Joaquina corre para abraçar seu filho, por entre seu ombro, André troca olhares com Malva já de pé, quem se revela uma mau-caráter como sempre, não mudara coisa nenhuma e estava tramando algo com a volta do rapaz.
– Não estou acreditando, você tá vivo, vivo e na minha frente! Eu achei que esse dia nunca fosse chegar, mas ele chegou e eu estou viva para ver isso. Obrigado, meu Deus.
Ele forjou emoção, disparando:
– Nem sabe como eu esperei por isso. Até cheguei a cogitar quando estava trancado naquele hospital que a dor da minha perda fosse tão grande para você que seria capaz de te matar, senti-me culpado, queria mandar uma carta, mas eles não me deixavam, vigiavam-me vinte e quatro horas, até para tomar banho eles me acompanhavam, ficando no corredor dos boxes. Eu sofri tanto, tanto sem você, minha mãe!
Joaquina o abraça de novo.
– Calma, meu querido! Esse pesadelo já acabou, estou aqui para impedir que nada de ruim aconteça contigo.
Malva arruma o cabelo de tédio.
– Acho que agora que reviu seu filho, minha irmã. Tudo está certo sobre nós, não é?
Joaquina a encarou feroz.
– Não! Não está! O André pode estar de volta, mas você vai pagar pelo que fez com a Débora.
Malva implorou.
– Por favor não faça isso comigo, irmã ! Eu trouxe seu filho para perto de você de novo. Você quer a guarda dela e do irmão? Eu autorizo, eu os entrego para você, mas, por favor, não me denuncie, não me entregue! Eu cumpri nossa parte do trato.
Joaquina ri.
– Trato, que trato? Um ser como você não merece essa regalia, essa liberdade que tem. O que foi que aquela menina te fez? Só por que ela se rebelou contra os maus tratos, é natural dado o que a fez passar junto com o irmão e você se enxerga assim acima da razão, do respeito e manda seus capangas, açougueiros sem experiência nenhuma arrancar o direito dela de sorrir, depois negligenciam socorro e terminam tirando o direito a vida dela. O que você fez não tem perdão, você tem que sofrer pagar por tudo que fez a ela e a todas essas crianças. Seu monstro!
E cospe em sua cara, ela puxa o filho, eles batem a porta. Malva retira um pano de uma das gavetas de sua escrivaninha e limpa o cuspe.
– Você está muito enganada se as coisas vão terminar assim, sua lagarta velha babona, o que é seu está guardado, você não perde por esperar!
***
Lucas e Laila chegam acompanhados de Robson e Letícia no hospital, na recepção ele pede para ver a irmã.
Já na UTI, uma enfermeira alerta.
– Sejam breves, daqui a pouco ela entra para a cirurgia!
Lucas se adianta a seus amigos, assim que mulher se distancia e acaricia a face da menina que desperta.
– Oi maninha.
Ele não consegue conter as lágrimas, ela o surpreende, enxugando-as com o polegar.
– Eu te juro Debby, nada de ruim vai te acontecer. Eu…
Mas ela cerra seus lábios com os dedos, emocionada, pegando suas mãos e apertando firme. Com a outra puxa um caderno sobre uma cômoda, mas fraca derruba-o no chão. Laila o recolhe e entrega junto com a caneta. Débora sente um pouco de tontura e dor ao mexer os braços, mas escreve o seu intento, entregando a Lucas.
Os outros se aproximam para ler pelas costas do rapaz. Ele soluça de choro quando lê:
“Eu te amo! Não vamos gastar nosso pouco tempo com tristezas! Não quero partir assim!”
Ele se volta para ela derrotado, ela, no entanto, o olhava com certo brilho. Ele jamais esqueceria aquele olhar. Era tão poente, tão aquém do sofrimento, era superior, parecia que Débora já aceitara que suas chances eram nulas, mas que aquelas que a restavam, queria ser feliz. Desejou encontrar Paçoca e trazer para junto dela, era tão feliz com ele, mas não sabia, não sabia em qual penitenciária haviam o jogado, transferido e cada instante era letal, letal para ela.
A enfermeira voltou avisando do esgotar do tempo, Laila e Robson terminaram se despedir e levaram Lucas totalmente destruído por dentro. Ele estava agitado, os dois tentaram acalmá-lo no corredor enquanto os enfermeiros preparavam-na para a operação, posto isso, quando puxaram a maca para fora do quarto com ela já sedada, ele correu atrás, gritando seu nome, a segurança o conteve quando desapareceram por uma porta, Robson e Laila o abraçaram.
***
Joaquina abriu um antigo quartinho no colégio e André se surpreendeu ao ver as colchas que dormia, os porta-retratos, os seus brinquedos, seu guarda-roupa, tudo, tudo estava ali, ela nunca se desfizera.
– Mãe, a senhora mandou construir um quarto igual ao meu com todos os meus pertences, você não doou nada.
Joaquina o abraçou, beijando sua testa.
– Jamais eu iria tirar você da minha vida e a maior prova disso é esse quarto, desde que construí o colégio, ele está aqui, se eu doasse alguma coisa sua, estaria sendo fraca, entregando os pontos, negando que um dia eu tive um filho por mais que acreditasse que você tivesse morrido. Toda vez que eu sentia sua falta, eu vinha para cá, ficava abraçando naquele seu ursinho…
André se alegrou ao ver seu bichinho de pelúcia.
– Você guardou o pote-de-mel? Ele está inteiro!
– Mas é claro que está! Às vezes eu até borrifo o perfume que você gostava nele, tudo para lembrar-se de você, meu querido.
O rapaz alimenta uma emoção que na verdade não existe.
– Você é uma das pessoas incríveis que conheço! E é por isso que eu te peço, desista dessa idéia de entregar a tia Malva, ela fez coisas horríveis comigo e com você, mas ela é outra pessoa, mãe.
Joaquina estranhou aquele pedido, levantando incrédula.
– André Augusto não estou acreditando no que eu estou ouvindo! Você tem idéia do que está me pedindo? Essa mulher te largou por mais de vinte anos num hospital psiquiátrico, disse para mim e para a família toda que você tinha morrido num acidente de carro, tortura crianças com trabalho forçado, agora praticamente ocasionou a morte dessa menina, tenha a santa paciência!
E sai esbaforida do quarto, ele se entedia por uns instantes, rasga a cabeça de seu ursinho irritado e vai atrás.
***
– Anotou direito o endereço do hospital? Olha lá, me mande notícias! E desculpe qualquer coisa, é por que realmente a situação saiu meu controle!
Malva pôs o telefone no gancho, Marcio Guerra se adentrou na sala.
– Mandou me chamar, Malva?
– Eu sou uma freira, então exijo mais respeito. É irmã malva! A mulher mais religiosa do país. De qualquer modo isso não importa, tenho uma proposta a fazer a você.
Os olhos do rapaz se irradiam. Do que ela estaria falando? Ela fez sinal para ele se sentar, ele a obedeceu calado.
– Pois então, do que se trata essa proposta?
Ela sorriu astralmente.
– Percebo que você é direto e gosto disso! Do cargo da vice-diretoria!
Ele se surpreendeu.
– Do cargo da vice-diretoria? Mas como… Como? Elisabeth assume a posição!
Malva gargalhou.
– Não por muito tempo! Desde ontem na reunião do corpo docente, percebi um certo desespero dela em conseguir aquele cargo de assessor para você, uma certa insistência não muito característica a ela e desconfiei que ela poderia estar sendo alvo de chantagem!
Ele deu de ombros.
– Chantagem, Irmã Malva? Mas de quem? De mim? Por que eu faria uma coisa dessas? Eu…
Malva pegou em suas mãos num gesto fraternal.
– Guerra! Guerra! Você não só faria, como fez chantagem, não subestime a minha capacidade de perceber o rumo das coisas, sou macaca velha no assunto, eu já sofri e já fiz muitas na minha vida. O cargo da vice-diretoria está em suas mãos, é pegar ou largar. E ai vai me contar o que está acontecendo? Ou quer que eu descubra tudo e ponha outra pessoa a mercê daquele posto, o que vai ser uma pena, por que convenhamos você é um excelente profissional!
O homem pensou por um minuto e decidiu entregar.
– Já que a senhora já sabe de tudo, não tenho nada a perder. Elisabeth tem um certo tipo de vício um pouco incomum!
Malva sorri hienamente.
– Acho que todos nós temos, faz parte da vida possuirmos manias particulares e é justamente por elas serem só nossas que para os outros elas se tornam estranhas.
Ele aproxima a face para papear.
– Não acredito que nesse caso, ela se torna apenas incomum pelo seu caráter singular, o que quis dizer com essa denominação é que… Ela extravasa quaisquer limites da nossa imaginação, é algo tão inesperado vindo de uma pessoa que quando descobrimos, assustamos num primeiro momento.
Malva se empolga, serve-lhe vinho.
– Sabe que eu adoro um jogo de adivinhação, mas hoje não estou muito interessada nisso, os negócios você sabe! Não tenho muito tempo! Se puder ser mais direto, eu seria eternamente grata!
Marcio toma um gole e concorda
– Claro claro! O segredo dela é uma tara sexual! Ela manda uns homens, esses matadores de aluguel de beira de estrada assassinar uns trabalhadores largados na vida, piões de obras, bóias frias, barmen para tê-los na cama a seu serviço, digamos que a necessidade dela de dominar é tão forte que precisa do parceiro morto para se excitar.
Malva se impressiona, pondo sua taça na mesa.
– Então quer dizer que minha parceira de longa data é uma baita de uma necrófila!
Ele confirma. Ela braveja.
– Que interessante!
***
Lucas sofre sentado no chão, num canto na recepção, Robson está o seu lado.
– Sabe que dependendo do que acontecer, você pode contar comigo!
Lucas se emociona.
– Olha, cara, eu nem sei agradecer pelo que está fazendo por mim, estando aqui comigo, perdendo suas aulas, suas atividades no colégio, realmente é nessas horas que percebemos quem são nossos amigos de verdade.
Robson contesta.
– Não acredito que seja apenas eu. Todos nós: Laila, Luana, Serelepe, Batista, Irmã Letícia, Mãe Joaquina, todos nós queremos muito o seu bem, da sua irmã, acreditamos nos seus ideais, nos nossos ideais de salvar aquelas crianças do reformatório, de darmos um futuro melhor a elas. Olha só quantas qualidades a gente possui, eu nunca vi uma pessoa tão sensível e entregue as relações de afeto como você, Débora deve ter muito orgulho do irmão que tem. Você é muito humano!
Lucas sorri, suas mãos acabam se tocando. Por um momento sentiu um forte desejo de entrelaçá-las, mas se conteve, não havia necessidade de tateá-lo, não naquele momento! Robson por sua vez parou-se fascinado com a respiração do rapaz, era tão natural, tão forte e masculina, sabia que a sua também era, mas a dele parecia ter um toque especial, algo que ele não sabia o certo o que era, mas que gostava muito.
O médico desemboca na recepção desesperado. Laila que acompanhava Letícia dormir no sofá levanta com um sobressalto, os meninos percebem e fazem o mesmo gesto. O profissional anuncia com lágrimas nos olhos.
– Tentamos aspirar ao quanto pudemos a secreção de pus, mas essa se alojou nos brônquios e a hemólise foi interrompida, teve insuficiência respiratória, não conseguimos reverter. Infelizmente, ela não resistiu à cirurgia, eu sinto muito!
Lucas se desmonta por dentro. Aquilo não podia ser verdade. Ela era a última pessoa da sua família. Primeiro seu pai, depois sua mãe e agora sua irmã. Que mal ele havia feito para merecer aquilo? Ela era tão jovem, tão cheira de vida, não merecia terminar assim, não merecia. Nem teve tempo de se despedir! Só recordava daqueles dizeres que a menina escrevera antes de operar. Eu te amo! Não vamos gastar nosso tempo com tristezas! Eu não quero partir assim! E ele não a atendera em seu último desejo, chorando feito um bebê imaturo e emotivo. Largou-se dos braços de Letícia e correu para dentro do hospital, desesperado, passou por cima dos seguranças e mesmo ao chão, desvencilhou, engatinhou até empurrar a sala de operações e ouvir o bip do nulo batimento cardíaco que o aparelho anunciara e ela com os olhos fechados, gélida, naquela maca.
Correu ao seu encontro para tentar fazê-la voltar. Ela tinha que voltar! Como seria sua vida daqui em diante? Como seria a vida do mundo de agora em diante? Sem a marxista convicta, a lendária justiceira dos mais oprimidos? Os outros chegaram acompanhados da segurança até ouvir uns berros que Lucas reconheceu na hora. Era Matilde que veio o buscar.
– Vamos parar de frescura, seu moleque impertinente! Não percebe que a bruaca da sua irmãzinha não resistiu à cirurgia? Vamos para de onda e olhar para frente, vem, vou te levar de volta para o reformatório.
Robson a olhou enojado. Laila cruzou os braços. Letícia se surpreendeu e Lucas a fitava fora de si.
CONTINUA…