Com um relampeio de luz, o porão se acende. Lucas grita apavorado quando o jogam em uma cadeira vestido com uma camisa de força.  Um homem de metade do rosto queimado revela-se maníaco, a máquina de raspar ligada à zero serpenteia em sua mão na velocidade máxima. Estrangula a maxilar do menino, calando-o com uma e o tosa com outra mão. Mas o pior estava por vir depois, quando um atiçador em brasa quente é cravado em sua cabeça com a suástica nazista, efetivando os ideais daquele reformatório. O menino não suporta e desmaia. A cena se apaga.

Na noite anterior…

Matilde chega com os policiais ao orfanato da cidade, ambos os irmãos sedados não ameaçam perigo de fuga. No entanto, descobrem de última hora que a última vaga fechara na mesma manhã, não havendo espaço para mais internos. A babá tenta espernear, chamar a gerência, mas não obtém a autorização. Quando saía do local, encontra em uma folha de jornal, uma análise de uma instituição nas proximidades de Manaus, isolada no seio da floresta amazônica, o levantamento é positivo e o rigor de ensino cativa sua atenção, tanto que no exato momento que termina de ler a reportagem, decide sobre o futuro das crianças.

No meio do vôo, Débora trancafiada em um dos quartos em observação daquele pequeno avião, desespera ao perceber pela janela que estão nos ares, ela berra na porta, implorando para sair e Matilde que lia uma revista do outro lado no setor vip se irrita.

– Mas nem aqui, essa garota não dá um tempo! Não tem problema querida, resolvo isso num minuto!

Ela aperta um botão do lado da poltrona e dentro da cabine da menina, sai sobre a parede espumada uma espécie de fole automático, emissor de sedativo gasoso. A mocinha tenta impedir, mas a fumaça vai só aumentando, aumentando, até que acaba inalando demais e desmaia dopada.

Eles chegam ainda antes do sol nascer na instituição, em que uma pista de descolagem os aguarda. Após descer, enfermeiros levam as crianças para seus dormitórios, enquanto Matilde acerta conta na recepção com uma freira mau-caráter chamada Irmã Malva, diretora.

– Aqui está um ano adiantado! Espero não estar fazendo mau negócio!

Austral, a megera de batina aproximou, olhando-a de cima baixo num tom de desprezo, voltou-se estridente com seu tique nervoso na maçã do rosto, fruto de um acidente de carro, onde os vidros não a pouparam.

– Pode deixar, senhora. Os garotos estarão em ótima mão! Nada como a natureza para repensar sobre nossos valores, não acha?

Matilde preferiu não responder, apenas disse:

– Ótimo! Espero nunca mais vê-los.

Malva a acompanhou até o avião e sorriu quando ela partiu. Caminhou de volta para o prédio central.

Quando as crianças acordaram algumas horas mais tardes foram levadas ao porão, antes mesmo de lancharem, precisavam se adequar as normas do local, ambos tiveram que raspar o cabelo e terem o símbolo nazista marcado a fogo na cabeça. Depois foram obrigados a andarem de um uniforme negro com uma águia cinza no centro, dentro do pássaro, um círculo revelava a foto de Hittler. As crianças, logicamente, tentaram evitar o máximo aderirem àquela ideologia, mas apanharam de vara de marmelo para fecharem o bico e obedecerem como a própria Malva referiu ás suas ordens.

Depois de comerem banha de porco com uma limonada estranha, meio amarelada, com um gosto fortemente azedo, foram levados para a igreja, onde tinham que passar uma hora, ajoelhados em oração. Em dado momento, Débora cochichou ao irmão.

– Isso parece um cenário de terror, precisamos fugir daqui!

Ele a olhou de volta ainda apático pelo espancamento que sofrera com a vara, seus lábios estavam em carne viva. A menina assustou-se com o estado.

– Sim! Precisamos fugir antes que seja tarde!

Malva percebeu entre as crianças ali que ambos conversavam e bateu incessantemente a cabeça da menina no encosto do banco da frente até ela sangrar.

– Aqui é um lugar sagrado. Deus não admite conversa!

Dali foram para a sala de aula onde uma professora já idosa lecionou aritmética. A mulher não se importava se a maioria não entendia, prosseguia com o ritmo a matéria acompanhando os biologicamente mais adaptados, como ela mesma adorava dizer, o que significava que apenas os imperativos e superdotados possuíam vez no êxito das disciplinas. Lucas, contudo, surpreendeu sua irmã, com apenas dez anos, entendia muito bem àquela linguagem e conseguiu por sua própria genética e capacidade se destacar. Débora perdia-se, flutuando em pensamentos sem esperança. Até quando aquilo iria durar? Perdera seu pai, sua mãe, sua liberdade de expressão, sua vontade de viver, já estava a semanas naquele ambiente e nada parecia mudar, cada vez piorava. Paçoca, oh! Meu querido príncipe das ruas, onde estaria? Provavelmente jogado em mais uma cela lotada, próximo a uma gangue estúpida, na qual nascera infelizmente da própria insuficiência do estado em garantir educação de qualidade e principalmente distribuição de riquezas, por que as próprias escolhas, ao contrário do que a cultura meritrocrática pregava, não dependiam apenas do indivíduo, mas sim do próprio meio que ele está inserido.

Pierre de Bordieu! Como amava suas obras, sentia saudade de lê-las, de aprender, abstrair, refletir, ato que seu pai fazia tão bem nas noites de insônia, madrugada a fundo no jardim com ela. O acesso a como interpretar uma situação influenciava no destino de tanta gente. Ninguém nascia bandido, cruel em seu estado de natureza, como defendia Hobbes, a prova viva eram os bebês, as doces crianças perdidas em sua inocência, gesto de fazer bem, quem os condicionava no monstro individualista mais tarde era a própria sociedade opressora e coerciva, corpo cultural de um centro de comando, este nada mais do que os donos dos meios de comunicação. Um circo perfeito para o egoísmo e a maldade. Ardendo por dentro, não deu-se conta que a professora a chamava pela terceira vez.

– Senhorita Carvalho! Senhorita Carvalho!

Chocara-se com a realidade.

– Onde estava com esses pensamentos? Não respeita as regras de prestar atenção nas aulas. Venha cá, mocinha, vou te mostrar quem é que manda na sua mente perturbada!

Ela trocou olhares com o irmão que a observava em lágrimas. Levantou-se em meio aos risos da sala. Assim como a própria estrutura de ensino demonstrava com a violência física, o bullying tinha espaço para se criar. Recebeu o chapéu de burra e levou três reguadas na cara.

– Anda, me responda logo essa pergunta, Senhorita Carvalho. Qual é a solução desse problema de combinatória de permutação caótica, eu quero saber em dois minutos!

Débora gaguejou.

– Mas o semestre dessa matéria ainda não chegou e pelo que consta nas apostilas não aprenderemos o conteúdo com esse aprofundamento.

A idosa bateu o apagador de madeira, várias vezes, em sua testa, a sala toda ria. Lucas não se segurou ao ver a cena, partiu para cima.

– Tira essas suas patas imundas de cima de minha irmã, sua velha louca!

A mulher pegou-o pela orelha, ele a chutou, levou-a ao chão. Correu para junto da irmã, acudindo-a. Isaltina tremia:

– Vou ensiná-los a não agredirem uma professora de respeito como eu, uma pobre anciã, vítima da violência comunista de dois girinos feito vocês.

E pressionou o botão vermelho em baixo da mesa, a sala toda tapou ouvido para a sirene ensurdecedora que começou anunciando a entrada de seguranças, entre eles o mais temido, o inspetor Marcio Guerra.

– Aconteceu alguma coisa? Dona Isaltina, a senhora está no chão!

Ele ajudou-a a se levantar. A sala inteira gritava tentando contar o que aconteceu a fim de entregar os irmãos. A professora revelou tudo.

– Esses dois marginais me agrediram! Eu exijo uma punição com gosto, fervor de sofrimento, aguardente se possível, que cheguem próximo a morte para aprenderem a respeitar os mais velhos!

Os dois se apavoraram quando Marcio os encarou e robusto do jeito que era como seus capangas os arrastaram dali com brutalidade, no caminho, a menina chegou a fraturar o baço, mas nada foi feito. Irmã Elisabeth, vice-diretora que substituía Malva em casos de detenção mostrou-se ainda mais pérfida, separando-os os irmãos. Abriu um alçapão em uma das torres do instituto.

– Podem jogá-la.

Débora gritou desesperada por não ver o fundo do poço. Mas sua força era inútil perto dos grandalhões, atiraram-na sem dó no buraco, ela caiu desesperada até chocar-se com um monte de destroços Eram cadáveres de ex-alunos, berrou quando percebeu.

Do outro lado do reformatório, Lucas foi largado em um milharal onde foi obrigado a ficar horas ajoelhados nos grãos, sem água, sem comida, sobre a luz infernal do sol. Depois foi levado para a madeireira, onde foi obrigado a cortar sobre vigilância, árvores de grande porte e carregá-las no ombro até a exaustão, além de ter que cortá-las na serra, o que exigia um esforço terrível para uma criança de dez anos. Horas e mais horas até que desmaiou no jardim sobre caçoares de segurança que desligaram tudo e o deixaram ali, largado, sem assistência.

Passado alguns minutos, um tocar de flauta doce o fez abrir os olhos, percebeu que vinha de dentro da floresta, mas não conseguia se mexer, estava machucado demais. Suas costas contraiam-se de dores, suas mãos ardiam em bolhas, não tinha forças para erguer-se. Mas não precisou. O som que se tornava cada vez mais alto, findou com um tocar em seu rosto, ele abriu novamente os olhos, um menino preocupava-se com ele.

– Você está bem?

Lucas não respondeu. Robson o acalmou.

– Não se preocupe, cara. Vou cuidar de você!

E o pegou nos braços. Olhou para os lados, não vinha ninguém, adentrou na floresta.

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