depois de maior, fiz questão de mantê-lo por perto, me ajudando a tomar conta da minha herança. Se não fosse pelo Andrada, eu nunca teria superado o luto pela morte dos meus pais. Ele, desde que me entendo por gente, tem sido muito fiel e amigo.

   O que me pareceu um intervalo de mais ou menos uma hora passou. Três enfermeiras, incluindo a que havia me trago a sopa, entraram com uma maca. De acordo com elas, o quarto para o qual eu deveria ser transferido já estava pronto. 

   Enquanto me levavam para o quarto, perguntei, em inglês, algumas coisas sobre o hospital que, pelo pouco que eu já havia notado, se tratava de uma instituição pública e um tanto carente. Confirmadas algumas das minhas suspeitas, perguntei se não havia nenhum pedido de transferência para um hospital particular em São Petersburgo; de acordo com o que me disseram, eu estava a uma distância de aproximadamente vinte quilômetros de lá. Disseram que não.

   O quarto para o qual as enfermeiras me levaram era, apesar de pequeno, coletivo e continha umas três camas. Duas estavam vazias. A terceira estava ocupada por um senhor que dormia. 

   Depois de me instalarem no quarto, a mesma enfermeira que havia me levado a sopa e ajudado a responder as perguntas que fiz sobre o hospital disse:

   – Seu pai já chegar. Ele estar lá em baixo. Pouco minutos e ele estar aqui contigo – ela disse, esboçando um sorriso enquanto me aplicava algo na veia. 

   Acho que ela percebera que a mudança de quarto e o curto diálogo que tivemos me valeu como um esforço acima do limite. Foi aí que notei que já estava rolando involuntariamente a cabeça no travesseiro. Pontadas. A imagem de agulhas enormes perfurando meu cérebro quase me fizeram começar a gritar, mas o efeito da droga recém-injetada me fez parar. Comecei a sentir dificuldade para manter os olhos apertos. Vi as enfermeiras sairem. 

   Andrada é como um pai. Ainda não terá ido quando eu acordar, penso, me rendendo ao efeito do composto que corria em minhas veias.

   Ouvi o ranger da porta ao longe. Com esforço, abri meus olhos, mas tão pouco que mal era capaz de enxergar com nitidez. Ouvi passos. 

   – Pobre guri rico… 

   Conhecia aquela voz. Conhecia aquelas palavras que desde sempre marcavam o início de um diálogo cheio de carinho e conforto. Era Andrada. Tento esboçar um sorriso grogue, mas sou surpreendido pela força com a qual ele pressiona o travesseiro do leito vazio ao lado contra o meu rosto. 

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