Caos
– Como foi que disse, Paçoca?
O ex-menino de rua não conseguiu não se envolver com a situação e emocionou-se ao ver a comoção de Joaquina.
– Você é filho biológico de Mãe Joaquina! O segundo filho dela, que ela tentou a sete chaves esconder, por que achou que havia morrido por problemas respiratórios pós o parto, um símbolo de agonia, de impotência, de esterilidade para uma mãe que já havia perdido um rapaz num suposto acidente de carro.
Lucas ainda estava confuso. Então toda aquela sua história era uma mentira? George e Carla nunca foram seus pais? Apesar de sentir no carregado dos olhares uma seriedade muito forte, custava a acreditar por que para ele nunca essa possibilidade passara pela sua cabeça. Cristiano segurou em suas mãos, o mocinho acariciou as dele e com a outra sorriu para a freira e por uma fração de segundos enxergou um pouco dele, certo brilho no fundo daquele olhar, nas feições, na maneira de observar o mundo, chamou-a de mãe. Ela o de filho. Abraçaram-se novamente, mas dessa vez foi mútuo, foi aconchegante, seguro, concreto. Passado o momento, pediu para conversar com Malva.
***
Sam termina de tomar seu banho e se irrita ao ver, sentado em sua cama, contemplando o seu macho, aquela velha esclerosada e maldita! Pensou em botá-la para fora a golpe de vassouradas, chamar o esquadrão da reforma da previdência para juntos empurrá-la dentro de uma cova funda. Até que uma idéia passou pela sua cabeça e ele se lembrou da sua velha parceira de crimes: a britadeira.
Trocou-se de roupa e dirigiu-se a ela.
– Desculpe a demora, meus banhos costumam ser demorado.
Gumercinda riu.
– Sei! Paga de bichana, mas adora descascar uma banana, não?
Sam ofendeu-se profundamente com aquela associação. Quem ela pensara que era para referir-se a ele daquela maneira? Pensara que era um tarado sexual que passava a se masturbar durante horas no banheiro? A sede de matá-la subia-lhe pelo corpo, fingiu que não ligou e declarou.
– Vamos terminar com isso logo, tenho muito a fazer ainda hoje! Vou pegar uma boa quantia para comprar o seu silêncio no cofre lá em baixo!
A idosa sorri e concordando o segue.
MAIS TARDE…
Francisco chega ao posto de pilotagem acompanhado do ministro de Relações Exteriores e abre sua garagem particular, na qual o piloto e o co-piloto o aguardam. O técnico subornado por Otto, em meio a sua equipe finge empatia ao presidente.
– Estou feliz pela Vossa Excelência, senhor Presidente Francisco Mises! Ainda bem que não conseguiram derrubar o seu governo, é um ótimo representante da nação!
Francisco o cumprimenta com um aperto de mão.
– Obrigado pelo patriotismo, nobre homem! Vivi momentos de turbulência, mas creio que eles já foram resolvidos!
Ele sobe no jatinho e acena para a equipe, sentando-se em sua poltrona, de frente para o ministro. Aperta os cintos e aguarda a decolagem.
***
Sam abre a despensa e acende a luz, a anciã sente uma brisa gélida congelar a face, o local fedia a mofo. Exceto pelo barulho de ratos que correm na sustentação dos telhados, o silêncio habita o cenário. O vilão a permeia até um objeto na parede escondido por um pano escuro. Vira-se para ela.
– Ai está o cofre! Vou pegar uma estaca de madeira para retirar esse tecido! Não sei se há teias de aranha por trás, tenho verdadeiro pavor.
Ele toma posse de um taco de beisebol, mas a mulher não se incomoda e trata logo de puxar a seda, chocando-se ao percebe que era uma cabeça de leão empalhada.
– Mas isso aqui não é um cofre!
Ela se vira assustada para o vilão que a golpeia certeiramente na nuca, promovendo sua queda pela vertigem da pancada. Sam a encara por cima, esboçando seu desprezo.
– Que pena vovó, podia ter mais uma década de vida, mas resolveu se meter a besta quadrada comigo! Por que vocês me obrigam a ser mal desse jeito? Puxa a vida, eu quero tanto ser o mocinho dessa história, mas vocês não me permitem! Fico magoado, hein? Viro bicho! O satã e agora vou fazer jus a minha personalidade exclusiva.
E abrindo o armário retira a britadeira, arrastando-a até uma tomada, onde a conecta, ele se aproxima do corpo e se despede.
– ♪ Noite feliz, noite feliz! Oh senhor, Deus do horror… Pobrezinha virou carnificina! ♫
E levantando a chave perfurou o corpo da idosa que gritou ao ver o sangue sujar o ambiente a toda velocidade, gritou ao ter as vísceras, os ossos tricotados pela máquina, até mais nada sentir por estar morta.
Nesse instante, Dalila que chegara com a delegada em casa para esclarecer a morte de Luana choca-se ao invadir a despensa e ver a cena.
– O que você fez? Sam? Você é um açougueiro! É um doente!
O vilão encharcado de sangue gelou com o flagra das duas.
MAIS TARDE…
Uma tempestade assola a região do pantanal e raios começam a incomodar o piloto ao passar perto de algumas nuvens carregadas. De repente um raio atinge a asa do avião e o co-piloto orienta mudar a angulação, mas o avião não segue ao comando acionado, perdendo estabilidade. Francisco se desespera ao ver uma fumaça preta esvoaçar pelo lado de fora da janela pressurizada. Ele levanta-se a fim de conversar com o profissional, mas acaba sendo atirado para trás num sobressalto que o avião entra ao começar a dar loopings seqüencialmente, rodopiando e caindo em movimento helicoidal até colidir frontalmente com árvores, caindo dentro de um pântano e explodindo.
***
Lucas chega à penitenciária de Belém, para onde Malva foi levada e consegue autorização do chefe dos delegados municipais para visitá-la. Cristiano o aguarda do lado de fora junto com Joaquina e Paçoca. A megera aparece saindo da escuridão naquela sala, chocando-se ao encontrar o jovem. Eles estavam agora,frente a frente.
– Minha pergunta é por quê? Por que fez isso comigo? O que foi que eu te fiz? Eu era apenas um recém nascido!
Malva ri.
– Sabe que é surpreendente essa sua capacidade estrondosa de manipulação pelo drama? Não precisa fazer esse jogo comigo querido! Eu sei muito bem a sua índole! Esqueceu-se que passou algumas semanas no meu Reformatório!
Lucas bate na mesa, revelando a que veio.
– Eu não sou da sua laia! Por isso você lava essa boca para falar comigo dessa maneira! Quem está invertendo as coisas aqui é você! Que não me quer dizer como pode tirar a Joaquina, sua irmã de sangue, duas vezes, o direito de ser mãe.
A ex-freira rebate.
– Não seja ridículo, eu não tirei direito de ninguém! Ela criou o bastardo do André até os vinte anos, seu desinformado! Isso tanto não foi arrancado dela que ela com a parte da herança de nossos pais apresentou e ajudou o estado a bancar a construção daquele Colégio de mendigos em Manaus! O que fiz com você foi um acerto de contas pelo o que André me fez, abortando o único embrião que eu podia gerar, aquele hospício na Suécia era pouco perto do mal que ele e ela haviam me feito.
Lucas a enfrenta.
– Ela nunca teve culpa de nada, sempre foi vítima dessa história toda! E você sabe muito bem disso! É horrível constatar que isso seja verdade, não pelo fato da minha mãe estar viva e ser a Joaquina, mas por saber que eu tenho uma tia horrenda! Finalmente, você vai pagar por todo mal que nos fez.
E sai em lágrimas, batendo a porta da sala. Malva resmunga sozinha. Ele chega à sala de espera a abraça a mãe, implorando para voltar para Doce Recanto. Foi um erro tentar entender as coisas.
***
Dalila e Débora pressionam a campainha do apartamento de Cristiano, o qual liga pela trigésima vez no celular da sua mãe. Sua cunhada o encara com uma expressão de lamento.
– Acho melhor você sentar, por que o que temos a te dizer não passa nem perto de ser bom!
Cristiano se assusta.
– Não me diga que é sobre minha mãe?
Elas se entreolharam. Cristiano percebeu.
– O que aconteceu com ela? Onde ela está?
Débora pegou em suas mãos.
– Sam a matou!
Cristiano petrificou.
– O que você disse?
***
Rogério revela a Jesus que Sam foi preso em flagrante pela morte de Gumercinda e o oncologista se revolta, ele sai disposto a despejar todo desprezo que sente por Sam, mas algo o faz parar: a face de Lucas na emissora ao vivo marcada em dezenas de edições na primeira página de diversos jornais naquela banca e uma fila de um quarteirão inteiro para comprar o exemplar. Rogério que o seguira preocupado dele cometer alguma loucura fica pasmo ao ler a manchete: Sensibilidade e Lucidez marcam a personalidade do novo herói da nação! Ele se aproxima e se contagia com o comentário das pessoas, as quais percebendo o que a internação significou na vida do rapaz revelam seus anseios para o comando do país. Uma mulher conversava alto com outras duas pessoas na fila.
– Esse jovem não nos enganou quando falou do golpe em curso! O processo de impechament foi aberto! Otto quer implantar uma ditadura! Precisamos reagir! É nossa democracia que está em jogo!
Jesus se aproximou de Rogério sorrindo.
– Será que finalmente o Brasil abriu os olhos? Nosso povo saiu da zona de alienação? Débora precisa saber disso!
Ele puxa o telefone e conta a boa nova para a amada.
***
Lucas, Joaquina e Paçoca chegam a Vitória e o mocinho resolve ainda no aeroporto passar ao sanatório, antes de pegar o ônibus para Doce Recanto. O motivo é uma visita a uma pessoa muito especial. Sua mãe nada entende nada em um primeiro momento, mas o acompanha.
– Por favor, me esperem aqui fora, prometo não demorar. Mas preciso fazer isso sozinho. Tem haver com autoconhecimento, andei pensando muito nesses dias, desde que saí daqui e preciso me decidir sobre uma coisa.
Joaquina o beija na testa.
– Se é da sua vontade, meu filho, pois siga o seu coração, afinal é só assim que alcançamos a felicidade que mora dentro de nós.
Ele sorri e a abraça.
– Você é a melhor mãe do mundo!
Passando a porta, ele chega ao pátio, onde Lígia o aguarda terminando de retirar as pétalas de uma margarida que encontrara por ali. Ele se aproxima e ela o observa em silêncio.
– Muito obrigado por me receber.
A transexual, todavia, continuava a fitá-lo séria.
– Não me deve obrigado, o certo seria obrigada! Mas não estou aqui para ser gratificada, estou aqui para te ensinar que não há como fugir de nós mesmos, pois isso seria o mesmo que morrer.
Lucas ficou assustado com aquelas palavras, ela parecia decifrar seus pensamentos. Sentou-se ao seu lado e prestou atenção.
***
Sam se adentra na sala de visitas da penitenciária quando é surpreendido por um murro de Cristiano.
– Mas o que significa isso?
O advogado o derruba no chão e começa a chutá-lo desesperado.
– Seu desgraçado! Carniceiro! Você matou a minha mãe! Eu vou te matar!
O vilão tenta gritar por socorro, mas ninguém parece ouvir, até que é acertado no estômago, ficando sem ar.
***
A notícia da queda do avião de Francisco Mises viraliza-se pela internet. Otto recebe um telefonema de Marcos, o qual possui parceiros na perícia como o tal Legista e confirma o óbito do presidente. No exato momento, ele invade o plenário num êxtase de liderança e anuncia.
– Infelizmente Francisco não está mais entre nós! A morte acabou de ser confirmada! Coitado! Que vá em paz! Deus provavelmente está o acolhendo em seus braços. Por essa ironia do destino, assumo a presidência e declaro o fechamento do Congresso Nacional!
Todos se entreolharam embasbacados com a audácia de Otto que sorria, mandando beijo para os jornalistas que ali estavam.
***
Dalila termina de colocar seu vestido de seda egípcia vermelho-sangue e completa com adornos de ouro: as pulseiras e a gargantilha, contorna os lábios e se encara no espelho. Débora aparece por atrás.
– Está perfeita! Ele vai cair que nem um patinho!
A jovem liga para o pai que àquela altura do campeonato estava em sua suíte presidencial em um edifício em frente à praça dos três poderes nadando em uma cama com milhões de dólares e mais dólares. Ele a atende.
– Finalmente a filinha chapeuzinho vermelho ligou para o papai lobo mal! Que devo a sua ligação?
Ela o surpreende.
– Estou com saudades papai, saudades de você. Será que poderia passar essa noite comigo, tenho certeza que não vai se arrepender!
Débora se alegra, sorrindo para ela.
– Melhor impossível!
***
Lígia relata sua história de vida para o protagonista.
– Perceba Lucas não há como você continuar fugindo. Muitos tentaram contra argumentar, coagir-me a desistir de me encontrar, por que afirmavam que eu não havia nascido mulher e, portanto nunca saberia, nunca haveria certeza ou teria bases para me encaixar nessa condição. Todavia, eu percebi, com passar dos anos que ninguém nasce mulher, torna-se. Esta singela frase da feminista alemã Simone de Beauvoir me ajudou incrivelmente a me direcionar. Quem separa a sociedade em biotipos, em gêneros, é a própria cultura compartimentada, no fundo homem e mulher são definições privadas, pessoais, as quais deveriam refletir a individualidade, contudo, o que se percebe é uma confusão entre essa escala e a pública e uma opressão àqueles que fogem a normalização, a padronização. Muitos trans sentem a necessidade de operar, de modificar fisicamente o corpo, fazendo uso de silicone e hormônios femininos, todavia, se esquecem que a mudança vai muito além da autofirmação, ela chega à autodeterminação. Se há uma coisa que me arrependo ao longo dos meus trinta e cinco anos de vida é exatamente ter percebido apenas há pouco tempo o quanto entender essa lógica, essa distinção é saudável, é necessário. Sou eu que defino quem eu sou e quero ser, os outros não tem esse direito de impor assim como eu não tenho direito de impor sobre eles a minha visão. Se alguém quiser me relacionar comigo, pelo ser humano que eu sou, terá que ser o sensível o suficiente para passar esse paradigma determinista e enxergar minha complexidade. Por isso eu te digo, não fuja de você, não jogue fora o tempo da sua vida que poderia estar investindo em você e quando digo isso não é de forma alguma, fechar-se, torna-se arrogante, egocêntrico, egoísta, é se valorizar é se amar e se aceitar. Você é uma mulher Lucas, senti isso desde a primeira vez que te vi pelo corredor quando foi internado. Permita-se se amar também, assim como ama os outros como é perceptível nas ações que você faz por aí.
Lucas não entendeu esses últimos dizeres, foi quando Paçoca chegou acompanhado de Joaquina aproximou-se dele, entrando no sanatório e com uma simples fala o fez entender tudo. Ela acabara de comprar uma edição do jornal diário, na livraria, do outro lado da rua, enquanto o esperava e lá estava o mocinho na primeira página.
***
Dois policiais entram na sala de visitas e contém Cristiano ajudando Sam a se levantar, o vilão estava desfigurado de tanto apanhar.
– Seu covarde! Frouxo! Você vai me pagar por esses golpes! Nunca mais de dou o Lola, o toba, o olho que nada vê!
Cristiano tentou esmurrá-lo mais, todavia, Sam foi levado. Sozinho na recepção, o advogado recuperava o fôlego, assistindo pela televisão a posse de Otto ao lado do exército brasileiro. Desesperando-se ao ouvir o repórter afirmar que o congresso fora fechado.
ANOITECE…
A mansão está às escuras, Dalila está deitada em sua cama pensativa quando percebe um farol de carro iluminar a parede do seu quarto de forma crescente. Ela se dirige para a janela e abre sutilmente as persianas percebendo que seu pai chegara com sua Ferrari.
Marcos fecha o carro e retira sua gravata, destrancando a porta da sala. Dalila desce as escadas e aguarda ansiosamente ele abrir a porta, a metros dali. Assim que o empresário se adentra na escuridão, sente um pó branco que estava imerso no líquido atingir-se por completo com a queda de um balde estrategicamente posicionado no alto da entrada. Seu corpo começa a se incendiar, ele urra de dor, derrubando os objetos que vê pela frente, quando não consegue se controlar e tropeça no pé da mesa. Lucas e Débora aproximam-se para saborear a cena. O mocinho é mais cruel.
– Seu assassino! Tomara que você seja devorado lentamente pelo fósforo branco para a honra do meu pai ser validada! Cada machadada que ele levou que seja um tecido seu a ser consumido.
Débora estava radiante com o desenrolar da vingança. Dalila respirava serena.
CONTINUA…