Débora se levantou não acreditando no que estava vendo. Seria uma miragem?
– O que você está fazendo por aqui? Quem foi que te soltou? Foi você Zeca?
Ela desceu a plataforma. O caminhoneiro não conseguiu encará-la.
– Me desculpe, Débora. Mas achei que fosse o mais certo a se fazer depois do que minha filha fez. Nessa cidade, tenho influências, não foi difícil negociar com o delegado!
Débora riu.
– Mas era só o que me faltava! Um despejo justifica assassinatos? Saiba que isso foi uma loucura, vai estar colocando todo mundo em risco com essa mulher solta por aí !
Carla pediu.
– Filha, não fale comigo desse jeito, eu sou sua mãe!
Débora se irritou.
– Quem é você para falar que é mãe? Mãe cuida, mãe ama, mãe protege, não deixa seus filhos órfãos de pai e mata sua família. Você é doente! Eu tenho medo de você, sabia?
No meio da confusão, Lucas acabou acordando e se chocando com o que vira. Ele tentou descer, mas Paçoca o impediu. Carla se emocionou.
– Meu filho querido! Mamãe morreu de saudades, nem sabe como.
Ele a olhou com nojo sobre os braços do rapaz.
– Seu lugar é mofando em uma penitenciária, bruxa!
Débora ousou dizer.
– Chego a pensar que essa saudade toda pode estar ligada ao seu instinto safado e pedófilo, que no fundo você queria transar com o seu próprio filho!
Carla a estapeou.
– Jamais repita uma barbaridade dessas! Eu nunca faria alguma coisa dessas com seu irmão!
Débora se recompôs, olhou-a em silêncio.
– Como pode nos procurar depois de tudo que fez?
Carla chorou.
– Eu só queria ajudar! Não quero vê-los largado na rua!
Débora levantou a face.
– E quem disse que vamos ficar aqui por muito tempo? Só estamos esperando juntar dinheiro, vamos voltar para o Espírito Santo, morar com Juliano, por que ele sim é um homem bom.
Carla acabou revelando.
– Ele morreu!
Débora se surpreendeu.
– Como é?
O olhar da menina encontrou de Paçoca e depois os do irmão.
Carla narrou.
– Eu matei a Talita por que ela havia me chantageado contar tudo a polícia e a vocês, fiquei apavorada com a possibilidade de perdê-los. Evitei que Juliano soubesse, mas ele praticamente me obrigou, brigamos naquela noite que partimos e eu liguei o gás da casa com ele desmaiado.
Uma onda de ódio tomou-lhe a essência, de um sobressalto tornou-se um bicho por dentro, agarrou a mulher pelos cabelos e a jogou ao chão, batendo sua cabeça no asfalto sem controle.
– Do que você é feita? Sua ordinária! Matou o único homem que te amava, que nos amava, que poderia nos dar uma família. Cadela velha! Eu te odeio! Seu monstro pedófilo! Sanguinária! Eu vou acabar com sua raça! Arrancar essa sua cara de pau!
Mas Zeca a puxou de volta. A testa de Carla sangrava, assustou-se com o descontrole da filha que ainda tenta se desvencilhar dos seus braços para agredi-la.
– Vai embora daqui! Nunca mais nos procure!
Carla atirou.
– E vocês vão viver de quê? Eu sou a única que posso te sustentar, garota!
Paçoca invadiu a conversa nessa hora.
– Eu posso, eu posso te sustentar Débora, a você e ao seu irmão e te garanto que essa mulher nunca mais vai te relar a mão! Tocar um dedo em você! Eu vou te proteger!
Carla tripudiou e a tocou, ela o devolveu com um murro.
– Você não pode me agredir, eu sou sua mãe!
A menina berrou.
– Não é mais, agora eu e o Lucas somos órfãos de mãe também!
Ela volta a subir na plataforma.
– Tá esperando o que para ir embora? Desaparece!
Zeca tentou fazê-los entender, mas Bruno sacou uma arma.
– Não ouviu a garota, caiam fora!
Carla gritou.
– Você não pode fazer isso, eles são meus filhos!
Lucas pegou uma pedra e atirou violentamente sobre a cabeça da mãe.
– Nós não somos seus filhos! Sua Judas!
Caída ao asfalto, a mulher largou-se em vagido. Zeca se compadeceu e ergueu, levando-a para a boleia.
– Vem, vamos Carla! Não há mais nada a ser feito!
Ela se desvencilhou e tentou desesperada subir a plataforma, mas não conseguiu, fitou-os por um momento até que entrou no caminhão, ele girou a chave.
– Estão fazendo uma péssima escolha, tratando a mãe de vocês desse jeito!
Lucas respondeu.
– Eu só espero que tenha cuidado, Zeca. Adeus!
O trambolho mesclou-se na escuridão da noite, sumindo.
Sofrendo, os irmãos Carvalho se abraçaram em um só uníssono.
A aurora pronunciava no céu. Os pombos banhavam-se na Praça Líbero Badaró sobre uma fonte termal, adiante comeram alpiste jogado pelas senhoras solitárias nos bancos e sobrevoaram a cidade, pousando sobre certa ponte.
A garota apertava os joelhos sobre o peito, tentando segurar a emoção, quando Bruno se aproximou trazendo uma fatia de bolo de chocolate.
– Trouxe isso aqui para você! É seu preferido, não é?
Ela virou-se agradecida e o beijou.
– Daqui a pouco, eu como.
Sentou-se ao seu lado, abraçando-a pelo ombro.
– Eu sinto muito, Debby, sinto muito mesmo por tudo isso!
Débora confessou.
– Como Zeca pode fazer isso com a gente? Aquela mulher enfeitiça todo mundo! Paçoca! Coitado do meu pai morreu sem saber quem ela era de verdade!
-Talvez foi até bom para ele não ter essa decepção, do jeito que o descreveu, ele provavelmente não iria aceitar.
– É claro que não iria, quem com o mínimo de decência, aceitaria? Contudo, não tiro sua razão, ele tendo esse conhecimento poderia ter enfartado de desgosto. Por que essas coisas tinham que ser assim?
Ele opinou.
– O mundo é feito muito mais de perguntas do que respostas! Talvez a vida queira te ensinar alguma coisa.
Débora o olhou ávida.
– Como assim?
Ele explicou.
– Quando você amadurecer, tornar-se uma mulher, isso ficará mais claro. Tenho 20 anos e esses anos na rua me ensinaram muita coisa. Digamos que tenho certa malandragem para descobrir o caráter das pessoas, isso me ajuda a fazer negócio, saber para quem vender, como escolher as relações.
Ela entendeu.
– Isso me fez lembrar David Hume, um filósofo iluminista que dizia que apenas a razão não bastava para entender o mundo, a ciência, precisávamos viver, experimentar, testar.
Ele balançou a cabeça, corado pela ignorância.
– É… Esse cara aí tava bem certo!
Débora o acariciou
– Não fica vermelho. Não é sua culpa não saber sobre isso, não te deram oportunidade para aprender! Desculpe! Eu não deveria ter citado nada!
Ele corrigiu.
– Que isso! É apenas seu jeito! Não tem que se desculpar por nada!
Ela o abraçou e o beijou.
– Não faça assim! Está naturalizando a desigualdade de acessibilidade cultural! Esses pilantras calhordas me pagam por isso! Criaram um circo comodista para promoção dessa injustiça! Não dando a chance para a própria vítima se defender! Desgraçados!
– Do que você está falando?
– Nada Paçoca. Nada!
Em uma quitinete alugada. Zeca e Carla conversavam sobre a mesa.
– Não tenho como agradecer o que está fazendo por mim. Conhecemo-nos há tão pouco tempo.
Ele pegou a xícara de café.
– Por que fez tudo isso? Por que matou todas essas pessoas?
O silêncio prevaleceu por alguns instantes.
– Medo! Medo de perder as pessoas que eu mais amava!
– E você não tinha medo de perder seu marido quando o entregou?
– Eu não sabia que iriam matá-lo, pensei em um susto, eu estava desesperada por causa das fotos, tinha medo de tudo viesse a tona e meus filhos ficarem sabendo.
– Quem queria a cabeça do seu marido?
Ela ficou muda, não queria que ninguém soubesse da verdade.
– Eu não sei, não sei. Entreguei para um sujeito qualquer, deveria ser capanga de uma dessas famílias interessadas. Hã? Você quer mais biscoito?
Ele percebeu que aquilo a incomodava.
– Não, não. Pode guardar, eu já estou de saída.
Ele fechou o pote e guardou-o em um dos armários embutidos.
– Esse apartamento é pequeno, mas é tão bem ordenado, obrigada por me deixar ficar.
– Magina! Eu faço isso, principalmente, pelas crianças. Não quero que elas tenham uma vida difícil por conseqüências da minha filha. Agora, se me dá licença.
– Claro! – Disse Carla precipitando-se a abrir a porta.
– Zeca?
Ele se virou. A matriarca não conteve as lágrimas.
– O que vai ser deles, na rua? Eu estou desesperada!
Ele a abraçou como um pai.
– Não se preocupe, tudo vai se acertar, só precisa ter paciência. Percebi ontem quando os deixei que eles são espertos, vão saber se virar, só estão magoados e surpresos com tudo que houve, dê um tempo para eles.
Ele sorriu de volta, mais uma vez agradecida e fechou.
O traficante terminava de arrumar suas entregas quando Débora se aproximou com o irmão.
– Estamos indo na rodoviária!
Ele a repreendeu.
– Ficou maluca? Quer correr o risco de ser pega de novo pelo orfanato?
Débora tentou convencê-lo.
– Depois do tiro, acho difícil que aquela mulher queira se meter a besta de novo.
Ele negou.
– Você não vai a lugar nenhum, eu já te disse que sustento vocês dois!
Ela bateu o pé.
– Não acho isso justo, Paçoca! Não sou folgada como aquela bruxa fez com meu pai a vida toda! Quero ajudar.
Ele aprontou as sacolas de cocaína.
– O melhor a vocês fazerem, é ficar aqui, é seguro, ninguém vai vê-los.
A jovem cruzou os braços.
– Nos deixe, então, a gente ir com você!
Ele a olhou, petrificado com o pedido.
– De jeito nenhum! Não vou meter vocês nessa enroscada!
Débora pegou uma arma que o vira esconder e aponta num tom de descontração.
– Vai sim! Se não algo de muito ruim vai acontecer!
Ele soltou um bufo, contrariado com a teimosia da garota.
Carla chega do mercado após fazer compras e encontra o apartamento encostado, estranha.
– Tem alguém aí?
Mas ninguém responde. Teria o deixado aberto por engano? Pôs as compras na mesa e fechou a porta. Depois de guardá-las no armário, dirigiu-se para o quarto e se chocou ao encontrar sentada em sua cama: Valentina Bravo.
– Pensou que tinha se esquecido de mim, princesa?
Closet no rosto pasmo da dona-de-casa.
Os cabelos de Débora esvoaçavam com a resistência do ar que lutava contra a aceleração da moto. Agarrada em Paçoca sentia-se importante, seu irmão a segurava.
Chegaram a um depósito abandonado, um dos capangas abriu para eles passarem. Não demorou muito para Bruno estacionar a moto.
– Vejo que trouxe visita, Paçoca!
Um garoto com o rosto marcado por uma cicatriz de navalha se revelou receptivo.
– Não pense que estou feliz com isso, Sapato!
Débora segurou para não rir, eram tantos apelidos engraçados.
Eles entraram e mais dez garotos apareceram, dirigindo-se para a mesa central. Eles a observavam com risinhos, ela não gostou nenhum um pouco, apertou a mão do irmão, tentando protegê-lo. Um deles ousou assobiar.
– Que foi Paçoca? Não vai dividir a mercadoria com a gente?
O jovem o esmurrou com vontade.
– Ela é minha garota, Danilo! Se não quiser se machucar, acho bom mudar essa sua postura.
O garoto amarelou.
– Que isso, chefe! Não está mais aqui quem falou!
Débora sentiu-se tutelada. Ele anunciou.
– Eles agora estão conosco. Vão participar de nossos planos!
Um dos meninos estranhou.
– Uma garota, na equipe?
Débora não se conteve.
– Qual é o problema? Acha que uma mulher não é capaz de ser boa para movimentar esse grupo? Ou é recalque mesmo com medo de perder seu lugar?
O garoto avermelhou-se. Os outros riram. Ela continuou.
– Não quero tomar o espaço de ninguém. Eu e meu irmão estamos sem lugar para ficar! Paçoca nos abrigou, só queremos retribuir de alguma forma. Podem passar qualquer missão para a gente, fazemos tudo que precisar!
Danilo voltou a provocar num tom malicioso.
– Tudo mesmo?
Bruno se irritou.
– Eu mandei calar a boca! – E mete a sola em sua face.
– Que isso, Valentina? Saia já daqui! Como conseguiu fugir de lá?
– Tenho minhas maneiras! Está deslumbrante como sempre! Vim aqui cobrar nossa dívida.
– Dívida? Que dívida? Não te devo nada!
– Deve sim!
E a agarra por trás, ela grita e Zeca que estava trazendo alguns mantimentos da sua casa, aparece para salvá-la.
– Me larga, seu velho asqueroso! Ela é minha e de mais ninguém!
Valentina tenta se desvencilhar do caminhoneiro e no meio da briga, acaba o jogando pela janela, ele despenca nove andares e morre estatelado no jardim. A detenta recupera seu fôlego, ainda atordoada com o que fez. Carla se desespera.
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